13

Fizeram a Imensidão dos Céus
desabar sobre a própria cabeça

– Pare! Pare onde está e me diga seu nome e a que veio – disse Ransom.

A figura andrajosa no umbral inclinou a cabeça um pouco para o lado, como alguém que não consegue ouvir direito. No mesmo instante, o vento da porta aberta começou a percorrer a casa. A porta interna, entre a despensa e a cozinha, fechou-se com forte estrondo, isolando os três homens das mulheres, e uma grande bacia de metal caiu ruidosa dentro da pia. O desconhecido avançou mais um passo para dentro da despensa.

Sta – disse Ransom, em voz alta. – In nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti, dic mihi qui sis et quam ob causam veneris.8

O desconhecido levantou a mão e jogou para trás o cabelo que gotejava da sua testa. A luz bateu em cheio no seu rosto, que transmitiu a Ransom a impressão de uma quietude imensa. Todos os músculos do corpo daquele homem pareciam relaxados, como se ele estivesse dormindo, e ele se mantinha absolutamente imóvel. Cada gota de chuva que escorria do casaco cáqui atingia o piso ladrilhado exatamente no lugar onde a gota anterior tinha caído.

Seus olhos pousaram em Ransom por um segundo ou dois sem nenhum interesse especial. Ele então voltou a cabeça para a esquerda, para o lugar onde a porta escancarada quase tinha batido na parede. MacPhee estava escondido por trás dela.

– Saia – disse o desconhecido em latim. As palavras foram pronunciadas quase num sussurro, mas com uma voz tão grave que, mesmo no aposento varrido pelo vento, elas produziram uma espécie de vibração. Todavia, o que surpreendeu Ransom muito mais foi o fato de MacPhee obedecer imediatamente. Ele não olhou para Ransom, e sim para o Desconhecido. Depois, inesperadamente, deu um enorme bocejo. O Desconhecido olhou para ele da cabeça aos pés e então se voltou para o diretor.

– Companheiro – disse ele em latim –, diga ao senhor desta casa que cheguei. – Enquanto ele falava, o vento açoitava o casaco em torno das suas pernas e soprava o cabelo sobre sua testa. Porém seu enorme volume estava firme, como se tivesse sido plantado como uma árvore, e ele não aparentava ter pressa. E a voz, também, era como se poderia imaginar a voz de uma árvore, ampla, lenta e paciente, extraída através de raízes, argila e cascalho, a partir das profundezas da Terra.

– Eu sou o senhor aqui – disse Ransom, na mesma língua.

– Sem dúvida! – respondeu o desconhecido. – E aquele fedelho ali [mastigia9] é certamente seu bispo. – Ele não sorriu exatamente, mas um ar de divertimento perturbador surgiu em seus olhos sagazes. De repente ele esticou o pescoço, de um modo que fez seu rosto ficar muito mais próximo do rosto do diretor.

– Diga ao seu senhor que cheguei – repetiu na mesma voz de antes.

Ransom olhou para ele sem tremer uma pálpebra.

– Você realmente quer – disse ele, por fim – que eu chame meus senhores?

– Uma gralha que morava na cela de um eremita já aprendeu a tagarelar num latim livresco – disse o outro. – Vamos ouvi-lo chamar, homúnculo (homuncio).

– Para isso preciso usar outra língua – disse Ransom.

– Uma gralha também poderia ter grego no bico.

– Não se trata do grego.

– Ouçamos então seu hebraico.

– Não se trata do hebraico.

– Não – respondeu o outro com o que se assemelhou a um risinho reprimido, um risinho oculto nas profundezas do seu tórax enorme e denunciado apenas por um leve movimento dos ombros –, se você vai usar a algaravia dos bárbaros, vai ser difícil, mas hei de superá-lo. É uma diversão excelente.

– Pode ser que lhe pareça a fala de bárbaros – disse Ransom –, pois faz muito tempo desde que foi ouvida pela última vez. Nem mesmo em Numinor ela era ouvida nas ruas.

O desconhecido não teve sobressalto algum, e seu rosto permaneceu tranquilo como antes, se é que não ficou ainda mais tranquilo. Mas ele falou com novo interesse.

– Seus senhores o deixam brincar com brinquedos perigosos – disse ele. – Diga-me, escravo, o que é Numinor?

– O verdadeiro Oeste – disse Ransom.

– Bem – disse o outro. Então, depois de um silêncio, acrescentou: – Vocês são pouco corteses para com as visitas nesta casa. Está um vento frio nas minhas costas, e passei muito tempo acamado. Veja, já passei pela soleira.

– Não dou o menor valor a isso – disse Ransom. – Feche a porta, MacPhee – acrescentou ele em inglês. Mas não houve resposta. E, olhando ao redor pela primeira vez, ele viu que MacPhee tinha se sentado na única cadeira que se encontrava na despensa e estava em sono profundo.

– O que significa essa bobagem? – disse Ransom, lançando um olhar cortante para o desconhecido.

– Se você é de fato o senhor desta casa, não precisa que lhe digam. Se não, por que eu daria explicações de mim mesmo para alguém como você? Não tema. Seu cavalariço não sofrerá de modo algum.

– Isso em breve se verá – disse Ransom. – Enquanto isso, não receio que você entre na casa. Tenho mais motivos para temer que você escape daqui. Feche a porta, por favor, pois meu pé está ferido, como vê.

Sem por um instante tirar os olhos de cima de Ransom, o desconhecido passou a mão esquerda por trás de si, encontrou a maçaneta e fechou a porta com violência. MacPhee não se mexeu nem uma vez.

– Agora – disse ele –, e esses seus senhores?

– Meus senhores são os Oyéresu.

– Onde você ouviu esse nome? – perguntou o desconhecido. – Ou, se realmente pertence à congregação, por que está vestido como um escravo?

– Seus próprios trajes – disse Ransom – não são os de um druida.

