Karnal – Tolerância é um dos eixos de uma cultura de paz. Infelizmente, nas línguas ocidentais, é uma palavra com significado ruim, negativo. “Tolerar” é sofrer resignadamente. Nós dizemos hoje, especialmente em educação para os direitos humanos, que existe a intolerância prevista e punida na lei e condenada pela ética. Mas existe uma forma intermediária, que é a intolerância passiva, por exemplo, quando alguém diz: “Não tenho nada contra homossexuais desde que não se sentem ao meu lado” ou “Não me irrita haver motoristas mulheres, desde que eu não entre no carro delas”. Isso é intolerância passiva, que é uma forma envergonhada de intolerância. Quando falamos de tolerância ativa, dizemos de uma capacidade de afirmar que a diferença não é negativa; ela é positiva e faz o todo. Ou seja, que felizmente o outro é distinto de mim, e isso me torna melhor porque diversifica, me desafia e me impulsiona. Assim, é importante entender que a diferença mexe com o meu eu e o traz à tona. E a tolerância é o exercício de entender, como diria o seu mestre, que essa é uma outra forma de pensar. Mas isso leva à seguinte questão: qual é o limite desse relativismo? Por exemplo, se alguém bate em uma criança, não posso simplesmente aceitar que essa é uma forma de agir, apesar de não concordar com isso. Qual é o limite, então? Eu costumo dizer que são a ética e a lei. Eu, Leandro, posso pensar – como, de fato, penso – que coentro é um veneno, um dos males da humanidade. Costumo brincar que Deus inventou a salsa e o demônio, invejoso, o coentro. Mas essa é uma opinião não só subjetiva como irrelevante. O que penso do coentro não muda o fato de que uma parte expressiva dos mexicanos, dos tailandeses, dos capixabas e tantos outros faça uma cozinha maravilhosa com coentro. Ou seja, minha opinião é irrelevante. Mas onde entra a relevância? No caso de um homem que agride uma criança, há um risco de vida. Eu devo tentar convencê-lo a parar? Devo ser violento para que ele não seja violento com uma criança? Nessa situação, a minha violência se justificaria para impedir um mal maior? Qual é o limite da tolerância e do relativismo, Monja?
Monja Coen – Como não ser violento com a violência? Outro dia, uma senhora veio me contar que estava andando pela rua e ficou muito brava ao ver uma mãe tratando o filho de maneira indevida. Perguntei: “Por que você ficou brava? Por que você não foi até ela e disse: ‘Está tudo bem com você? O que está acontecendo?’. Por que você não entrou em contato de forma não violenta com esse ser humano que estava sendo violento? Por que você não ofereceu ajuda para essa mãe entrar em um estado de equilíbrio? Por que não chamou alguém?”. Não interceder, omitir-se também são formas de violência. Gosto de que ainda haja polícia no mundo, policiais que possam fazer coisas que não quero fazer, como ir atrás de bandidos. Posso, então, chamar esses profissionais que são, de certa forma, treinados e especializados para impedir que as pessoas – crianças e idosos, homens e mulheres – sejam massacradas. Ou posso tentar interferir me aproximando, mas não com violência. Porque a violência, a raiva, elas se transmitem, são contagiosas. Se uma pessoa está com raiva e começa a falar brava conosco, de repente nós começamos a falar assim também. Quando vemos alguém com raiva, ficamos com raiva da raiva do outro, em vez de tentarmos entender: “Por que será que esse ser humano está se manifestando de uma forma tão prejudicial para si e para o outro?”. É preciso estar muito bem centrado, estabilizado para lidar com a situação dessa maneira. E é preciso interferir. Um exemplo: voltou-se a falar na publicação dos livros do Terceiro Reich. Queremos que esse pensamento se desenvolva novamente? Não podemos esconder que ele existiu. Não podemos esconder a catástrofe a que leva o pensamento da discriminação, do preconceito, de excluir o diferente. Por isso, há coisas que precisamos, realmente, cercear. Não podemos deixar que algo vá em uma direção que já sabemos que não será benéfica. O nazista tem direito a ser nazista? Sim e não.
Sim, ele pode manifestar certas tendências que foram aprendidas e recebidas de outras pessoas, livros, filmes. Ele pode se identificar com aquilo.
