10

A cidade conquistada

Até agora, não importava como seus dias tivessem sido, Mark geralmente dormia bem. Naquela noite, o sono lhe faltava. Não tinha escrito para Jane. Passara o dia mantendo-se fora do alcance dos outros, sem fazer nada em particular. A noite insone transportou todos os seus temores para um novo nível. Naturalmente, ele era em tese um materialista; e (também em tese) havia passado da idade em que se podem ter temores noturnos. Mas agora, com o vento matraqueando na sua janela uma hora após a outra, ele sentia novamente aqueles velhos terrores: o arrepio antigo e intenso, como o de dedos gelados descendo delicados pelas suas costas. O materialismo na realidade não é proteção alguma. Quem o procurar com essa esperança em mente (e não se trata de um grupo insignificante) ficará desapontado. Aquilo que você teme é impossível. Muito bem. Só por isso você consegue deixar de temê-lo? Não aqui e agora. E então o quê? Se você tiver de ver fantasmas, é melhor não descrer deles.

Foi chamado mais cedo que de costume, e com seu chá veio um bilhete. O vice-diretor o saudava e precisava pedir ao senhor Studdock que viesse vê-lo imediatamente acerca de uma questão urgentíssima e extremamente consternadora. Mark vestiu-se e obedeceu.

No escritório do vice-diretor, ele encontrou Wither e a senhorita Hardcastle. Para surpresa de Mark e (momentaneamente) para seu alívio, Wither não demonstrou recordar-se do seu último encontro. Na realidade, sua atitude foi simpática, até mesmo condescendente, mas extremamente séria.

– Bom dia, bom dia, senhor Studdock – disse ele. – É com a maior tristeza que eu… hum… resumindo, eu não o afastaria do seu desjejum se não considerasse do seu maior interesse ser plenamente informado dos fatos o mais cedo possível. Naturalmente, o senhor há de encarar tudo o que estou a ponto de dizer como estritamente confidencial. A questão é aflitiva ou, no mínimo, embaraçosa. Tenho certeza de que, no decorrer da conversa (queira se sentar, por favor, senhor Studdock), o senhor se dará conta, na sua situação atual, de como fomos prudentes em garantir desde o início que tivéssemos nossa própria força policial, para usar esse nome infeliz.

Mark umedeceu os lábios e se sentou.

– Minha relutância em levantar a questão – prosseguiu Wither – seria muito mais séria, se eu não me sentisse capaz de lhe assegurar, antes de mais nada, entenda bem, a perfeita confiança que todos nós sentimos no senhor; e à qual eu tinha muita esperança – (aqui pela primeira vez ele olhou nos olhos de Mark) – de que o senhor estivesse começando a corresponder. Aqui nós nos consideramos nada mais que irmãos e… hum… irmãs. De modo que, seja o que for que se passe entre nós nesta sala, pode ser encarado como algo sigiloso no mais alto grau da palavra. E entendo que todos nos sentiremos no direito de discutir o assunto que estou prestes a mencionar, da maneira mais humana e informal possível.

A voz da senhorita Hardcastle, numa interrupção abrupta, teve um efeito não de todo dessemelhante de um tiro de pistola.

– Você perdeu sua carteira, Studdock – disse ela.

– Minha… minha carteira? – disse Mark.

– É. Carteira. Bolsa. Objeto em que se guardam notas e cartas.

– Perdi, sim. Vocês a encontraram?

– Ela contém três libras e dez xelins, canhoto de um vale postal de cinco xelins, cartas de uma mulher que se assina Myrtle, do tesoureiro de Bracton, de G. Hernshaw, F. A. Browne, M. Belcher, e uma nota de um traje a rigor de Simonds e Filho, 32.ª Market Street, Edgestow?

– Bem, mais ou menos isso.

– Lá está ela – disse a senhorita Hardcastle, apontando para a mesa. – Não, não faça isso! – acrescentou ela, quando Mark deu um passo na direção da mesa.

– Mas o que significa isso tudo? – disse Mark. Seu tom foi aquele que eu acho que qualquer homem teria usado nas circunstâncias, mas que os policiais têm a tendência a descrever como “fala agressiva”.

– Nem pensar – disse a senhorita Hardcastle. – Essa carteira foi encontrada no capim ao lado da estrada a cerca de cinco metros de distância do corpo de Hingest.

– Meu Deus! – disse Studdock. – Você não quer dizer… a ideia é absurda.

– De nada adianta recorrer a mim – disse a senhorita Hardcastle. – Não sou advogada, nem júri, nem juiz. Sou somente uma policial. Estou lhe transmitindo os fatos.

– Devo entender que sou suspeito do assassinato de Hingest?

– Realmente não creio – disse o vice-diretor – que o senhor precise ter a menor apreensão quanto a existir, a esta altura, qualquer diferença radical entre seus colegas e si mesmo no que concerne ao ângulo pelo qual essa questão muito dolorosa deveria ser encarada. A questão é na realidade de natureza constitucional…

– Constitucional? – repetiu Mark, com raiva. – Se a entendo direito, a senhorita Hardcastle está me acusando de assassinato.

Os olhos de Wither o contemplavam como que de uma distância infinita.

– Ah – disse ele –, creio que sua impressão realmente não faz justiça à posição da senhorita Hardcastle. Aquele elemento no Instituto que ela representa seria estritamente ultra vires [além das forças] ao fazer qualquer coisa dessa natureza dentro do Inec… supondo, mas meramente, é claro, para fins de argumentação, que eles desejassem, ou viessem a desejar num estágio posterior, fazê-lo… enquanto, no que concerne às autoridades externas, sua função, não importa como a definamos, seria perfeitamente inconsistente com qualquer ação dessa ordem; pelo menos, no sentido em que eu entendo que o senhor está usando os termos.

– Mas é com as autoridades externas que eu me preocupo, suponho – disse Mark. Sua boca estava seca, e ele tinha dificuldade em se fazer ouvir. – Até onde eu possa entender, a senhorita Hardcastle está dizendo que vou ser preso.

– Pelo contrário – disse Wither. – Este é precisamente um daqueles casos em que se vê o enorme valor de possuirmos nossa própria força executiva. Esta é uma questão que poderia, receio, lhe causar uma inconveniência bastante considerável, se a polícia comum tivesse descoberto a carteira, ou se nós estivéssemos na posição de um cidadão comum que sentisse ser seu dever entregar a carteira à polícia, como nós mesmos sentiríamos ser nosso dever, se um dia estivéssemos nessa situação muito diferente. Não sei se a senhorita Hardcastle deixou perfeitamente claro para você que foram seus policiais, e somente eles, que fizeram essa descoberta… hum… embaraçosa.

– Mas aonde o senhor quer chegar? – disse Mark. – Se a senhorita Hardcastle acredita que não existe à primeira vista um caso contra mim, por que estou sendo acusado desta forma? E, se ela acredita, como pode deixar de informar às autoridades?

– Meu caro amigo – disse Wither, num tom antediluviano –, não há o menor desejo por parte do Comitê de insistir em definir, em casos dessa natureza, os poderes de ação da nossa própria polícia, muito menos (o que está em questão aqui) seus poderes de omissão. Creio que ninguém sugeriu que a senhorita Hardcastle esteja obrigada, em qualquer sentido que limite sua iniciativa, a comunicar a autoridades externas, que pela própria organização supostamente são menos adequadas para lidar com esse tipo imponderável e quase técnico de inquéritos que costumam surgir, quaisquer fatos adquiridos por ela e por sua equipe durante suas funções internas no Inec.

– Devo entender – disse Mark – que a senhorita Hardcastle acredita ter fatos que justifiquem minha detenção pelo assassinato do senhor Hingest, mas está se oferecendo gentilmente para suprimi-los?

– Agora você captou, Studdock – disse a Fada. Daí a um instante, pela primeira vez que Mark viu, ela de fato acendeu o charuto, soprou uma nuvem de fumaça e sorriu; ou pelo menos recuou os lábios para que seus dentes se tornassem visíveis.

