Karnal – Acho que uma parte importante dessa cultura de paz passa pela questão da percepção da nossa não centralidade. Vi o papa Francisco na praça de São Pedro, há pouco tempo. E seis seguranças iam empurrando as pessoas e abrindo caminho para o papa passar. Os seguranças eram a barreira do mal; o papa, o puro bem, no meio, fazendo gestos. E confesso que, como sou menos evoluído, pensei: “Que inveja, papa Francisco...”. Como eu gostaria de delegar a violência a terceiros e ser sempre o sol brilhante e puro em meio a cometas irritadiços...
Monja Coen – Aqueles que incomodam o outro não percebem o todo. Estão tão fechados em si mesmos que não percebem mais nada. É o eu pequeno – o euzinho. O eu que precisa, o eu que para na fila dupla, o eu que atrapalha o trânsito, o eu que chega no restaurante e quer ser atendido primeiro. Eu, eu, eu. Esse euzinho nosso toma proporções gigantescas e atrapalha a vida pessoal e coletiva. Por isso, é preciso entrar em contato com algo que é maior do que esse euzinho, do que essa necessidade pessoal e única que faz com que não se perceba o todo, quem está ao lado, o que está fazendo, a necessidade do outro, enfim. O euzinho percebe a própria necessidade, apenas. Está fechado em si mesmo. São pessoas que não saíram do casulo. Elas têm pequenas visões do que é estar fora do casulo, mas não saíram de lá. E nós não podemos tirá-las do casulo à força e dizer: “Veja o todo”. Mas podemos dar a elas ensinamentos, dicas de que há outras coisas acontecendo ao redor. Quando estou dando autógrafos, não posso conversar com todos que estão ali. Digo: “Veja a fila. Aquelas pessoas lá no fim estão ficando bravas. Então, em respeito a elas, vamos falar rapidinho. Não é que eu não queira conversar com você. Poderia ficar horas falando com você, mas há outras pessoas ali também”. Precisamos abrir essa perspectiva do olhar que sai do eu pequeno.
Karnal – Uma amiga minha, muito famosa, me contou que toda vez que vai a uma cidade pequena, o prefeito a convida para jantar. Ela leva, então, a assistente. E quando o prefeito faz o convite, essa minha amiga diz: “Sim, claro. Que ótimo!”. E a assistente rebate: “Não, ela não pode ir”. Ela insiste: “Mas nem um pouco? Talvez só meia hora?”. “Não, temos um avião agora partindo.” “Ah!” Essa teatralidade, claro, tem um pouco de transferência do eu. Em filosofia, chamamos de má-fé quando transferimos para o outro a responsabilidade da nossa liberdade. Mas como conseguir dizer para alguém com clareza – e isso para todas as situações: pessoas expostas à mídia ou não, mães, pais, professores, garçons, atendentes, vendedores etc. – que ele não é o centro do mundo? Principalmente quando esse outro é um cliente que, contrariado, vai atacá-lo ao seu superior. E que, se não tiver a centralidade da atenção pelo tempo que ele achar necessário, vai ter o ego ferido e dizer que foi mal atendido. É difícil quando o outro realmente age com má-fé e tenta prejudicá-lo se você não o atende como ele quer. Nesse sentido, é mais fácil falar para uma multidão. É mais fácil estar na posição de um educador, de um monge, de um guru, de um líder espiritual do que na posição de um garçom ou de um vendedor de loja, que são muito perturbados pelos clientes.
Monja Coen – Devemos deixar as impropriedades recebidas, tudo aquilo que não nos pertence, em algum canto. Se não nos servem, não vamos levá-las para casa conosco. É por isso que ensino a respirar conscientemente: endireite a coluna, respire e vá. Porque sempre vão existir pessoas que pensam de modo contrário ao seu, que não compreendem, que agridem. Mas se você conhece a si mesmo, sabe que não é aquilo que alguém possa estar falando que é. No caso de um garçom, ou de um vendedor, ele deve respirar e só depois conversar com o superior. E o superior dele, que provavelmente também já foi garçom, ou vendedor, sabe que, muitas vezes, o cliente é uma pessoa difícil. Que reclama porque é alguém que não está bem, que está insatisfeito e, assim, joga suas frustrações pessoais em cima do outro para se libertar delas.
Karnal – Certa vez, um taxista me contou algo interessante. Não sei se alguém disse a ele ou se a ideia era dele mesmo. Disse que via o trânsito como se todos estivessem dirigindo um caminhão com uma grande caçamba carregada de lixo: as dores no casamento, profissionais, pessoais, a pressa, a insatisfação, o medo. Quando alguém enfrenta o nosso caminhão, despejamos o lixo em cima dele. Observando que todos estão rodando carregados de dores, o melhor a fazer seria encontrar alguém que nos graceja um pequeno gesto: um dedo projetado, um palavrão, uma acelerada, um toque da buzina. E que, portanto, nos possibilite decretar: “Este será o alvo do meu lixo”. E então, despejamos o lixo em cima. Aquele que carrega o próprio lixo também agora tem lixo dobrado – o dele e o do outro. Isso pode provocar morte: excesso de lixos pessoais multiplicados pelo estopim do tráfego.