Não. Ele não tem direito de ser nazista, de manifestar pensamentos nazistas. Nenhuma forma de discriminação preconceituosa deve ser tolerada. Ela precisa ser extirpada antes que detone toda uma civilização.
Não nascemos nazistas. Isso foi algo transmitido e que se espalhou. O ódio, o desejo de extinguir pessoas ou grupos foi e pode ser estimulado. Como a poeira, pensamentos perversos se espalham, se alastram, e se torna difícil, depois, controlá-los. Quando grupos de pessoas – que podem se tornar grandes grupos – com pensamentos nessa direção se juntam, nós temos uma ameaça à nossa espécie. E temos que tomar cuidado com tudo aquilo que ameaça a nossa espécie. Uma criança que é massacrada, que apanha, pode se tornar um ser humano com algumas deficiências e necessidades muito específicas. Alguns traumas... Mas podemos evitar isso. Não devemos aceitar tudo, não podemos aceitar qualquer maneira de ser e de pensar. Não. Nós podemos compreender que existam pessoas que façam discriminação de gênero, discriminação entre mulheres e homens, discriminação por cor de pele, tipo de nariz,de olhos, por >culturas, hábitos regionais. Podemos compreender, mas não permitir que isso se manifeste, que se alastre. Essa maneira de pensar existe, no entanto, não é o pensamento correto. Como fazer essas pessoas perceberem que elas podem aumentar o seu canal de percepção? Como educar para que saiam desse pensamento pequeno, mesquinho, tolo, inferior? Como incentivar essas pessoas a mudar, a entrar em contato com o outro e a reconhecer nele um aspecto de si mesmas? Somos uma só família, a humana. Somos todos diferentes e únicos. Devemos reconhecer as singularidades e as diferenças, apreciar as inúmeras manifestações, aceitá-las, mas sempre com limites; transgredi-las, em algumas situações, pode ser o mais adequado.
Acredito que a discriminação esteja muito ligada ao medo. No Japão, existem grandes discriminadores, coisas gravíssimas, algumas que surgiram até dos textos sagrados. O budismo mesmo surgiu na Índia, uma sociedade dividida em castas severamente reguladas e onde há grupos de seres humanos chamados de párias ou de intocáveis.[11] Há trechos de Sutras, textos sagrados, que relatam mais ou menos o seguinte: “Buda estava prestes a dar ensinamentos para uma grande assembleia. Essa assembleia era formada por seres celestiais, por seres humanos e não humanos”. Na primeira vez em que li isso, pensei: “Bom, não humanos devem ser uma outra forma de vida”. Depois, compreendi que os não humanos eram os intocáveis. Como podemos chamar um ser humano de não humano? Quando alguém comete um crime hediondo, chamamos essa pessoa de não humana? Não, ela é humana. Nós, humanos, podemos fazer qualquer coisa. Os crimes mais horrorosos da humanidade foram cometidos por seres humanos contra seres humanos e contra a natureza, da qual depende a vida humana. Por isso, acredito firmemente que precisamos conhecer a nós mesmos, conhecer a nossa mente, verificar nossa capacidade de atuação no mundo e fazer escolhas – escolhas que considerem todas as formas de vida como a nossa própria vida. Mesmo que a possibilidade de escolha seja de apenas 5%, ela existe e deve ser utilizada.
Karnal – Como já dissemos, quase todo o mal do mundo, quase toda a cultura de guerra, de violência, de racismo, de misoginia é feita em nome do bem. É muito raro encontrar pessoas que assumam que fizeram algo em nome do ódio ou da raiva. Mas sempre o ódio e a raiva se transformam em auxílio, caridade, bons costumes, sociedade sadia e outros nomes que disfarçam, para mim, do ponto de vista estritamente psicanalítico, a raiva que se possui. Se, então, o exemplo foi “alguém está batendo em uma criança”, como sou contra a violência, minha aproximação deve ser muito tranquila para impedir o mal e desarmar o sistema, a gramática e a prática da violência. Se eu chegar com violência reclamando da violência é porque a violência desse homem batendo em uma criança dialogou com a minha. E isso, se espelhando na minha, me irritou. Porque ele fez o que eu gostaria de fazer, mas não faço, e me revelou para as pessoas. Por isso, então, a minha raiva. Quando condenamos o hábito alimentar de alguém, o tipo de roupa que ele veste ou a ausência de trajes, estamos falando sobre algo que incomoda mais a nós mesmos do que qualquer outra coisa, e muito menos sobre o outro, sobre o bem ou sobre a caridade e assim por diante. Na tradição cristã, essa é uma denúncia frequente. A denúncia de Jesus sobre o farisaísmo[12] trata de parecer e não ser. São aqueles que pagam o dízimo da hortelã, da erva-doce e do cominho,[13] mas que não agem de acordo com a vontade de Deus. São aqueles que cumprem toda a lei formal, mas não são, de fato, convertidos à ideia de Deus. Ou, retomando uma expressão que usei em outra ocasião, são os que sabem tudo do catolicismo, ou do luteranismo, ou do presbiterianismo, mas que nada entenderam do cristianismo. Conhecem a teatralidade, a cena, apenas. São as pessoas que interpretam o budismo como uma imagem, um ambiente tranquilo, um mantra, um incenso e uma luz rebaixada. E não como um desafio enorme, doloroso de se vencer diariamente. Daí aquele seu exemplo, dos que buscam no mosteiro uma espécie de ofurô relaxante, onde se possa integrar a cenografia, ou seja, a cena.