– Mas não é isso o que eu quero – disse Mark. Essa não era a pura verdade. A ideia de conseguir ocultar a coisa, de qualquer maneira e quase em quaisquer condições, quando se apresentou de início alguns segundos antes, tinha surgido como ar para alguém que se sente sufocar. No entanto, algo semelhante à cidadania ainda estava vivo nele, e ele passou, quase sem perceber essa emoção, a seguir uma linha diferente. – Não quero isso – disse ele, falando com a voz excessivamente alta. – Sou inocente. Acho melhor eu procurar imediatamente a polícia… quer dizer, a polícia de verdade.

– Se você quer ser julgado, arriscando-se à pena de morte – disse a Fada –, aí a questão é outra.

– Eu quero ser inocentado – disse Mark. – A acusação desmoronaria de uma vez. Não havia nenhum motivo concebível. E eu tenho um álibi. Todos sabem que dormi aqui naquela noite.

– É mesmo? – disse a Fada.

– O que você quer dizer? – perguntou Mark.

– Sempre existe um motivo, sabe? – disse ela. – Para qualquer um matar qualquer um. A polícia, são só seres humanos. Quando a engrenagem é acionada, eles naturalmente querem uma condenação.

Mark garantiu a si mesmo que não estava apavorado. Se ao menos Wither não mantivesse todas as janelas fechadas e depois acendesse um fogo exuberante!

– Há uma carta que você escreveu – disse a Fada.

– Que carta?

– Uma carta para um senhor Pelham, da sua faculdade, com data de seis semanas atrás, na qual você diz: “Quem dera Bill Nevasca fosse transportado para um mundo melhor.”

Como uma forte dor física, a lembrança daquele bilhete escrito às pressas voltou a Mark. Era o tipo de jocosidade boba, corrente no Elemento Progressista… o tipo de coisa que se poderia dizer dezenas de vezes por dia em Bracton a respeito de um adversário ou mesmo de um chato.

– Como essa carta foi parar nas suas mãos? – perguntou Mark.

– Creio, senhor Studdock – disse o vice-diretor –, que seria uma impropriedade sugerir que a senhorita Hardcastle deva dar qualquer tipo de explanação… em detalhe, quero dizer, do efetivo funcionamento da Polícia Institucional. Ao dizer isso, não pretendo nem por um momento negar que a maior confiança possível entre todos os membros do Inec é uma das características mais valiosas que o Instituto pode ter; e, na realidade, um sine qua non para aquela vida orgânica realmente concreta que esperamos que ele desenvolva. Entretanto, há necessariamente certas esferas, não definidas com nitidez, é claro, mas que acabam se revelando em resposta ao ambiente e em obediência ao etos residente ou dialética do todo, em que uma confidência que envolvesse a troca verbal de fatos haveria de… hum… frustrar o próprio objetivo.

– Vocês não supõem – disse Mark – que alguém possa considerar que aquela carta foi escrita a sério?

– Você já tentou alguma vez fazer um policial entender qualquer coisa? – perguntou a Fada. – Estou me referindo ao que você chama de policial de verdade.

Mark nada respondeu.

– E não creio que o álibi seja tão bom assim – disse a Fada. – Você foi visto conversando com Bill no jantar. Foi visto saindo pela porta da frente com ele, quando ele partiu. Ninguém o viu retornar. Nada se sabe dos seus movimentos até a hora do desjejum na manhã seguinte. Se tivesse ido com ele de carro até o local do assassinato, você teria tido tempo suficiente para voltar caminhando e se deitar por volta das duas e quinze. Noite de geada, sabe. Nenhum motivo para que seus sapatos tivessem ficado especialmente enlameados ou coisa que o valha.

– Se me permitem retomar um ponto mencionado pela senhorita Hardcastle – disse Wither –, este momento é um ótimo exemplo da imensa importância da Polícia Institucional. Há tantos matizes sutis envolvidos, que não seria razoável esperar que as autoridades convencionais os compreendam; mas que, desde que permaneçam, por assim dizer, dentro do círculo da nossa família (eu encaro o Inec, senhor Studdock, como uma enorme família), não precisam desenvolver nenhuma tendência a levar a qualquer decisão injusta da justiça.

Em decorrência de alguma confusão mental, que até então o tinha acometido em consultórios dentários e no escritório de diretores de escola, Mark começou quase a equiparar a situação que parecia aprisioná-lo à sua prisão literal nas quatro paredes do aposento quente. Se ao menos ele pudesse sair dali, em quaisquer condições, sair para o ar livre e a luz do sol, afastar-se pelos campos afora, para longe do estalido recorrente do colarinho do vice-diretor, das manchas vermelhas na ponta do charuto da senhorita Hardcastle e do quadro do rei, que estava na parede acima da lareira!

– O senhor de fato me aconselha – disse ele – a não procurar a polícia?

– Procurar a polícia? – perguntou Wither, como se essa ideia fosse totalmente nova. – Creio, senhor Studdock, que ninguém tinha contemplado a possibilidade de qualquer ato irrevogável dessa natureza, vindo da sua parte. Poder-se-ia até mesmo alegar que, com um ato desses, o senhor seria culpado… sem intenção, apresso-me a acrescentar… de certo grau de deslealdade para com seus colegas e especialmente para com a senhorita Hardcastle. Naturalmente, com isso o senhor estaria se colocando fora da nossa proteção…

– Essa é a questão, Studdock – disse a Fada. – Uma vez que você esteja nas mãos da polícia, você estará nas mãos da polícia.

O momento da decisão de Mark tinha passado por ele, sem que ele percebesse.

– Bem – disse ele –, o que vocês se propõem fazer?

– Eu? – disse a Fada. – Ficar quieta no meu canto. Sorte sua que fomos nós que encontramos a carteira e não alguma pessoa de fora.

– Não foi sorte somente do… hum… senhor Studdock – acrescentou Wither, em tom manso –, mas de todo o Inec. Não poderíamos ter nos mantido indiferentes…

– Há apenas um problema – disse a Fada. – O fato de não termos obtido sua carta para Pelham. Só uma cópia dela. Mas, com um pouco de sorte, isso não vai dar em nada.

– Então, não há nada a ser feito no momento? – perguntou Mark.

– Não – disse Wither. – Não. Nenhuma ação imediata de qualquer tipo de caráter oficial. Naturalmente é aconselhável que o senhor aja, como tenho certeza de que agirá, com a máxima prudência e… hum… hum… cautela durante os próximos meses. Desde que esteja conosco, creio que a Scotland Yard enxergaria a inconveniência de tentar agir, a menos que eles tivessem uma acusação muito clara mesmo. Sem dúvida é provável que algum… hum… tipo de teste de forças entre a polícia convencional e a nossa organização ocorra dentro dos próximos seis meses. Mas considero muito improvável que eles escolham esse caso para servir de teste.

A atitude de Wither era paternal.

– Quer dizer que eles já suspeitam de mim? – disse Mark.

– Esperamos que não – disse a Fada. – É claro que querem um prisioneiro. Nada mais natural. Mas de longe eles prefeririam alguém que não os envolvesse numa busca nas instalações do Inec.

– Mas vejam só, droga! – disse Mark. – Vocês não têm esperança de pegar o ladrão dentro de um dia ou dois? Vocês não vão fazer nada?

– O ladrão? – disse Wither. – Até o momento não houve a menor sugestão de que o corpo tivesse sido saqueado.

– Estou me referindo ao ladrão que roubou minha carteira.

– Ah… sim… sua carteira – disse o outro, afagando com muita delicadeza o rosto bonito, refinado. – Entendo. Será que compreendo bem que o senhor está fazendo uma acusação de roubo contra algum desconhecido, ou desconhecidos?

– Mas, por Deus! – gritou Mark. – Vocês não estavam supondo que alguém a tivesse roubado? Vocês acham que eu estava lá em pessoa? Vocês dois acham que sou um assassino?

– Por favor! – disse o vice-diretor. – Por favor, senhor Studdock, o senhor realmente não deve gritar. Além de ser uma conduta indiscreta, devo relembrá-lo de que o senhor está na presença de uma dama. Até onde eu consiga me lembrar, nada foi dito do nosso lado com referência a algum assassinato; nem foi feita nenhuma acusação dessa natureza. Minha única ansiedade é a de deixar perfeitamente claro o que todos nós estamos fazendo. Há, é claro, certas linhas de conduta e um modo de proceder que o senhor em tese poderia adotar e que tornaria para nós muito difícil continuar a discussão. Tenho certeza de que a senhorita Hardcastle concorda comigo.