– Acertou em cheio – respondeu o outro. – Como você tem conhecimento, responda-me três perguntas, se ousar.

– Eu as responderei se puder. Mas quanto à ousadia, veremos.

O desconhecido refletiu alguns segundos. E então, falando com a voz ligeiramente monótona, como se repetisse uma antiga lição, ele propôs, em dois hexâmetros latinos, a seguinte pergunta:

– Quem se chama Sulva? Que estrada ela percorre? Por que o ventre é estéril de um lado? Onde ficam os casamentos frios?

– Sulva é aquela que os mortais chamam de Lua – respondeu Ransom. – Ela caminha na esfera inferior. A borda do mundo que se perdeu passa através dela. Parte do seu globo está voltada para nós e compartilha nossa maldição. Sua outra metade contempla a Imensidão dos Céus. Feliz seria quem conseguisse cruzar aquela fronteira e ver os campos no seu lado distante. No lado de cá, o ventre é estéril; e os casamentos, frios. Ali reside um povo amaldiçoado, cheio de orgulho e lascívia. Ali, quando um rapaz toma uma donzela em casamento, eles não se deitam juntos; cada um se deita com uma imagem habilidosamente moldada do outro, feita para se movimentar e ter calor por meio de artifícios demoníacos, pois a carne real não os satisfaz, tão exigentes [delicati10] são eles em seus sonhos de luxúria. Seus filhos de verdade, eles produzem por artes desprezíveis num lugar secreto.

– Você respondeu bem – disse o desconhecido. – Eu achava que não havia mais de três homens no mundo que soubessem a resposta para essa pergunta. Mas minha segunda pode ser mais difícil. Onde está o anel de Artur, o rei? Que senhor possui um tesouro desses em casa?

– O anel do rei – disse Ransom – está no dedo de Artur, lá onde ele se encontra na Casa dos Reis na terra em forma de taça de Abhalljin, para além dos mares de Lur em Perelandra. Pois Artur não morreu; mas nosso Senhor levou-o, para permanecer no corpo até o final dos tempos e a destruição de Sulva, com Enoque, Elias, Moisés e Melquisedeque, o rei. Melquisedeque é aquele em cujo palácio o anel de pedra exagerada cintila no indicador do Líder Supremo.

– Boa resposta – disse o desconhecido. – Na minha congregação, acreditava-se que somente dois homens no mundo tinham esse conhecimento. Mas, quanto à minha terceira questão, homem algum sabia a resposta com exceção de mim mesmo. Quem será o Líder Supremo na época em que Saturno descer da sua esfera? Em que mundo ele aprendeu a guerrear?

– Aprendi a guerra na esfera de Vênus – disse Ransom. – Nessa era, Lurga descerá. Eu sou o Líder Supremo.

Quando disse isso, Ransom deu um passo para trás, pois o homenzarrão começara a se movimentar, e havia uma nova expressão nos seus olhos. Qualquer um que os tivesse visto ali parados, um diante do outro, teria imaginado que a qualquer instante aquilo daria em briga. Mas o desconhecido não tinha se mexido com intenção hostil. Com lentidão e pesado esforço, mas não desajeitadamente, semelhante a uma montanha que afunda como uma onda, ele se abaixou sobre um joelho; e ainda assim seu rosto quase ficou no mesmo nível que o do diretor.

– Isso lança um fardo totalmente inesperado sobre nossos ombros – disse Wither a Frost, enquanto os dois estavam sentados no aposento externo com a porta entreaberta. – Devo confessar que eu não tinha previsto nenhuma dificuldade séria acerca da língua.

– Precisamos arrumar um estudioso do celta de imediato – disse Frost. – Somos lamentavelmente fracos sob o aspecto filológico. No momento não sei quem fez mais descobertas acerca dos bretões antigos. Ransom seria o homem para nos aconselhar, se estivesse disponível. Suponho que seu departamento não tenha ouvido nada a respeito dele.

– Nem preciso salientar – disse Wither – que as realizações filológicas do doutor Ransom não são de modo algum o único motivo pelo qual estamos ansiosos para encontrá-lo. Se o menor vestígio tivesse sido descoberto, pode ficar tranquilo de que já há muito tempo você teria tido a… hã… satisfação de vê-lo aqui em pessoa.

– É claro. Pode ser que ele nem esteja na Terra.

– Eu cheguei a conhecê-lo – disse Wither, semicerrando os olhos. – A seu modo, era um homem brilhantíssimo. Um homem cujos insights e intuições poderiam ter sido de um valor infinito, se ele não tivesse abraçado a causa da reação. É uma reflexão entristecedora…

– Naturalmente – disse Frost, interrompendo-o. – Straik conhece o galês moderno. A mãe dele era galesa.

– Decerto seria muito mais satisfatório – disse Wither – se pudéssemos, por assim dizer, manter toda essa questão na família. Haveria algo de muito desagradável para mim… e tenho certeza de que você também teria a mesma sensação… em trazer um especialista em celta de fora do grupo.

– É claro que seriam tomadas providências a respeito do especialista assim que pudéssemos dispensar seus serviços – respondeu Frost. – É a perda de tempo que é o problema. Qual é o progresso que você conseguiu com Straik?

– Ah, realmente excelente – disse o vice-diretor. – Na verdade estou quase um pouco decepcionado. Quer dizer, meu discípulo está avançando com tanta rapidez que pode ser necessário abandonar uma ideia que, confesso, me atrai bastante. Estive pensando, enquanto você estava fora da sala, que seria especialmente conveniente e… ah… correto e gratificante, se seu discípulo e o meu pudessem ser iniciados juntos. Tenho certeza de que nós dois deveríamos ter sentido… Mas é claro que, se Straik estiver pronto algum tempo antes de Studdock, eu não deveria me sentir no direito de prejudicá-lo. Entenda, meu caro, que não estou tentando de modo algum fazer que isso venha a ser uma comprovação da eficácia comparativa dos nossos métodos muito diferentes.