Isso me lembra um conto famoso no Brasil em que um homem muito tranquilo, um pai de família exemplar, todas as noites saía de casa, pegava o carro, andava pela rua e atropelava alguém. Matava alguém de forma cruel e voltava para a esposa feliz e relaxado. Essa violência dele era um gesto para manter a sanidade dentro do casamento e da vida no escritório.[19]
Monja Coen – Que interessante. Ouvi uma história uma vez de uma moça que é travesti e tinha vivido da prostituição tanto em Paris quanto em São Paulo. Ela me disse: “Se não fossem as prostitutas, os casamentos não durariam. Porque todas as violências e loucuras sexuais são praticadas com as mulheres que são pagas para isso, nunca com a esposa”. Eu nunca havia pensado nisso. Ela descrevia coisas tão absurdas... Pensei: “Nossa, isso também existe?”. Sim, isso também existe, como desvios sexuais. As senhoras que trabalham com sexo – de quem as pessoas gostam de falar mal – seriam, portanto, as responsáveis por manter os casamentos e a sociedade estabilizada.
Karnal – Alguém me disse uma vez que o celular está destruindo a família porque, em vez de conversarem à mesa, todos ficam o dia inteiro com ele na mão. Eu também penso que ele esteja segurando as famílias, porque, talvez, se elas conversassem muito...
Monja Coen – Iam brigar tanto!
Karnal – No momento em que temos esse espelho que impede de nos expor ao outro, ficamos preservados dele também.
Monja Coen – Isso é interessante. Costumo dizer, daqueles joguinhos de celular, que as pessoas fazem treino de concentração. Você fala “bom dia, boa tarde” e elas não respondem. Não param de jogar.
Karnal – Parecem monges... É o mesmo treino do piano, por exemplo. O piano foi o meu joguinho, o meu grande exercício de paciência. Se tomarmos uma fuga de Bach, tocar uma voz, a outra, juntar as duas mãos, aumentar a velocidade, tudo isso é um processo muito educativo. Não sou pianista; sou alguém formado em piano. Assim como alguém formado em Letras não é um autor e alguém formado em Educação Física não é um atleta. Eu me formei em piano e, embora nunca tenha sido pianista, isso me ajudou muito.
Monja Coen – Acho que os pais, em vez de reclamarem que o filho passa muito tempo em jogos, deviam se aproveitar disso para fazê-lo estudar com a mesma resiliência, com a mesma capacidade de concentração e foco. Não é o mesmo foco que se quer em meditação. O foco da meditação é como o de uma lente fotográfica grande-angular, na qual tudo está em foco, tudo se percebe. Percebemos, inclusive, o que ou quem possa aparentemente estar nos incomodando. Esse é o foco que esperamos acessar pelas práticas de autoconhecimento, de percepção. Não é o eu separado; é o eu “não eu”, o eu em relação a tudo que está acontecendo. Mas o foco do joguinho pode se tornar um elemento muito bom para estudo, para desenvolvimento intelectual. É um treino de concentração que nós estamos desperdiçando. Por isso, em vez de reclamarem para o filho que o jogo é um obstáculo, acho que os pais devem dizer: “Nossa, que bom! Você treinou bastante. Agora leia este livro com o mesmo foco que teve no jogo. Depois, me mostre quais obstáculos você teve na leitura e como os superou”. Porque, no jogo, a pessoa cai e levanta de novo. Ela precisa passar por um obstáculo, cai e tenta outra vez. E outra. Enquanto não passar por aquele obstáculo, ela não desiste. E, então, passa para o nível dois, que é mais difícil, e continua caindo e encontrando obstáculos, mas vai insistindo até que fica muito boa nesse jogo.
A vida é muito parecida com isso. Há obstáculos e dificuldades, mas eles não são o mais importante porque vamos superá-los. E quando os superamos, outros aparecem. Eles vão ficando mais sutis e mais difíceis. Mas não desistimos do jogo. Criar uma cultura de paz é saber jogar isso bem. É ter resiliência, não desistir. Pode não dar certo agora, mas temos que pensar em como vamos chegar lá. Não devemos olhar só para as dificuldades, porque essas são apenas etapas. A cada etapa que superamos, surgem outras. E que bom! Porque continuamos no jogo.
Karnal – Essa é uma ótima reflexão.