– Para mim tanto faz – disse a Fada. – Por que motivo Studdock deveria começar a berrar conosco, só porque estamos tentando mantê-lo fora do banco dos réus, não faço ideia. Mas isso, cabe a ele decidir. Estou com um dia cheio e não quero ficar aqui parada a manhã inteira.

– Realmente – disse Mark –, eu teria imaginado ser desculpável…

– Queira se controlar, senhor Studdock – disse Wither. – Como eu disse antes, nós nos vemos como uma família, e não é preciso nada que se assemelhe a um pedido formal de desculpas. Todos nos entendemos uns aos outros e todos temos aversão a… hum… cenas. Talvez eu possa me permitir mencionar, do modo mais amistoso possível, que qualquer instabilidade de temperamento seria considerada pelo Comitê… bem, não muito favorável à confirmação da sua nomeação. É claro que todos estamos falando com o máximo sigilo.

Havia muito que Mark tinha deixado de se importar com o trabalho em si; mas ele percebia que a ameaça de demissão se transformara em uma ameaça de enforcamento.

– Sinto muito se fui grosseiro – disse ele, por fim. – Que conselho vocês me dão?

– Não dê um passo fora de Belbury, Studdock – disse a Fada.

– Creio que a senhorita Hardcastle não poderia ter lhe dado melhor conselho – disse Wither. – E agora que a senhora Studdock vem se reunir ao senhor aqui, esse cativeiro temporário… entenda que estou usando a palavra num sentido metafórico… não será uma provação tão séria. O senhor deve encarar esta casa como seu lar, senhor Studdock.

– Ah… falando nisso, senhor – disse Mark –, não tenho certeza total quanto a trazer minha mulher para cá. Por sinal, ela não está muito bem de saúde.

– Sem dúvida, nesse caso, o senhor deve estar ainda mais ansioso para tê-la aqui.

– Creio que não seria conveniente para ela, senhor.

Os olhos do VD mudaram de foco, e sua voz ficou mais baixa.

– Quase me esqueci, senhor Studdock – disse ele –, de parabenizá-lo por sua apresentação ao nosso Cabeça. Ela assinala uma transição importante na sua carreira. Todos nós percebemos que o senhor de fato é um de nós, num sentido mais profundo. Estou certo de que nada está mais longe das suas intenções do que rejeitar o interesse amistoso, quase paternal, que ele sente pelo senhor. Ele está ansioso por dar as boas-vindas à senhora Studdock entre nós o mais cedo possível.

– Por quê? – perguntou Mark, de repente.

Wither olhou para Mark com um sorriso indescritível.

– Meu caro rapaz – disse ele. – Pela união, sabe? O círculo familiar. Ela… ela faria companhia à senhorita Hardcastle! – Antes que Mark se recuperasse dessa concepção perturbadoramente nova, Wither ergueu-se e foi arrastando os pés na direção da porta. Ele se calou com uma das mãos na maçaneta e a outra no ombro de Mark.

– O senhor deve estar com fome, precisando tomar o desjejum – disse ele. – Não se prenda por mim. Comporte-se com a máxima cautela. E… e… – A esta altura seu rosto mudou de repente. A boca muito aberta pareceu de imediato se assemelhar à boca de algum animal enfurecido. O que tinha sido a indefinição senil dos olhos tornou-se uma ausência de toda e qualquer expressão especificamente humana. – E traga a moça. Está entendendo? Traga sua mulher – acrescentou ele. – O Cabeça… não tem paciência.

Quando fechou a porta atrás de si, Mark pensou de imediato “Agora! Os dois estão ali dentro juntos. Pelo menos por um minuto estou a salvo.” Sem nem mesmo esperar para apanhar o chapéu, ele foi andando vigorosamente até a porta da frente e desceu pela entrada de carros. Nada a não ser a impossibilidade física o impediria de ir a Edgestow e avisar Jane. Depois disso, ele não tinha plano algum. Até a vaga ideia de escapar para os Estados Unidos, que, numa época mais simples, tinha reconfortado tantos fugitivos, agora lhe era negada. Ele já tinha lido nos jornais a calorosa aprovação do Inec e de todas as suas obras, vinda dos Estados Unidos e da Rússia. Algum pobre inocente útil, como ele mesmo, as escrevera. As garras do Instituto estavam fincadas em todos os países. No vapor, se ele conseguisse ir por mar; na lancha de desembarque, se ele alcançasse algum porto estrangeiro, os agentes do Instituto estariam à sua espera.

Ele já tinha passado da estrada; estava no cinturão de árvores. Praticamente não fazia um minuto que tinha deixado o escritório do VD, e ninguém o alcançara. Mas toda a aventura de ontem estava acontecendo novamente. Um vulto alto, encurvado, que arrastava os pés, rangia e cantarolava uma música, estava fechando o caminho. Mark nunca tinha lutado. Impulsos ancestrais abrigados no seu corpo – aquele corpo que sob tantos aspectos era mais sábio que sua mente – guiaram o golpe que ele dirigiu para a cabeça do seu adversário senil. Contudo, não houve impacto. De repente, o vulto tinha desaparecido.

Os que detêm maior conhecimento nunca chegaram a um acordo total quanto à explicação desse episódio. Pode ter sido que Mark, tanto naquela hora como no dia anterior, por estar esgotado, tenha tido uma alucinação de Wither, onde Wither não estava. Pode ter sido que a constante aparição de Wither, que quase a qualquer hora assombrava tantos aposentos e corredores de Belbury, fosse (num sentido bem comprovado da palavra) um fantasma – uma daquelas impressões sensoriais que uma personalidade forte em seu último estágio de decomposição pode fazer gravar, com maior frequência depois da morte, mas às vezes antes dela, na estrutura de um prédio, e que são removidas, não pelo exorcismo, mas por alterações arquitetônicas. Ou pode ter sido, afinal de contas, que as almas que perderam o bem intelectual recebam de fato em troca, e por um curto período, o vão privilégio de assim se reproduzirem em muitos lugares, como espectros. De qualquer modo, a coisa, o que quer que fosse, desapareceu.

O caminho atravessava na diagonal um capinzal, agora todo empoado com a geada, e o céu estava de um azul enevoado. Então, vinha um obstáculo para impedir a passagem de animais; depois dele, o caminho passava por três campos ao longo da borda de um arvoredo. Em seguida, um pouco para a esquerda, passava pelos fundos de uma fazenda, e na sequência por uma picada através de um bosque. Depois disso, surgiu o campanário de Courthampton. Os pés de Mark já estavam aquecidos, e ele começava a sentir fome. Atravessou uma estrada, passou por um rebanho de gado que baixou a cabeça e bufou para ele, cruzou um córrego por uma pinguela e assim entrou nos sulcos congelados da alameda que o levou até Courthampton.

A primeira coisa que viu quando entrou na rua principal do povoado foi uma carroça. Uma mulher e três crianças estavam sentadas ao lado do homem que a estava conduzindo, e na carroça estavam empilhados cômodas, armações de cama, colchões, caixas e um canário numa gaiola. Imediatamente depois dela, vinham um homem, uma mulher e uma criança a pé, empurrando um carrinho de bebê. Este também estava lotado de pequenos objetos domésticos. Logo atrás uma família empurrava um carrinho de mão, e depois uma carruagem de duas rodas com uma carga pesada; e então um carro velho, buzinando sem parar, mas sem conseguir sair do seu lugar na procissão. Um fluxo constante desse tipo de tráfego vinha passando pelo povoado. Mark nunca tinha visto a guerra: se tivesse, teria reconhecido de imediato os sinais de fuga. Em todos aqueles cavalos e homens andando a duras penas e em todos aqueles veículos, ele teria lido claramente a mensagem “inimigo atrás de nós”.

O tráfego era tão constante que ele levou muito tempo para chegar à encruzilhada junto do bar, onde se podia encontrar uma tabela emoldurada e envidraçada dos horários de ônibus. Só haveria um para Edgestow ao meio-dia e quinze. Ele ficou por ali, sem entender nada do que via, mas se perguntando; Courthampton era normalmente um povoado muito tranquilo. Por uma ilusão feliz e nada incomum, ele se sentia menos ameaçado, agora que Belbury estava longe dos seus olhos, e pensava surpreendentemente pouco no futuro. Às vezes pensava em Jane, às vezes em bacon e ovos, peixe frito, goles escuros e perfumados de café servidos em xícaras grandes. Às onze e meia, o bar abriu. Ele entrou e pediu uma caneca de cerveja e um pão com queijo.