– Seria impossível você fazer essa tentativa – disse Frost –, já que entrevistei Studdock somente uma vez, e essa única entrevista obteve todo o sucesso que poderia ser esperado. Mencionei Straik só para descobrir se ele já estava comprometido em termos tão profundos que talvez pudesse ser apresentado oficialmente ao nosso hóspede.

– Ora… quanto a estar comprometido – disse Wither –, em certo sentido, deixando de lado por enquanto certas nuanças sutis e ao mesmo tempo reconhecendo plenamente sua importância máxima… eu não hesitaria… estaríamos perfeitamente justificados.

– Eu estava pensando – disse Frost – que é preciso ter alguém de plantão aqui. Ele pode acordar a qualquer momento. Nossos discípulos… Straik e Studdock… poderiam se revezar. Não há motivo pelo qual eles não deveriam ser úteis, mesmo antes de sua plena iniciação. Naturalmente, eles receberiam ordens de nos telefonar, no instante em que acontecesse qualquer coisa.

– Você acha que o… hum… senhor Studdock já está adiantado o suficiente?

– Não importa – disse Frost. – Que mal ele vai poder fazer? Ele não pode sair daqui. E, enquanto isso, nós só queremos alguém para vigiar. Seria um teste proveitoso.

MacPhee, que tinha acabado de refutar tanto Ransom como a cabeça de Alcasan, com um argumento de dois gumes que no sonho lhe pareceu irretorquível mas do qual ele nunca mais se lembrou, descobriu-se despertado violentamente por alguém que sacudia seu ombro. De repente, ele percebeu que estava com frio e que seu pé esquerdo estava dormente. Viu então o rosto de Denniston, olhando direto no seu rosto. A despensa parecia estar cheia de gente: Denniston, Dimble e Jane. Eles estavam extremamente sujos, esfarrapados, enlameados e molhados.

– Tudo bem com você? – Denniston perguntava. – Estou tentando acordá-lo já há alguns minutos.

– Tudo bem? – disse MacPhee, engolindo em seco uma vez ou duas e molhando os lábios. – Sim. Estou bem. – Ele então se endireitou na cadeira. – Um homem esteve aqui.

– Que tipo de homem? – perguntou Dimble.

– Bem – disse MacPhee. – Quanto a isso… não é assim tão fácil… Eu adormeci enquanto falava com ele, para dizer a verdade. Não consigo me recordar do que estávamos dizendo.

Os outros trocaram olhares. Embora MacPhee apreciasse um pouco de grogue em noites de inverno, ele era um homem sóbrio. Eles nunca o tinham visto daquele jeito antes. No instante seguinte, ele se pôs de pé de um salto.

– Deus nos livre! – exclamou ele. – Ele estava com o diretor aqui. Depressa! Precisamos procurar na casa e no jardim. Era algum tipo de impostor ou de espião. Agora sei o que houve comigo. Fui hipnotizado. Havia um cavalo também. Eu cuido do cavalo.

Este último detalhe teve efeito imediato nos seus ouvintes. Denniston escancarou a porta da cozinha, e o grupo inteiro foi atrás dele. Por um segundo, eles viram vultos indistintos à luz fraca, avermelhada de um grande fogo, que não vinha sendo cuidado havia algumas horas. E então, quando Denniston encontrou o interruptor e acendeu a luz, todos respiraram fundo. As quatro mulheres estavam sentadas, em sono profundo. A gralha dormia, empoleirada no encosto de uma cadeira vazia. O senhor Bultitude, estendido de lado diante da lareira, também dormia. Seu ronco mínimo, semelhante ao de uma criança, tão desproporcional em comparação com seu volume, ficou audível no silêncio momentâneo. A senhora Dimble, encurvada no que parecia uma posição desconfortável, dormia com a cabeça em cima da mesa, uma meia cerzida pela metade ainda presa nos joelhos. Dimble olhou para ela com aquela pena incurável que os homens sentem por qualquer pessoa adormecida, mas especialmente por ser sua mulher. Camilla, que estava na cadeira de balanço, estava enrodilhada numa atitude cheia de elegância, como a de um animal acostumado a dormir em qualquer lugar. A senhora Maggs dormia com a boca generosa, comum, totalmente aberta; e Grace Ironwood, reta como uma tábua, como se estivesse acordada, mas com a cabeça pendendo um pouco para um lado, parecia se submeter com uma paciência austera à humilhação da inconsciência.

– Elas estão bem – disse MacPhee, lá de trás. – É só a mesma coisa que ele fez comigo. Não temos tempo para acordá-las. Vamos em frente.

Eles passaram da cozinha para o corredor de lajes. Para todos, exceto MacPhee, o silêncio da casa parecia intenso, depois da luta no vento e na chuva. As luzes, à medida que eles as acendiam sucessivamente, revelavam aposentos vazios e corredores vazios, que apresentavam o ar abandonado da meia-noite dentro de uma casa – o fogo apagado na lareira, um jornal vespertino num sofá, um relógio que tinha parado. Mas ninguém esperava encontrar muito mais que isso no térreo.

– Agora vamos subir – disse Dimble.

– As luzes estão acesas lá em cima – disse Jane, quando todos chegaram aos pés da escadaria.

– Nós as acendemos de lá do corredor – disse Dimble.

– Acho que não acendemos – disse Denniston.

– Com licença – disse Dimble a MacPhee –, creio que talvez eu devesse ir na frente.

Até o primeiro patamar, eles seguiram na escuridão; no segundo e último caía a luz do andar superior. A cada patamar, a escada virava em ângulo reto, de modo que, enquanto não se atingisse o segundo patamar, era impossível ver o saguão no piso acima. Jane e Denniston, que iam por último, viram MacPhee e Dimble parados imóveis no segundo patamar: os rostos iluminados em perfil; a parte de trás das cabeças na escuridão. A boca do homem do Ulster estava travada e tensa; sua expressão, hostil e temerosa. Dimble estava de queixo caído. Então, forçando seus membros cansados a correr, Jane chegou ao lado deles e viu o que eles viam.