Monja Coen – A minha família, no passado, possuía escravos. Mais tarde, um bisavô antiescravagista participou dos movimentos de libertação do povo que veio da África. Portanto, uma pessoa pode considerar, por ignorância, que negros são seres inferiores e, assim sendo, devem servir e ser seus escravos. Ou ela pode mudar esse olhar e reconhecer a inteligência, a capacidade e a beleza dos filhos e filhos da mãe África. Meu avô, sobrinho-neto do bisavô antiescravagista, apreciava participar das rodas de cantos noturnos. As músicas, antigas e repetidas, varavam noite adentro: “O galo cantou, é para amanhecer. O galo cantou, é para amanhecer”. E meu avô, pequeno, ficava à noite em volta da fogueira ouvindo o som repetitivo das pessoas que trabalhavam na fazenda do pai. Ficou amigo delas, era parte do grupo. À época de seu nascimento, haviam lhe dado um escravo menininho, que cuidaria dele até a adolescência e seria seu grande companheiro. Anos depois, meu avô estava a cavalo na estrada e encontrou esse homem: “Nossa, você é o meu menino!”. E o homem foi seguindo meu avô a pé, por léguas de distância. Meu avô, que já havia conversado com ele e juntos se emocionaram entre abraços, sorrisos e lágrimas, dizia: “Não precisa me seguir. Você está a pé. Preciso ir para longe. Vá para a sua casa”. Mas o homem continuava a segui-lo. Meu avô desceu do cavalo e, mais uma vez, conversaram por horas. O tempo desaparecera. Tanta coisa havia acontecido. Recriaram um afeto antigo. É esse encontro, esse afeto que pode tornar as pessoas capazes de derrubar as barreiras que separam os seres vivos. Caso contrário, armam-se e constroem muros: “Aquela pessoa é estranha, ela é diferente de mim. Não vou me aproximar dela porque não deve ter a mesma sensibilidade que eu”. Como não teria? É um ser humano! Precisamos romper essas barreiras para poder chegar a pessoas, que, como nós, também foram educadas com barreiras de medo. Todas as sociedades, mesmo aquelas que parecem mais corretas e perfeitas, carregam em si certos estigmas. No Japão, os religiosos – carma meu também, porque entrei nessa linhagem – escreviam de forma errada o nome das pessoas que pertenciam a castas inferiores e não sabiam ler nem escrever. Eles faziam isso porque, assim, qualquer um que visse saberia quem vinha de uma casta inferior e que, portanto, não poderia ocupar determinados cargos em uma empresa, por exemplo, ou se casar com pessoas que fossem de outras classes sociais. Isso existe até hoje. Não desapareceu. Há guetos onde moram jovens que depois se suicidam porque não são incluídos na sociedade. Como não nasci no Japão e, portanto, não tinha esse preconceito, o grande treinamento que fiz ali, como parte da minha formatura monástica, consistiu exatamente em ir com monges japoneses – filhos da discriminação – a esses guetos, comer e beber com aquelas pessoas, conversar e brincar com elas. Porque era a única maneira de romper com a discriminação e o preconceito dos meus colegas e das minhas colegas de hábito. E, ali, eu estava com monges e monjas japonesas que cresceram ouvindo e repetindo frases discriminatórias: “aquelas pessoas”, “os outros que moram lá”, “os de quatro”, como se fossem animais, bichos que andam de quatro; não eram considerados humanos. Esse rompimento foi difícil. E só se rompe por meio do contato, do diálogo, da conversa. Há quem não se disponibilize à aproximação, ao diálogo. É lamentável. Por isso, a grande questão no mundo é: como romper com as discriminações preconceituosas?