De início o bar estava vazio. Durante a meia hora seguinte, homens foram chegando até quatro estarem presentes. Para começar, eles não falaram da procissão infeliz, que não parava de passar diante das janelas. Na realidade, por algum tempo, eles nada disseram. Então um homenzinho com o rosto como um batata velha fez uma observação para ninguém em particular.

– Vi o velho Rumbold numa noite dessas.

Ninguém respondeu por uns cinco minutos, e então um rapaz muito novo, de perneiras, falou:

– Ele deve é estar arrependido de ter chegado a tentar.

E assim a conversa sobre Rumbold prosseguiu um pouco, meio desanimada. Foi só quando o assunto de Rumbold se esgotou que a conversa, de um modo muito indireto e por estágios gradativos, começou a lançar luz sobre o fluxo de refugiados.

– Ainda saindo – disse um homem.

– Ah – disse outro.

– A esta altura não podem restar muitos por lá.

– Não sei mesmo onde todos vão se enfiar.

Aos poucos, toda a história foi contada. Aqueles eram os refugiados de Edgestow. Alguns foram despejados de casa; alguns, apavorados por causa dos tumultos; e ainda outros pela restauração da ordem. Parecia que uma espécie de terror tinha se estabelecido na cidadezinha.

– Ouvi dizer que houve duzentas prisões ontem – disse o dono do bar.

– Ah – disse o rapaz. – Eles são duros de roer, o pessoal da polícia do Inec, cada um deles. Deixam meu velho apavorado de verdade, é o que digo. – Ele terminou com uma risada.

– Não é tanto a polícia, mas os trabalhadores, pelo que ouvi dizer – comentou outro. – Eles nunca deveriam ter trazido aqueles galeses e irlandeses.

Mas foi praticamente só até aí que a crítica chegou. O que impressionou Mark profundamente foi a ausência quase total de indignação entre os interlocutores, ou mesmo de alguma solidariedade nítida pelos refugiados. Todos os ali presentes sabiam de pelo menos um ultraje ocorrido em Edgestow; porém todos concordavam que aqueles refugiados deviam estar exagerando.

– Está no jornal de hoje de manhã que as coisas estão se acomodando bastante bem – disse o dono do bar.

– É mesmo – concordaram os outros.

– Sempre vai ter alguém que se sinta incomodado – disse o homem de cara de batata.

– De que adianta se sentir incomodado? – perguntou outro. – A coisa vai continuar. Não tem como fazer parar.

– É o que eu digo – disse o dono do bar. Fragmentos de artigos que Mark tinha escrito vagavam de um lado para o outro. Aparentemente ele e seus pares haviam feito um bom trabalho. A senhorita Hardcastle superestimara a resistência das classes operárias à propaganda.

Quando chegou a hora, ele não teve a menor dificuldade para pegar o ônibus, que estava na verdade vazio, pois todo o movimento era no sentido oposto. O veículo o deixou no alto de Market Street, e Mark partiu imediatamente na direção do apartamento. A cidade inteira apresentava uma nova expressão. De cada três casas, uma estava vazia. Cerca de metade das lojas estava com as vitrines cobertas por tábuas. À medida que foi subindo e chegou à região das grandes mansões com jardins, ele percebeu que muitas tinham sido confiscadas e exibiam cartazes brancos com o símbolo do Inec – um musculoso nu masculino, segurando um raio. Em todas as esquinas, e muitas vezes entre uma e outra, viam-se descansando ou perambulando à vontade policiais do Inec, com capacete, brandindo cassetetes, com revólveres em coldres nos cintos pretos brilhosos. Seus rostos redondos e brancos com a boca aberta se mexendo devagar, enquanto eles mascavam chiclete, permaneceram durante muito tempo na sua memória. Havia também avisos por toda parte, que Mark não parou para ler: seu cabeçalho dizia Regulamentos de Emergência e eles traziam a assinatura de Feverstone.

Estaria Jane em casa? Ele achou que não aguentaria, se Jane não estivesse em casa. Muito antes de chegar ao prédio, ele vinha remexendo na chave dentro do bolso. A porta da frente estava trancada. Isso queria dizer que os Hutchinsons, que ocupavam o andar térreo, não se encontravam ali. Ele abriu a porta e entrou. Tudo pareceu frio e úmido na escada; frio e úmido no patamar.

– Ja-a-ane – gritou ele quando abriu a porta do apartamento; mas já tinha perdido a esperança. Assim que entrou, ele soube que o lugar estava desabitado. Uma pilha de cartas fechadas estava no capacho por trás da porta. Não se ouvia nenhum som, nem mesmo o tique-taque de um relógio. Tudo estava em ordem. Jane devia ter saído algum dia de manhã imediatamente depois de arrumar todos os aposentos. Os panos de prato pendurados na cozinha estavam sequíssimos. Estava claro que não tinham sido usados pelo menos nas últimas vinte e quatro horas. O pão no armário estava dormido. Havia uma jarra com leite pela metade, mas o leite tinha engrossado e se recusava a ser derramado. Ele continuou andando de um aposento para outro, a passos pesados, muito depois de ter perfeita certeza da verdade, espantado com o ar abatido e patético que permeia as casas abandonadas. Mas era óbvio que de nada adiantava ficar por ali. Nasceu nele um crepitar de raiva irracional. Por que Jane não lhe dissera que ia embora? Ou será que alguém a teria levado dali? Talvez houvesse um bilhete para ele. Mark apanhou uma pilha de cartas do console da lareira, porém eram apenas cartas que ele próprio pusera ali para serem respondidas. Então, em cima da mesa, ele percebeu um envelope endereçado à senhora Dimble em sua casa lá na outra margem do Wynd. Quer dizer que aquela mulher detestável estivera ali! Ele achava que o casal Dimble jamais gostara dele. Era provável que tivessem convidado Jane para ficar com eles. Sem dúvida, já deviam estar se intrometendo de algum modo. Ele precisava ir a Northumberland para ver Dimble.

A ideia de se irritar com o casal Dimble ocorreu a Mark quase como uma inspiração. Esbravejar um pouco como um marido ultrajado em busca de sua mulher seria uma mudança agradável, em comparação com as atitudes que ele recentemente vinha sendo forçado a adotar. Na descida ao centro da cidade, ele parou para tomar uma bebida. Quando chegou ao Bristol e viu o cartaz do Inec ali pregado, quase disse “Droga” e deu meia-volta, antes de se lembrar de que era uma alta autoridade no Inec e não um integrante do público em geral ao qual o Bristol agora proibia a entrada. À porta, perguntaram-lhe quem ele era e assumiram uma atitude obsequiosa quando ele lhes disse. Um fogo agradável estava aceso. Depois do dia extenuante que tinha passado, Mark se sentiu no direito de pedir um uísque duplo; e depois desse, um segundo. A bebida completou a mudança na sua disposição mental, que se iniciara no instante em que ele concebeu a ideia de ter uma queixa contra o casal Dimble. O estado de Edgestow estava de alguma forma relacionado com isso. Havia nele um elemento para o qual todas aquelas demonstrações de poder sugeriam principalmente o quanto era melhor e mais adequado, no final das contas, fazer parte do Inec do que ficar de fora. Mesmo agora… será que ele não tinha levado a sério demais todas aquelas providências acerca de um julgamento por homicídio? É claro que era assim que Wither administrava as coisas: ele gostava de ter alguma ameaça suspensa sobre a cabeça de todos. Aquele não passava de um meio para mantê-lo em Belbury e forçá-lo a mandar buscar Jane. E, pensando bem, por que não? Ela não poderia continuar a morar sozinha para sempre. E a mulher de um homem que pretendia ter uma carreira e morar no centro das decisões teria de aprender a não se surpreender à toa. Em todo caso, o primeiro passo era procurar o tal Dimble.