Contemplando-os de lá da balaustrada estavam dois homens, um trajado em majestosas vestes vermelhas e o outro, em azul. Era o diretor que usava azul, e por um instante um pensamento que era puro pesadelo passou pela cabeça de Jane. As duas figuras com aquelas vestes pareciam ser do mesmo tipo… e, afinal de contas, o que ela sabia daquele diretor que a atraíra para dentro de sua casa por feitiços, a fizera ter sonhos e lhe ensinara o medo do Inferno naquela mesma noite? E lá estavam eles, aquele par, com sua conversa secreta, fazendo o que quer que seja que esse tipo de gente faria, depois de esvaziar a casa ou de fazer adormecer seus moradores. O homem que tinha sido desenterrado e o homem que tinha estado no espaço cósmico… e um tinha lhes dito que o outro era um inimigo; e agora, no instante em que se conheceram, ali estavam os dois, unidos como duas gotas de mercúrio. Todo aquele tempo, ela mal havia olhado para o desconhecido. O diretor parecia ter deixado a muleta de lado, e Jane praticamente não o vira em pé tão empertigado e imóvel antes. A luz caía sobre sua barba de um modo que a tornava uma espécie de halo; e no alto da sua cabeça também ela viu um relance de ouro. De repente, enquanto pensava nessas coisas, ela descobriu que estava olhando direto nos olhos do desconhecido. No instante seguinte, ela percebeu seu tamanho. O homem era monstruoso. E os dois eram aliados. E o desconhecido estava falando e apontando para ela enquanto falava.

Ela não entendia as palavras; mas Dimble entendia, e ouviu Merlin dizer no que lhe pareceu um tipo de latim bastante estranho:

– O senhor tem em sua casa a mulher mais falsa das que vivem neste momento.

E Dimble ouviu o diretor responder no mesmo idioma:

– O senhor está equivocado. Sem dúvida, ela é, como todos nós, uma pecadora; mas a mulher é casta.

– Saiba bem, senhor – disse Merlin –, que ela fez em Logres algo de que resultará tanta dor quanto a que resultou do golpe desferido por Balinus. Pois, senhor, era o propósito de Deus que ela e seu senhor gerassem um filho, por meio de quem os inimigos seriam expulsos de Logres por um milênio.

– Ela é recém-casada – disse Ransom. – O filho ainda pode vir a nascer.

– Senhor – disse Merlin –, garanto-lhe que a criança jamais nascerá, pois a hora de sua concepção já passou. Por sua própria vontade, eles são estéreis. Até agora, eu não sabia que os costumes de Sulva eram tão comuns entre vocês. Por cem gerações, em duas linhagens a concepção dessa criança foi preparada; e, a menos que Deus destrua o trabalho do tempo, uma semente dessas e uma hora dessas, numa terra como esta jamais voltará a ocorrer.

– Basta – respondeu Ransom. – A mulher percebe que estamos falando dela.

– Seria uma enorme caridade – disse Merlin –, se o senhor desse ordens para que decepassem a cabeça dela de seus ombros, pois olhar para ela é um aborrecimento.

Jane, embora captasse aqui e ali um pouco de latim, não tinha compreendido a conversa. O sotaque era estranho, e o velho druida usava um vocabulário que estava muito além das leituras dela – o latim de um homem para quem Apuleio e Marciano Capela eram os clássicos primordiais e cujos refinamentos se assemelhavam aos das Hisperica Famina11. No entanto, Dimble tinha acompanhado sua fala. Ele empurrou Jane para trás de si e protestou.

– Ransom! Em nome de Deus, qual é o significado disso?

Merlin falou novamente em latim, e Ransom estava começando a se virar para responder, quando Dimble o interrompeu.

– Responda a nós – disse ele. – O que aconteceu? Por que você está vestido desse jeito? O que está fazendo com esse velho sanguinário?

MacPhee, que tinha acompanhado o latim ainda menos que Jane, mas que estava olhando para Merlin como um terrier zangado olha para um terra-nova que invadiu seu jardim, entrou de súbito na conversa.

– Doutor Ransom – disse ele –, não sei quem é o homenzarrão e não sou nenhum latinista. Mas sei que você me manteve a noite inteira debaixo de seus olhos, contra minha vontade expressa, e permitiu que eu fosse drogado e hipnotizado. Garanto-lhe que sinto pouco prazer ao vê-lo fantasiado como alguém saído de uma pantomima e parado aí como unha e carne com esse iogue, xamã, sacerdote, ou seja lá o que for. E pode dizer a ele que não precisa olhar para mim do jeito que está olhando. Não tenho medo dele. Quanto à minha própria sobrevivência, se você, doutor Ransom, mudou de lado depois de tudo o que houve, não sei se tenho muito uso para ela. Mas, mesmo que eu seja morto, não vou deixar que me façam de palhaço. Estamos esperando uma explicação.

O diretor baixou o olhar até eles em silêncio, por alguns segundos.

– Chegamos realmente a este ponto? – disse ele. – Será que nenhum de vocês confia em mim?

– Eu confio, senhor – disse Jane, de repente.

– Esse tipo de apelo às paixões e emoções – disse MacPhee – não leva a nada. Eu poderia chorar melhor do que ninguém neste instante, se me concentrasse nisso.

– Bem – disse o diretor depois de um momento –, vocês todos têm uma justificativa, já que todos nós estávamos enganados. Assim como o inimigo. Este homem é Merlinus Ambrosius. Eles achavam que, se ele voltasse, ficaria do lado deles. Eu descubro que ele está do nosso. Você, Dimble, deveria perceber que essa sempre foi uma possibilidade.