Dia desses, um supermercado na Alemanha retirou todos os produtos que não eram alemães das prateleiras.O supermercado ficou vazio![14] Foi um meio hábil de fazer com que as pessoas percebessem que estamos todos interligados por produtos internacionais. Nós, humanos, nos dividimos por línguas, culturas, rios, fronteiras, países, mas o passarinho está levando as sementes de um lugar para outro. Os insetos, os vírus desconhecem passaportes e fronteiras humanas. Desde que os astronautas saíram da Terra e puderam ver o nosso planetinha, a percepção humana deu um salto quântico – somos um só planeta. Não sei exatamente por que alguns não querem difundir essa expansão de consciência. Pois está tudo interligado. Essa visão de interconexão é o ensinamento básico de budismo: tudo o que existe é o cossurgir interdependente e simultâneo. Nada existe por si só. Nós somos a vida que surge, cossurge, em interdependência e simultaneidade. O que nos dá lucidez e clareza, para saber quais são os limites, é o que podemos chamar de despertar.
Karnal – Vejo duas maneiras de atacar o racismo, que é um tema ao qual me dedico muito. A primeira delas é atacar o racismo porque ele é negativo, porque prende a vítima, mas também prende o agressor a um discurso de ódio. A outra é atacar o racismo porque dá muita raiva que alguém expresse aquilo que, no fundo, possamos sentir. Talvez, esse segundo grupo seja menos sincero que o racista direto, porque está combatendo a si no outro. É muito difícil fazer essa distinção. E aí voltamos ao medo. Quase sempre se esconde o medo de si, do que se sente, do que se quer. Em geral, o budismo indica que, quando há apego, há dor. E, nesse caso, o apego a esse ódio, à dor que deriva disso, é uma forma de se distinguir, é a busca de identidade. Estabelecer quem é intolerante, ou quem não é da nossa cultura de paz, é uma maneira muito simpática, muito bonita de dizer que nós é que somos corretos, que o bem está conosco. O reconhecimento doloroso, ao observarmos um agressor, é que ele está fazendo algo que também temos vontade de fazer. E é por isso que aquilo está dialogando conosco, que estamos com raiva. Se temos dentro de nós uma personalidade agressiva; se o outro tem personalidade agressiva e está nos agredindo, a raiva que sentimos disfarça o fato de que também somos agressores. É muito complicado, tanto na psicanálise quanto na percepção da consciência, entender que se algo lhe causou raiva, há uma pista enorme de que o problema não está naquilo que o outro está dizendo, mas em você mesmo. A tolerância é uma dificuldade porque ela mexe com as nossas próprias convicções – a homofobia, a misoginia, o racismo e a ojeriza aos pobres ou aos excluídos, que foi tocada na sua fala sobre os dalits, por exemplo. O dalit tem um outro drama específico. Qualquer excluído no Japão, ou na Índia, ou na nossa sociedade, precisa aceitar a exclusão. Ele precisa entrar nessa gramática da exclusão e fazer parte dela. E aí vem um outro elemento muito forte na questão da luta pela justiça social: se ela nasce pela vontade de uma crença na igualdade absoluta humana ou se ela nasce do nosso ressentimento. Ou seja, somos contra a exploração dos ricos porque somos pobres e gostaríamos de ser ricos? Disse uma vez Paulo Freire: “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é tornar-se opressor e substituir aquela dor e apenas pensar que o chicote é ruim porque não estou com o cabo dele na minha mão. Se estivesse na minha mão, eu estaria feliz”. É o caso do dalit que quer ser brâmane[15] e do miserável que ataca a exploração de um suposto patrão rico porque ele gostaria de ser o opressor. Por detrás da luta por justiça, com frequência, existe uma luta pelos nossos medos, pela nossa vontade de ser opressão, e assim voltamos à cultura do medo que iniciou este livro. Uma cultura de paz é uma cultura de tolerância ativa, mas também é, acima de tudo, uma cultura de conhecimento de si.
Monja Coen – Exatamente.