Ele saiu do Bristol sentindo-se, como teria dito, um homem diferente. De fato, Mark era um homem diferente. De agora em diante, até se defrontar com o momento da decisão final, os diferentes homens nele surgiriam com uma rapidez espantosa, e cada um pareceria bastante completo, enquanto durasse. Assim, derrapando com violência de um lado para o outro, sua juventude se aproximava do momento em que ele começaria a ser uma pessoa.

– Entre – disse Dimble, nos seus aposentos em Northumberland. Acabava de terminar o trabalho com seu último aluno do dia e pretendia partir para St. Anne’s dali a alguns minutos.

– Ah, é você, Studdock – acrescentou ele, quando a porta se abriu. – Pode entrar. – Ele tentava falar com naturalidade, mas estava surpreso com a visita e chocado com o que estava vendo. O rosto de Studdock pareceu-lhe mudado desde seu último encontro. Estava mais gordo, mais pálido, e havia em sua expressão uma vulgaridade nova.

– Vim para perguntar por Jane – disse Mark. – Sabe onde ela está?

– Receio não poder lhe dar o endereço dela – disse Dimble.

– Quer dizer que não sabe seu endereço?

– Só não posso lhe dar – disse Dimble.

De acordo com a programação de Mark, esse era o ponto no qual ele deveria ter começado a fazer pressão. Contudo, agora que estava ali na sala, não tinha a mesma sensação. Dimble sempre o tratara com uma cortesia meticulosa, e Mark sempre tivera a impressão de que Dimble não gostava dele. Isso não tinha feito com que ele não gostasse de Dimble. Apenas o levara a uma tagarelice constrangida na presença dele e a uma vontade de agradar. A retaliação não era um dos defeitos de Mark. A verdade é que Mark gostava que gostassem dele. Uma demonstração de desdém não o despachava a sonhar com uma vingança, mas com piadas ou realizações brilhantes que um dia conquistariam a boa vontade do homem que o desdenhara. Se ele chegasse a ser cruel, seria para baixo, para com seus inferiores e os excluídos que procurassem sua consideração, não para cima, para com aqueles que a rejeitavam. Havia nele muito de um spaniel.

– O que você quer dizer? – perguntou ele. – Não estou entendendo.

– Se você tem o menor interesse pela segurança da sua mulher, não me peça que lhe diga para onde ela foi – disse Dimble.

– Segurança?

– Segurança – repetiu Dimble, com enorme severidade.

– Segurança com relação a quê?

– Você não sabe o que aconteceu?

– O que aconteceu?

– Na noite do grande tumulto, a Polícia Institucional tentou prendê-la. Ela escapou, mas não antes de ser torturada.

– Torturada? O que você está querendo dizer?

– Queimada com charuto.

– É por isso que vim – disse Mark. – Jane… receio que ela esteja à beira de um colapso nervoso. Isso não aconteceu de verdade, sabia?

– A médica que tratou das queimaduras tem outra opinião.

– Deus do céu! – disse Mark. – Quer dizer que eles a torturaram mesmo? Mas veja só…

Diante do olhar fixo e calmo de Dimble, ele descobriu que era difícil falar.

– Por que não fui informado desse abuso? – gritou ele.

– Por seus colegas? – perguntou Dimble, secamente. – É estranho você fazer essa pergunta a mim. Deveria entender as engrenagens do Inec melhor do que eu.

– Por que você não me disse? Por que não se fez nada a respeito? Vocês procuraram a polícia?

– A Polícia Institucional?

– Não, a polícia comum.

– Você realmente não sabe que já não existe polícia comum em Edgestow?

– Suponho que haja alguns magistrados.

– Há o comissário de emergência, lorde Feverstone. Parece que você não entendeu bem. Esta é uma cidade conquistada e ocupada.

– Então, por quê, em nome de Deus, vocês não entraram em contato comigo?

– Com você? – perguntou Dimble.

Por um instante, o primeiro em muitos anos, Mark viu a si mesmo exatamente da mesma forma que um homem como Dimble o via. Quase ficou sem fôlego.

– Olhe aqui – disse ele. – Você não… é absurdo demais! Você não pode imaginar que eu tivesse conhecimento disso. Você não acredita de verdade que eu mando policiais saírem por aí para maltratar minha própria mulher! – Ele tinha começado com um tom de indignação, mas terminou tentando insinuar alguma jocosidade. Se ao menos Dimble desse a menor sombra de um sorriso… qualquer coisa para passar a conversa para outro patamar.

Mas Dimble nada disse, e seu rosto não relaxou. Na realidade, ele não tinha certeza absoluta de Mark não ter se rebaixado tanto assim, porém por caridade não quis dizê-lo.

– Sei que você nunca me viu com bons olhos – disse Mark. – Mas eu não sabia que era tão grave. – E novamente Dimble manteve-se calado, mas por um motivo que Mark não poderia adivinhar. A verdade era que Mark tinha acertado na mosca. A consciência de Dimble havia anos o acusava de falta de caridade para com Studdock, e ele tinha se esforçado para se corrigir. Estava lutando agora.

– Bem – disse Studdock, com secura, depois que o silêncio durou alguns segundos –, parece que não há muito mais a dizer. Insisto em saber onde Jane está.

– Você quer que ela seja levada para Belbury?

Mark estremeceu. Foi como se o outro tivesse lido o pensamento exato que lhe ocorrera no Bristol meia hora antes.

– Não vejo por que, Dimble, eu deveria ser interrogado desse modo. Onde está minha mulher?

– Não tenho permissão para lhe dizer. Ela não está na minha casa, nem sob minha proteção. Ela está bem, feliz e em segurança. Se você ainda tiver a menor consideração pela felicidade dela, não fará nenhuma tentativa de entrar em contato com ela.

– Será que sou algum tipo de leproso ou criminoso a quem não se possa confiar nem o endereço em que ela está?

– Desculpe-me. Você é integrante do Inec, que já a insultou, torturou e prendeu. Desde que ela escapou, somente foi deixada em paz porque seus colegas não sabem onde ela está.

– E se realmente tiver sido a polícia do Inec, você supõe que eu não vá exigir deles uma explicação completa? Com mil demônios, por quem você me toma?

– Minha única esperança é a de que você não detenha absolutamente nenhum poder no Inec. Se você não tiver nenhum poder, não terá como protegê-la. Se tiver, é porque se identifica com as políticas do Instituto. Em nenhum dos dois casos, eu me disporei a ajudá-lo a descobrir onde Jane está.

– É um absurdo – disse Mark. – Mesmo que por acaso eu tenha um emprego no Inec neste momento, você me conhece.

– Eu não o conheço – disse Dimble. – Não faço a menor ideia dos seus objetivos ou motivações.

Pareceu a Mark que Dimble o olhava, não com raiva ou desprezo, e sim com aquele nível de abominação que produz nos que a sentem uma espécie de constrangimento – como se fosse uma obscenidade, que as pessoas decentes são forçadas, por pura vergonha, a fingir que não perceberam. Nisso Mark estava totalmente equivocado. Na realidade, sua presença estava agindo sobre Dimble como uma convocação a um rígido autocontrole. Dimble estava simplesmente fazendo um enorme esforço para não odiar, não desprezar, acima de tudo não ter prazer em odiar e desprezar; e não fazia ideia da severidade paralisada que esse esforço conferia ao seu rosto. Todo o resto da conversa transcorreu sob a influência desse mal-entendido.

– Houve algum erro ridículo – disse Mark. – Estou lhe dizendo que vou fazer uma investigação profunda. Vou protestar. Suponho que algum policial recém-alistado tenha se embriagado ou coisa semelhante. Bem, vou acabar com ele. Eu…

– Foi a chefe da sua polícia, a senhorita Hardcastle em pessoa, a responsável.

– Muito bem. Então eu acabo com ela. Você achava mesmo que eu fosse aceitar isso sem me rebelar? Mas tem de haver algum erro. Não pode…

– Você conhece bem a senhorita Hardcastle? – perguntou Dimble. Mark ficou em silêncio. E pensou (de modo totalmente equivocado) que Dimble estava lendo o fundo da sua mente e vendo lá sua certeza de que a senhorita Hardcastle tinha feito exatamente isso; e que ele não tinha maiores poderes para exigir dela uma explicação do que para deter a revolução da Terra.