– É verdade – disse Dimble. – Suponho que tenha sido… bem, a visão da cena: você e ele aí em pé juntos, desse jeito. E essa estarrecedora sede de sangue que ele demonstra.

– Eu mesmo me espantei com ela – disse Ransom. – Mas afinal de contas nós não tínhamos nenhum direito de esperar que seu código penal fosse o do século XIX. Também tenho dificuldade para fazê-lo compreender que não sou um monarca absoluto.

– Ele… ele é cristão? – perguntou Dimble.

– É – disse Ransom. – Quanto às minhas roupas, vesti nesta ocasião especial o traje do meu posto em homenagem a ele, e porque fiquei envergonhado. Ele achou que MacPhee e eu éramos serviçais ou cavalariços. No seu tempo, vejam bem, os homens não andavam por aí em sacos de pano sem forma, a não ser por necessidade, e o cáqui não era uma cor apreciada.

A esta altura, Merlin falou novamente. Dimble e o diretor, que eram os únicos que entendiam sua fala, ouviram-no dizer:

– Quem são essas pessoas? Se são seus escravos, por que não lhe fazem reverência? Se são seus inimigos, por que não os destruímos?

– São meus amigos – começou Ransom em latim, mas MacPhee o interrompeu.

– Devo entender, doutor Ransom – disse ele –, que você está nos pedindo para aceitar essa pessoa como membro da nossa organização?

– Receio – disse o diretor – que não possamos encarar as coisas desse modo. Ele é um membro da organização. E devo exigir que todos vocês o aceitem.

– E em segundo lugar – continuou MacPhee – preciso perguntar que tipo de verificação foi feita das credenciais dele.

– Ele já me deu provas plenamente suficientes – respondeu o diretor. – Tenho tanta certeza da boa-fé dele como tenho da de vocês.

– Mas os motivos para sua confiança? – persistiu MacPhee. – Não vamos ouvi-los?

– Seria difícil – disse o diretor – explicar para vocês minhas razões para confiar em Merlinus Ambrosius; mas não mais difícil do que explicar para ele por que eu confio em vocês, apesar de muitas aparências que poderiam ser mal compreendidas. – Havia não mais que a sombra de um sorriso em sua boca ao dizer isso. E então Merlin falou novamente com ele em latim; e ele respondeu. Depois disso, Merlin dirigiu a palavra a Dimble.

– Diz-me o Líder Supremo – disse ele, com sua voz inabalada – que vocês me acusam de ser um homem feroz e cruel. É uma acusação que jamais tinha ouvido. Um terço dos meus bens, doei para viúvas e para os pobres. Nunca intentei a morte de ninguém a não ser de criminosos e saxões pagãos. Quanto à mulher, por mim ela pode viver. Não sou senhor nesta casa. Mas será que teria tanta importância decapitá-la? Rainhas e damas que não a aceitariam para ser sua aia não vão para a fogueira por menos? Mesmo esse criminoso inveterado [cruciarius12] ao seu lado… estou me referindo a você, camarada, embora você não fale nada a não ser sua língua bárbara; você com a expressão de leite azedo e a voz como o som de um serrote numa tora dura; e as pernas como as de um grou; mesmo esse larápio [sector zonarius13], se bem que eu o levasse para o cárcere, ainda assim a corda deveria ser usada nas suas costas, não no seu pescoço.

MacPhee, que, apesar de não entender as palavras, se deu conta de que estava sendo alvo de algum comentário desfavorável, escutou imóvel, com aquela expressão de neutralidade total que é mais comum no norte da Irlanda e nas baixadas escocesas do que na Inglaterra.

– Senhor diretor – disse ele, quando Merlin terminou –, eu ficaria profundamente agradecido se…

– Ora, vamos – disse o diretor de repente –, nenhum de nós chegou a dormir nesta noite. Arthur, quer vir acender a lareira para nosso hóspede no quarto grande na extremidade norte deste corredor? E alguém poderia acordar as mulheres? Peçam-lhes que tragam um lanche para ele. Uma garrafa de Borgonha e algo que se possa comer frio. E então, todos para a cama. Não precisamos acordar cedo de manhã. Tudo está indo muito bem.

– Vamos ter dificuldades com esse nosso novo colega – disse Dimble. Ele estava sozinho com a mulher no seu aposento em St. Anne’s já tarde no dia seguinte. – É – prosseguiu depois de um breve silêncio – o que se chamaria de um colega de peso.

– Você parece muito cansado, Cecil – disse a senhora Dimble.

– Bem, foi uma conferência bastante extenuante – disse ele. – Ele… ele é um homem muito cansativo. Ah, eu sei que todos nós fomos tolos. Quer dizer, todos nós imaginamos que, por ter voltado no século XX, ele seria um homem do século XX. O tempo é mais importante do que pensamos, só isso.

– Isso eu percebi no almoço, sabe? – disse a mulher. – Foi tão bobo da nossa parte não ter percebido que ele não saberia da existência de garfos. Mas o que me surpreendeu ainda mais (depois do primeiro choque) foi como, bem, como ele era elegante sem eles. Quer dizer, dava para ver que não se tratava de um caso de não ter boas maneiras, mas de ter maneiras diferentes.

– Ah, o velhote é um cavalheiro a seu modo… Dá para qualquer um ver isso. Mas… bem, eu não sei. Suponho que tudo vá dar certo.

– O que aconteceu na reunião?

– Bem, veja só, tudo tinha de ser explicado dos dois lados. Foi um trabalho infernal fazê-lo entender que Ransom não é o rei deste país, nem está tentando ser o rei. E então precisamos dar-lhe a notícia de que não éramos os bretões de modo algum, mas os ingleses, o que ele chamaria de saxões. Ele levou algum tempo para superar isso.

– Entendo.

– E então MacPhee teve de escolher esse momento para enveredar por uma explicação interminável das relações entre a Escócia, a Irlanda e a Inglaterra. E tudo isso, naturalmente, teve de ser traduzido. E era tudo bobagem também. Como muita gente, MacPhee imagina ser celta, quando, além do seu nome, ele é tão celta quanto o senhor Bultitude. Por sinal, Merlinus Ambrosius fez uma profecia sobre o senhor Bultitude.

– Ah? E que profecia foi essa?

– Ele disse que antes do Natal esse urso praticaria o melhor feito que qualquer urso já tinha praticado na Grã-Bretanha, com exceção de algum outro urso de que nenhum de nós tinha ouvido falar. Ele não para de dizer coisas desse tipo. Elas simplesmente saltam de estalo e numa voz bastante diferente, quando estamos falando sobre alguma outra coisa. Como se ele não pudesse se conter. E parece que ele não sabe mais nada além do fragmento que nos transmite naquele instante, se você está entendendo o que quero dizer. Como se algo como um obturador de câmera se abrisse no fundo da sua mente e voltasse a se fechar de imediato, deixando apenas um pequeno item passar. O efeito é bastante desagradável.

– Ele e MacPhee não voltaram a brigar, espero.

– Não exatamente. Receio que Merlinus Ambrosius não esteja levando MacPhee muito a sério. Como MacPhee está sempre criando dificuldades e sendo grosseiro, e ao mesmo tempo nunca é repreendido, acho que Merlinus concluiu que ele é o bobo da corte do diretor. Parece que superou sua aversão a ele. Mas creio que ele não vai gostar de Merlinus.

– Vocês chegaram a tratar do que interessa? – perguntou a senhora Dimble.

– Bem, de certo modo – disse Dimble, franzindo a testa. – Nós não conseguíamos nos entender bem, sabe? Foi abordada a questão de o marido de Ivy estar na cadeia, e Merlinus quis saber por que não o salvamos. Acho que ele nos imaginou saindo a cavalo para invadir a cadeia municipal. Era contra esse tipo de coisa que se precisava lutar o tempo todo.

– Cecil – disse a senhora Dimble de repente. – Será que ele vai ter alguma utilidade?

– Ele será capaz de fazer coisas, se é isso o que você está querendo saber. Nesse sentido, é maior o perigo de que ele seja útil demais do que de menos.

– Que tipo de coisas? – perguntou a mulher.

– O universo é tão complicado – disse o doutor Dimble.

– É o que você já disse muitas vezes, querido – respondeu a senhora Dimble.

– Eu disse? – perguntou ele com um sorriso. – Quantas vezes, eu me pergunto. Será que tantas quanto as que você contou a história do pônei e da charrete em Dawlish?

– Cecil! Eu não conto essa história há anos.

– Minha querida, eu a ouvi contando essa história para Camilla anteontem à noite.

– Ora, Camilla. É totalmente diferente. Ela nunca tinha ouvido a história.

– Não sei se podemos ter certeza nem mesmo disso… sendo o universo assim tão complicado. – Por alguns minutos, houve silêncio entre eles.

– Mas, e quanto a Merlin? – perguntou a senhora Dimble algum tempo depois.

– Você já percebeu – perguntou Dimble – que o universo, e cada pequeno fragmento do universo, está sempre se endurecendo, se estreitando e se concentrando?

Sua mulher esperou, como esperam aquelas pessoas que, por longa experiência, conhecem os processos mentais da pessoa com quem estão conversando.

– Eis o que quero dizer – disse Dimble, em resposta à pergunta que ela não fez. – Se você mergulhar em qualquer faculdade, escola, paróquia ou família… em qualquer grupo da sua preferência… a certa altura na história desse grupo, você sempre descobre que houve uma época anterior àquele ponto, em que havia mais espaço de manobra e os contrastes não eram tão nítidos; e que vai haver um tempo posterior a esse momento, em que haverá ainda menos espaço para a indecisão e as escolhas serão ainda mais graves. O que é bom sempre fica melhor, e o que é ruim está sempre se tornando pior: as possibilidades de uma neutralidade até mesmo aparente estão sempre se reduzindo. Tudo está se resolvendo o tempo todo, chegando a uma conclusão, tornando-se mais aguçado e mais duro. Como no poema sobre o Céu e o Inferno devorando a alegre Terra Média a partir de lados opostos… como é mesmo? Alguma coisa como “comer todos os dias”… “até tudo ser sei lá o quê”. Não pode ser comido; não se encaixaria na métrica. Nestes últimos anos, minha memória anda falhando terrivelmente. Você conhece o trecho, Margery?

– O que você estava dizendo me fez pensar mais no trecho da Bíblia sobre a joeira. Separar o joio do trigo. Ou como o verso de Browning: “O sentido da vida sendo simplesmente a terrível escolha.”

– Exatamente! Talvez todo o processo do tempo signifique só isso e nada mais. Mas não se trata apenas de questões de escolha moral. Tudo vai ficando mais como é mesmo, e mais diferente de todo o resto o tempo todo. A evolução significa que as espécies se tornam cada vez menos parecidas umas com as outras. As mentes tornam-se cada vez mais espirituais; a matéria, cada vez mais substancial. Mesmo na literatura, a poesia e a prosa estão cada vez mais afastadas uma da outra.

A senhora Dimble, com a facilidade decorrente de longa prática, evitou o perigo, sempre presente na sua casa, de que a conversa descambasse para um tom meramente literário.

– É – disse ela. – O espírito e a matéria, sem dúvida. Isso explica por que pessoas como os Studdocks têm tanta dificuldade para ter um casamento feliz.