De repente, a imobilidade do rosto de Dimble alterou-se, e ele falou com uma voz diferente.

Você tem como exigir que ela lhe preste contas? – disse ele. –Você já está tão próximo assim do centro do poder de Belbury? Se for esse o caso, você consentiu no assassinato de Hingest, no assassinato de Compton. Se for esse o caso, foi por suas ordens que Mary Prescott foi estuprada e golpeada até morrer nos galpões atrás da estação. É com sua aprovação que criminosos… criminosos honestos cujas mãos você é indigno de tocar… estão sendo tirados das prisões para onde juízes britânicos os mandaram, a partir da condenação por júris britânicos, e sendo despachados para Belbury para serem submetidos, por um período indefinido, fora do alcance da lei, a quaisquer torturas e violências à identidade pessoal que vocês chamam de Tratamento Corretivo. Foi você quem expulsou duas mil famílias de casa, para morrer de exposição às intempéries em qualquer vala daqui até Birmingham ou Worcester. É você que pode nos informar por que Place, Rowley e Cunningham (aos oitenta anos de idade) foram detidos, e onde se encontram. E, se você estiver envolvido até esse ponto, eu não só não entregaria Jane aos seus cuidados, como também não lhe entregaria meu cachorro.

– Ora, ora – disse Mark. – Isso é absurdo. Sei que foi cometido um ou outro abuso de autoridade. Numa força policial sempre se têm alguns do tipo errado. Especialmente no início. Mas, o que quero saber é o que cheguei a fazer para você me responsabilizar por todos os atos que qualquer funcionário do Inec tenha cometido… ou que se diz na imprensa marrom que ele teria cometido.

– Imprensa marrom! – vociferou Dimble, que parecia a Mark estar ainda maior em termos físicos do que alguns minutos antes. – Que tolice é essa? Você imagina que eu não saiba que vocês detêm o controle sobre todos os jornais do país, com exceção de um? Que por acaso foi esse único que não saiu nesta manhã. Seus gráficos entraram em greve. Os pobres patetas dizem que se recusam a imprimir artigos que ataquem o Instituto do povo. De onde vêm as mentiras publicadas em todos os outros jornais, você sabe melhor que eu.

Pode parecer estranho dizer que Mark, tendo por muito tempo vivido num mundo sem caridade, tinha mesmo assim raramente deparado com a raiva verdadeira. Maldade ele tinha encontrado em profusão, mas sempre operada por meio de desprezo, zombaria e punhaladas traiçoeiras. A testa, os olhos e a voz daquele senhor idoso tinham sobre ele um efeito que era sufocante e perturbador. Em Belbury usavam-se os termos “ganidos” e “choramingos” para descrever qualquer oposição que os atos de Belbury despertassem no mundo lá fora. E Mark nunca dispusera de imaginação suficiente para perceber como seriam realmente os “choramingos”, quando se apresentassem diante do seu nariz.

– Estou lhe dizendo que eu não sabia de nada – gritou ele. – Inferno, eu sou o prejudicado. Pelo jeito que você fala, qualquer um pensaria que foi sua mulher que foi maltratada.

– E poderia ter sido. E ainda pode ser. Pode ser qualquer homem ou mulher na Inglaterra. Era uma mulher e cidadã. Que diferença faz com quem ela era casada?

– Mas eu lhe digo que vou fazer um escândalo. Vou destruir a megera demoníaca que fez isso, nem que signifique destruir o Inec inteiro.

Dimble nada disse. Mark sabia que Dimble sabia que ele estava dizendo tolices. E ainda assim Mark não conseguia parar. Se não se permitisse esse rompante, ele não saberia o que dizer.

– A tolerar isso – bradou ele –, prefiro sair do Inec.

– Você está falando sério? – perguntou Dimble, com um olhar penetrante. E para Mark, cujas ideias agora eram só uma confusão fluida de vaidade ferida e medos e vergonhas conflitantes, aquele olhar mais uma vez pareceu acusador e intolerável. Na realidade, tinha sido um relance de esperança despertada. Pois a caridade tem esperança de tudo. Havia porém cautela nele. E entre a esperança e a cautela Dimble descobriu-se mais uma vez reduzido ao silêncio.

– Vejo que não confia em mim – disse Mark, instintivamente chamando ao rosto a expressão masculina e ferida que muitas vezes lhe prestara bons serviços em salas de diretores.

Dimble era um homem franco.

– Não – disse ele, após um silêncio meio longo. – Não mesmo.

Mark deu de ombros e lhe virou as costas.

– Studdock – disse Dimble. – Esta não é uma hora para tolices nem para elogios. Pode ser que nós dois estejamos a minutos da morte. É provável que você tenha sido seguido ao entrar na faculdade. E eu, de qualquer maneira, não me proponho morrer com falsidades corteses na boca. Não confio em você. Por que eu deveria? Você é (pelo menos até certo ponto) cúmplice dos piores homens deste mundo. Até o fato de você vir me procurar nesta tarde pode não passar de uma armadilha.

– Você não sabe que eu não seria capaz disso? – disse Mark.

– Pare de dizer besteiras! – disse Dimble. – Pare de assumir posturas e representar, pelo menos por um minuto. Quem você acha que é para falar desse jeito? Eles já corromperam homens melhores que você ou eu. Straik foi um homem bom. Filostrato foi no mínimo um grande gênio. Até mesmo Alcasan… sim, sim, eu sei quem é seu Cabeça… foi pelo menos um assassino raso: algo melhor do que eles fizeram dele agora. Quem é você para estar imune a isso?

Mark engasgou. A descoberta do quanto Dimble sabia de repente inverteu todo o seu quadro da situação. Não lhe restava nenhuma lógica.

– Mesmo assim – continuou Dimble –, sabendo de tudo isso, sabendo que você pode não passar de isca numa armadilha, vou correr um risco. Arriscarei coisas em comparação com as quais nossas vidas são insignificantes. Se for sério seu desejo de deixar o Inec, eu o ajudarei.

Num instante, foi como se os portões do Paraíso estivessem se abrindo… e então, de imediato, a cautela e o incurável desejo de contemporizar voltaram velozes. A fresta voltou a se fechar.

– Eu… eu preciso pensar melhor – murmurou ele.

– Não há tempo – disse Dimble. – E realmente não há em que pensar. Estou lhe oferecendo um jeito de voltar à família humana. Só que você precisa vir de pronto.

– É uma questão que afeta toda a minha carreira futura.

– Sua carreira! – exclamou Dimble. – É uma questão de condenação eterna ou de uma última oportunidade. Mas você precisa vir imediatamente.

– Acho que não estou entendendo – disse Mark. – Você não para de sugerir algum tipo de perigo. Que perigo? E que poderes você tem para proteger a mim, ou a Jane, se eu realmente fugir?

– Você vai precisar correr esse risco – disse Dimble. – Não posso lhe oferecer nenhuma segurança. Não está entendendo? Não há segurança alguma para ninguém agora. A batalha começou. Estou lhe oferecendo um lugar no lado certo. Não sei qual lado irá vencer.

– Por sinal – disse Mark –, estive mesmo pensando em sair. Mas preciso pensar melhor. Você apresenta as coisas de um modo bastante estranho.

– Não temos tempo – disse Dimble.

– E se eu viesse procurá-lo de novo amanhã?

– Tem certeza de que conseguirá?

– Ou daqui a uma hora? Convenhamos, é razoável. Daqui a uma hora você estará aqui?

– O que uma hora pode fazer por você? Você só está protelando na esperança de que seu pensamento fique menos claro.

– Mas você estará aqui?

– Se você fizer questão. Mas nada de bom pode resultar disso.

– Quero pensar. Quero pensar – disse Mark, e saiu da sala sem esperar por uma resposta.