– Os Studdocks? – disse Dimble, olhando para ela com um ar bastante indiferente. Os problemas domésticos daquele jovem casal tinham ocupado sua mente muito menos do que a de sua mulher. – Ah, entendo. É. Eu diria que isso tem alguma coisa que ver. Mas o que dizer de Merlin? Até onde me é possível entender, o resumo é o seguinte. Ainda havia possibilidades para um homem naquela época, que não existem na nossa. A Terra em si era mais como um animal naquele tempo. E os processos mentais eram muito mais semelhantes a atos físicos. E havia… bem, neutrais, errantes.

– Neutrais?

– Não quero dizer, é claro, que qualquer coisa possa ser neutra de verdade. Um ser consciente ou está obedecendo a Deus ou está em desobediência a Ele. Mas poderia haver criaturas neutras em relação a nós.

– Você quer dizer eldila, anjos?

– Bem, a palavra anjo pressupõe uma comprovação que não temos. Até mesmo os Oyéresu não são exatamente anjos no mesmo sentido que nossos anjos da guarda. Tecnicamente eles são Inteligências. A questão é que, embora possa ser verdadeiro no fim do mundo descrever cada eldil como um anjo ou um demônio, e até possa ser verdadeiro agora, isso era muito menos verdadeiro no tempo de Merlin. Havia nesta Terra criaturas que cuidavam dos próprios interesses, por assim dizer. Não eram espíritos ministrantes enviados para ajudar a humanidade caída; mas também não eram inimigos dispostos a se abater sobre nós. Mesmo em São Paulo, têm-se vislumbres de uma população que não se encaixaria perfeitamente nas nossas duas colunas de anjos e demônios. E se você voltar ainda mais no tempo… todos os deuses, elfos, anões, povos da água, fate [fados], longaevi [anciões]. Você e eu sabemos demais para achar que eles não passam de ilusões.

– Você acha que existe esse tipo de coisa?

– Acho que existiu. Acho que havia espaço para elas naquela época, mas o universo se tornou mais específico. Talvez nem todas fossem criaturas racionais. Algumas seriam meras vontades inerentes à matéria, praticamente sem consciência. Mais como animais. Outras… na realidade eu não sei. Seja como for, esse é o tipo de situação em que seria possível surgir um homem como Merlin.

– Tudo isso me parece bastante horrível.

Foi bastante horrível. Quer dizer, mesmo no tempo de Merlin (e ele já veio bem no finalzinho dessa época), embora ainda se pudesse usar esse tipo de vida no universo inocentemente, não se podia usá-la sem correr riscos. As coisas não eram ruins em si, porém já estavam ruins para nós. Elas como que murchavam o homem que lidava com elas. Não de propósito. Elas não conseguiam deixar de fazê-lo. Merlinus é emurchecido. Ele é perfeitamente devoto, humilde e tudo o mais, mas alguma coisa lhe foi tirada. Essa quietude dele é um pouco morta, como o silêncio de um prédio saqueado. É resultado de ter ele deixado a mente aberta para algo que amplia o ambiente só um pouquinho demais. Como a poligamia. Ela não era errada para Abraão, mas não se pode deixar de achar que até mesmo ele perdia alguma coisa com ela.

– Cecil – disse a senhora Dimble. – Você se sente à vontade com a decisão do diretor de usar um homem como esse? Quer dizer, não se tem uma pequena impressão de que se está combatendo Belbury com as armas deles?

– Não. Eu pensei sobre isso. Merlin é o contrário de Belbury. Ele fica no extremo oposto. É o último vestígio de uma ordem antiga, na qual, do nosso ponto de vista moderno, a matéria e o espírito se confundiam. Para ele, cada operação na natureza é uma espécie de contato pessoal, como convencer uma criança ou afagar um cavalo. Depois dele, veio o homem moderno, para quem a natureza é algo morto: uma máquina a se fazer funcionar, e a ser desmontada se não funcionar como se quer. Por fim, veio o pessoal de Belbury, que assume sem alteração essa visão do homem moderno e simplesmente quer aumentar seu poder, acrescentando-lhe o auxílio de espíritos: espíritos sobrenaturais, antinaturais. É claro que eles esperavam ter o melhor dos dois lados. Eles achavam que a velha magia de Merlin, que funcionava com as qualidades espirituais da natureza, amando-as, reverenciando-as e as conhecendo por dentro, poderia ser combinada com a nova goeteia [do grego, magia]: a brutal cirurgia de fora para dentro. Não. Em certo sentido, Merlin representa aquilo a que precisamos voltar de algum modo diferente. Você sabe que, pelas normas da sua ordem, ele é proibido de usar qualquer ferramenta com gume em qualquer tipo de planta?

– Deus do céu! – disse a senhora Dimble. – Já são seis horas. Prometi a Ivy que estaria na cozinha às quinze para as seis. Não há necessidade de você ir, Cecil.

– Sabe – disse Dimble – que a acho uma mulher maravilhosa?

– Por quê?

– Quantas mulheres que tivessem tido sua própria casa por trinta anos conseguiriam se encaixar nessa confusão de bichos e gente como você consegue?

– Não é nada – disse a senhora Dimble. – Ivy também tinha uma casa, sabe? E para ela é muito pior. Afinal de contas, não é o meu marido que está na cadeia.

– Mas muito em breve estará – disse Dimble – se pusermos em ação metade dos planos de Merlinus Ambrosius.

Enquanto isso, Merlin e o diretor estavam conversando na Sala Azul. O diretor deixara de lado seu manto e diadema; e estava deitado no sofá. O druida estava sentado numa poltrona diante dele, sem cruzar as pernas, as mãos grandes e pálidas, imóveis sobre os joelhos, parecendo ser, a olhos modernos, uma antiga escultura convencional de um rei. Ele ainda usava o manto; e por baixo do manto, como Ransom sabia, havia surpreendentemente pouquíssima roupa, pois o calor da casa era para ele demasiado, e ele considerava calças desconfortáveis. Seus pedidos insistentes por óleo depois do banho acarretaram compras apressadas no lugarejo, que, graças aos esforços de Denniston, resultaram numa lata de brilhantina. Merlinus a usara com tanta liberalidade que seu cabelo e barba reluziam, e o cheiro pegajoso e adocicado permeava todo o aposento. Foi por isso que o senhor Bultitude arranhou a porta com a pata com tanta insistência até que por fim o deixaram entrar; e agora, com as narinas se contorcendo, estava sentado tão perto do mago quanto lhe foi possível. Ele nunca tinha farejado um homem tão interessante até então.