Mark tinha dito que queria pensar. Na realidade, ele queria beber e fumar. Pensamentos ele tinha em quantidade – mais do que desejava. Um pensamento sugeria que se agarrasse a Dimble como uma criança perdida se agarra a um adulto. Outro lhe sussurrava: “Loucura. Não rompa com o Inec. Eles virão atrás de você. E como Dimble poderá salvá-lo? Vão matá-lo.” Um terceiro implorava, mesmo agora, que ele não descartasse como perda total sua posição conquistada com esforço no Círculo do Poder em Belbury: tinha, tinha de haver algum meio-termo. Um quarto recuava diante da ideia de um dia voltar a ver Dimble: a lembrança de cada tom usado por aquele homem lhe causava um terrível desconforto. E ele queria Jane, e queria castigar Jane por ser amiga de Dimble; e queria nunca mais ver Wither, e queria voltar furtivamente e de alguma maneira fazer as pazes com Wither. Ele queria estar em perfeita segurança, mas também ser muito indiferente e ousado; ser admirado pela franqueza máscula entre os Dimbles e ao mesmo tempo também pelo realismo e entendimento em Belbury; beber mais dois uísques duplos e também analisar tudo com muita clareza e serenidade. E estava começando a chover, e sua cabeça estava doendo novamente. Ao inferno com tudo aquilo. Inferno, inferno! Por que herdara uma mentalidade tão imprestável? Por que sua instrução tinha sido tão falha? Por que o sistema da sociedade era tão irracional? Por que tinha tanto azar?

Ele começou a andar depressa.

Chovia bastante forte quando ele chegou à residência da faculdade. Parecia que algum tipo de van estava parada na rua, do lado de fora, e havia três ou quatro homens uniformizados usando capas. Mais tarde ele se lembrou de como o tecido impermeável molhado brilhava à luz do poste. Uma lanterna foi dirigida para seu rosto.

– Com licença, senhor – disse um dos homens. – Devo lhe perguntar seu nome.

– Studdock – disse Mark.

– Mark Gainsby Studdock – disse o homem –, é meu dever prendê-lo pelo assassinato de William Hingest.

O doutor Dimble dirigiu até St. Anne’s insatisfeito consigo mesmo, atormentado pela suspeita de que, se tivesse sido mais sábio, ou se tivesse sentido uma caridade mais perfeita por aquele rapaz muito infeliz, talvez pudesse ter feito algo por ele. “Será que cedi à minha raiva? Quis demonstrar superioridade moral? Eu lhe disse tudo o que ousei?”, pensou ele. E então veio a desconfiança mais profunda que lhe era habitual. “Você não conseguiu esclarecer as coisas porque no fundo não queria? Queria apenas ferir e humilhar? Satisfazer-se com sua superioridade? Existe uma Belbury inteira dentro de você também?” A tristeza que o dominou era nova para ele. “E assim”, ele citou os escritos de Irmão Lourenço, “assim farei, sempre que Tu me deixares só.”

Assim que saiu da cidade, ele seguiu sem pressa, quase perambulando sobre rodas. O céu estava vermelho para o poente, e as primeiras estrelas já apareciam. Muito abaixo dele, num vale, viam-se as luzes já acesas em Cure Hardy. “Ainda bem que o povoado se encontra a uma distância suficiente de Edgestow para estar a salvo”, pensou. A alvura súbita de uma coruja-branca em voo rasante atravessou esvoaçante a penumbra do bosque à sua esquerda. Ela lhe deu uma sensação deliciosa da chegada da noite. Ele estava cansado, mas de um modo muito agradável. Ansiava por um início de noite tranquilo, pois dormiria cedo.

– Aqui está ele! O doutor Dimble está chegando – gritou Ivy Maggs, quando ele chegou com o carro na porta da frente do Solar.

– Não guarde o carro, Dimble – disse Denniston.

– Ah, Cecil! – disse sua mulher. E ele viu medo na sua expressão. Parecia que todos os moradores da casa estavam à sua espera.

Dali a alguns instantes, piscando os olhos na cozinha iluminada, ele viu que aquela não haveria de ser uma noite normal. O diretor em pessoa estava lá, sentado junto da lareira, com a gralha no ombro e o senhor Bultitude a seus pés. Havia sinais de que todos os demais tinham jantado cedo, e Dimble se descobriu quase de imediato sentado à cabeceira da mesa, com recomendações nervosas de que comesse e bebesse, por parte de sua mulher e da senhora Maggs.

– Não pare para fazer perguntas, querido – disse a senhora Dimble. – Continue comendo, enquanto eles falam. Faça uma boa refeição.

– Vai ter de sair de novo – disse Ivy Maggs.

– É – disse o diretor. – Nós vamos entrar em ação, finalmente. Sinto muito por mandá-lo sair no instante em que você chega; mas a batalha começou.

– Já ressaltei insistentemente – disse MacPhee – o absurdo de mandar um homem mais velho como você, que ainda por cima trabalhou o dia inteiro, quando cá estou eu, um camarada forte e robusto, sentado sem fazer nada.

– Não adianta, MacPhee – disse o diretor –, você não pode ir. Para começar, você não conhece a língua. E além disso… esta é uma hora que exige franqueza… você nunca se colocou sob a proteção de Maleldil.

– Nesta emergência e para seus objetivos, estou perfeitamente disposto – disse MacPhee – a admitir a existência desses seus eldila e de um ser chamado Maleldil que eles consideram seu rei. E eu…

– Você não pode ir – disse o diretor. – Eu não o enviarei. Seria como mandar uma criança de três anos para enfrentar um tanque. Ponha o outro mapa na mesa, onde Dimble possa vê-lo, enquanto continua com sua refeição. E agora, silêncio. A situação é a seguinte, Dimble. O que estava por baixo de Bragdon era um Merlin vivo. Sim, adormecido, se você quiser chamar de sono. E nada aconteceu até agora para demonstrar que o inimigo o encontrou. Entendeu? Não, não fale, continue a comer. Na noite de ontem, Jane Studdock teve o sonho mais importante de todos até agora. Você se lembra de que num sonho anterior ela viu (ou foi o que pensei) o exato lugar onde ele jazia por baixo de Bragdon. Mas… e isso é o mais importante… o acesso ao local não é por um poço e uma escada. Ela sonhou que passava por um túnel longo, com uma inclinação muito gradual. Ah, você começa a entender aonde quero chegar. Você está certo. Jane acha que pode reconhecer a entrada para esse túnel: abaixo de uma pilha de pedra no final de um arvoredo com… como é mesmo, Jane?

– Um portão branco, senhor. Um portão comum de cinco travessas, com uma peça transversal. Mas a peça transversal estava quebrada a uns trinta centímetros do alto. Eu o reconheceria se o visse de novo.

– Está entendendo, Dimble? Há uma boa chance de que esse túnel apareça do lado de fora da área de propriedade do Inec.

– Você está dizendo – disse Dimble – que agora podemos entrar por baixo de Bragdon sem entrar em Bragdon.

– Exatamente. Mas não é só isso.

Dimble, mastigando constantemente, olhou para ele.

– Parece – disse o diretor – que quase estamos atrasados. Ele já foi acordado.

Dimble parou de comer.

– Jane encontrou o lugar vazio – disse Ransom.

– Quer dizer que o inimigo já o encontrou?

– Não. Não é tão ruim assim. O lugar não tinha sido arrombado. Parece que ele despertou por si mesmo.

– Meu Deus! – disse Dimble.

– Tente comer, querido – disse sua mulher.

– Mas o que isso significa? – perguntou ele, cobrindo a mão dela com a sua.

– Acho que significa que tudo isso foi planejado e cronometrado há muito, muito tempo – disse o diretor. – Que ele saiu do Tempo, para o estado paracrônico, com a exata finalidade de retornar neste momento.

– Uma espécie de bomba-relógio humana – observou MacPhee –, motivo pelo qual…

– Você não pode ir, MacPhee – disse o diretor.

– Ele já saiu? – perguntou Dimble.

– É provável que sim, a esta altura – disse o diretor. – Diga-lhe como foi, Jane.

– Era o mesmo lugar – disse Jane. – Um lugar escuro, todo de pedra, como uma adega. Eu o reconheci de imediato. E a laje de pedra estava lá, mas sem ninguém deitado nela. E dessa vez não estava totalmente fria. Então sonhei com esse túnel… que vinha subindo aos poucos a partir do subterrâneo. E havia um homem no túnel. É claro que eu não conseguia vê-lo: estava um breu. Mas um homem enorme. Respirando pesadamente. De início, achei que era um animal. Foi ficando mais frio, à medida que fomos subindo pelo túnel. Havia ar, um pouco de ar, que entrava de fora. O túnel parecia terminar numa pilha de pedras soltas. Ele as estava demolindo pouco antes do sonho mudar. E então eu estava do lado de fora, na chuva. Foi aí que vi o portão branco.

– Veja bem – disse Ransom –, parece que eles ainda não tinham estabelecido contato com ele, ou não naquela hora. Agora esta é nossa única chance. Encontrar essa criatura antes que eles a encontrem.

– Vocês todos devem ter observado que Bragdon é uma área praticamente encharcada – interveio MacPhee. – Exatamente onde vocês encontrarão uma cavidade seca na qual um corpo pudesse se manter preservado por todos esses séculos é uma pergunta digna de ser feita. Quer dizer, se algum de vocês ainda estiver interessado em provas.

– Essa é a questão – disse o diretor. – A câmera deve estar por baixo da elevação, a crista de cascalho no lado sul do bosque, onde o terreno sobe na direção da estrada de Eaton. Perto de onde Storey morava. É lá que vocês terão de procurar primeiro pelo portão branco de Jane. Suspeito que ele dê para a estrada de Eaton. Ou, então, nesta outra estrada… olhe no mapa, a amarela, que entra direto no “y” de Cure Hardy.

– Podemos estar lá em meia hora – disse Dimble, com a mão ainda sobre a mão da mulher. Para todos os que estavam ali, o nervosismo nauseante dos últimos minutos antes da batalha tinha se aproximado.

– Suponho que tenha de ser nesta noite… – disse a senhora Dimble, bastante envergonhada.

– Receio que sim, Margaret – disse o diretor. – Cada minuto conta. Nós praticamente teremos perdido a guerra, se o inimigo conseguir fazer contato uma vez com ele. Todo o plano deles gira em torno disso.

– É claro. Entendo. Desculpe – disse a senhora Dimble.

– E qual é nosso procedimento, senhor? – perguntou Dimble, afastando de si o prato e começando a encher o cachimbo.

– A primeira pergunta é se ele já saiu – disse o diretor. – Não parece provável que a entrada do túnel tenha ficado oculta todos esses séculos por trás de nada além de uma pilha de pedras soltas. E, se ficou, elas não estariam muito soltas a esta altura. Ele pode demorar horas, tentando sair.

– Vocês vão precisar no mínimo de dois homens fortes com picaretas – começou MacPhee.

– Não adianta, MacPhee – disse o diretor. – Não vou deixá-lo ir. Se a boca do túnel ainda estiver vedada, vocês deverão simplesmente esperar lá. Mas ele pode ter poderes que desconhecemos. Se tiver saído, procurem por rastros. Ainda bem que esta noite haverá lama. Vocês devem simplesmente caçá-lo.

– Se Jane vai, senhor – disse Camilla –, eu não poderia ir também? Já tive mais experiência desse tipo de coisa que…

– Jane precisa ir porque ela é a guia – disse Ransom. – Receio que você tenha de ficar em casa. Nós, aqui nesta casa, somos tudo o que restou de Logres. Você carrega no corpo o futuro de Logres. Como eu estava dizendo, Dimble, vocês deverão caçar. Acho que ele não vai conseguir se afastar muito. É claro que o terreno será totalmente irreconhecível para ele, até mesmo à luz do dia.

– E… se nós realmente o encontrarmos, senhor?

– É por isso que tem de ser você, Dimble. Só você conhece a Grande Língua. Se houve poder eldílico por trás da tradição que ele representava, ele pode entendê-la. Mesmo que não a entenda, creio que há de reconhecê-la. Isso vai lhe mostrar que está lidando com Mestres. Existe uma chance de ele achar que vocês são o pessoal de Belbury… os amigos dele. Se for esse o caso, tragam-no para cá imediatamente.

– E se não for esse o caso?

O diretor falou com severidade.

– Vocês deverão se revelar. É nesse momento que o perigo surge. Não sabemos quais eram os poderes do velho círculo atlante: algum tipo de hipnotismo provavelmente cobria a maior parte deles. Não tenha medo, mas não permita que ele tente nenhum truque. Mantenha a mão no revólver. Você também, Denniston.

– Eu sou muito hábil com um revólver – disse MacPhee. – E por quê, em nome de qualquer bom-senso…

– Você não pode ir, MacPhee – disse o diretor. – Ele poria você para dormir em dez segundos. Os outros estão fortemente protegidos, mas você não está. Está me entendendo, Dimble? O revólver na mão, uma prece nos lábios, sua mente fixa em Maleldil. E então, se ele resistir, diga o encantamento.

– O que devo dizer na Grande Língua?

– Diga que você vem em nome de Deus e de todos os anjos, e com o poder dos planetas, a mando de quem está hoje sentado no trono do Líder Supremo, e ordene que ele o acompanhe. Diga agora.

E Dimble, que estava sentado com o rosto crispado, e bastante branco, entre os rostos pálidos das duas mulheres, com os olhos na mesa, ergueu a cabeça; e poderosas sílabas de palavras que tinham o som de castelos saíram da sua boca. Jane sentiu o coração saltar e estremecer diante delas. Tudo o mais no cômodo pareceu ficar intensamente quieto. Até mesmo a ave, o urso e o gato estavam imóveis, com os olhos fixos no homem que falava. A voz não era parecida com a de Dimble: era como se as palavras se pronunciassem sozinhas através dele a partir de algum lugar fortificado ao longe… ou como se não fossem palavras, e sim operações presentes de Deus, dos planetas e do Líder Supremo. Pois aquela era a língua falada antes da Queda e para além da Lua; e os significados não eram atribuídos às sílabas pelo acaso, pela habilidade ou por longa tradição, mas em verdade inerentes a elas como a forma do grande Sol é inerente à pequena gota d’água. Essa era a Língua em si, como surgiu inicialmente por ordem de Maleldil, brotando do mercúrio fundido do astro chamado Mercúrio na Terra, mas Viritrilbia na Imensidão dos Céus.

– Obrigado – disse o diretor; e mais uma vez a calorosa domesticidade da cozinha voltou a se derramar sobre eles. – Se ele vier com você, tudo bem. Se não vier, então, Dimble, você terá de contar com seu cristianismo. Não tente nenhuma proeza. Faça suas orações e mantenha sua vontade fixa na vontade de Maleldil. Não sei o que ele vai fazer. Mas permaneça firme. Não importa o que aconteça, você não poderá perder sua alma; pelo menos não por alguma ação da parte dele.

– Sim – disse Dimble. – Entendi.

Houve um silêncio meio prolongado. E então o diretor voltou a falar.

– Não se deixe abater, Margaret – disse ele. – Se matarem Cecil, nenhum de nós permanecerá vivo muitas horas depois dele. Será uma separação mais curta do que você poderia ter esperado se a Natureza seguisse seu curso. E agora, senhores – disse ele –, vocês vão querer um pouco de tempo para fazer suas preces e se despedirem de suas mulheres. São oito horas agora, ou tão perto dessa hora a ponto de não fazer diferença. Sugiro que todos se reúnam aqui às oito e dez, prontos para partir.

– Está bem – responderam algumas vozes. Jane descobriu-se deixada na cozinha com a senhora Maggs, os animais, MacPhee e o diretor.

Você está bem, minha filha? – disse Ransom.

– Creio que sim, senhor – disse Jane. Seu estado mental presente era para ela impossível de analisar. Sua expectativa estava preparada para qualquer extremo. Alguma coisa que teria sido terror, não fosse a alegria, e alegria, não fosse o terror, a dominava: uma tensão voraz, composta de entusiasmo e obediência. Tudo o mais na sua vida parecia pequeno e banal em comparação com aquele momento.

– Você se coloca em obediência – disse o diretor –, em obediência a Maleldil?

– Senhor – disse Jane –, nada sei de Maleldil. Mas eu me coloco em obediência ao senhor.

– É suficiente por enquanto – disse o diretor. – Essa é a cortesia da Imensidão dos Céus: que, quando sua intenção é boa, Ele sempre considera que sua intenção é superior à sua consciência. Não será suficiente para sempre. Ele é muito possessivo. No final, Ele não aceitará que você pertença a mais ninguém que não seja a Ele mesmo. Mas por esta noite, é suficiente.

– Essa é a história mais louca de que já ouvi falar – disse MacPhee.