– Senhor – disse Merlin em resposta à pergunta que o diretor tinha acabado de lhe fazer. – Sou-lhe imensamente grato. Na realidade, não consigo entender seu modo de viver, e sua casa me parece estranha. Vocês me proporcionam um banho que poderia causar inveja ao próprio imperador, mas ninguém fica à minha disposição; dão-me uma cama mais macia que o próprio sono, mas, quando me levanto, descubro que preciso me vestir sozinho, com minhas próprias mãos, como se fosse um camponês. Deito-me num quarto com janelas de puro cristal, tanto que se pode ver o céu com a mesma nitidez quando elas estão fechadas e quando estão abertas, e no quarto não há vento suficiente para apagar um círio desprotegido; mas fico ali deitado sozinho, sem honra maior do que a de um prisioneiro num calabouço. Seu povo come carne seca e sem sabor, mas em pratos lisos como o marfim e redondos como o Sol. Na casa inteira, há calor, suavidade e silêncio que poderiam fazer um homem pensar no paraíso terrestre, mas não há tapeçarias nas paredes, nem pisos embelezados, nem músicos, perfumes, tronos, nem um vislumbre de ouro, nem um falcão, nem um cão de caça. Parece-me que o senhor não vive nem como rico nem como pobre; nem como lorde, nem como ermitão. Digo-lhe essas coisas, senhor, em resposta à sua pergunta. Elas não têm importância alguma. Agora que ninguém nos ouve além do último dos sete ursos de Logres, chegou a hora de nos abrirmos um para o outro.

Ele olhou de relance para o rosto do diretor enquanto falava; e então, como se tivesse se espantado com o que viu ali, inclinou-se de repente para a frente.

– Seu ferimento está doendo? – perguntou ele. Ransom fez que não.

– Não – disse ele –, não é o ferimento. Temos assuntos terríveis a tratar.

O homenzarrão mudou de posição, constrangido.

– Senhor – disse Merlinus, com uma voz mais grave e mais delicada –, eu poderia tirar todo o sofrimento do seu calcanhar, como se o estivesse limpando com uma esponja. Dê-me sete dias para entrar e sair, subir e descer, ir para lá e para cá, para rever antigos conhecidos. Esses campos e eu, esse bosque e eu, temos muito a dizer um ao outro.

Quando disse isso, ele estava inclinado para a frente de tal modo que seu rosto e a cara do urso estavam praticamente lado a lado, e quase se tinha a impressão de que aqueles dois poderiam estar entabulando algum tipo de conversa peluda, aos grunhidos. O rosto do druida tinha uma aparência estranhamente animal: não sensual, nem feroz, mas cheia da sagacidade paciente, não contestadora, de um bicho. Enquanto isso, o rosto de Ransom estava cheio de tormento.

– Talvez você encontre a região muito mudada – disse ele, forçando um sorriso.

– Não – respondeu Merlin. – Imagino que não vou encontrá-la muito mudada. – A distância entre os dois homens aumentava a cada instante. Merlin era como alguma coisa que não deveria estar entre quatro paredes. Embora estivesse banhado e ungido, pairava em torno dele uma impressão de terra, cascalho, folhas molhadas, água invadida por vegetação.

– Não mudada – repetiu ele, numa voz quase inaudível.

E nesse aprofundamento do silêncio interior que seu rosto atestava, seria possível acreditar que ele escutava continuamente um murmúrio de sons evasivos: o farfalhar de camundongos e arminhos, os baques do avanço de rãs, o pequeno choque da queda de avelãs, o rangido de galhos, o marulho dos regatos, o crescimento do capim. O urso tinha fechado os olhos. O ar da sala inteira estava ficando pesado, com uma espécie de anestesia flutuante.

– Através de mim – disse Merlin –, o senhor poderá extrair da terra o esquecimento de todas as suas dores.

– Silêncio – disse o diretor, com aspereza. Ele estivera afundado nas almofadas do sofá, com a cabeça caída um pouco na direção do tórax. Subitamente ele se sentou, empertigado. O mago sobressaltou-se e se empertigou da mesma forma. A atmosfera da sala desanuviou-se. Até mesmo o urso voltou a abrir os olhos.

– Não – disse o diretor. – Pelo amor de Deus, você acha que foi desenterrado para me dar um emplastro para meu calcanhar? Temos medicamentos que poderiam enganar a dor tão bem quanto sua magia telúrica, ou melhor, se não fosse minha missão suportá-la até o final. Não quero ouvir falar mais nisso. Está entendendo?

– Escuto e obedeço – disse o mago. – Mas eu não pretendia nenhum mal. Se não for para curar seu ferimento, mesmo assim, para a cura de Logres, o senhor precisará do meu intercâmbio com o campo e as águas. Será necessário que eu saia por aí, de lá para cá, revendo velhos conhecidos. Nada estará mudado, sabe? Não o que vocês chamariam de mudado.

Mais uma vez aquele peso adocicado, como o perfume do pilriteiro, pareceu voltar a se derramar sobre a Sala Azul.

– Não – disse o diretor, com a voz ainda mais alta –, já não se pode fazer isso. A alma desapareceu do bosque e da água. Ah, eu até diria que você poderia despertá-los… um pouco. Mas não seria suficiente. Uma tempestade, ou mesmo uma enchente seriam de pouca valia contra nosso inimigo atual. Sua arma se arrebentaria em suas mãos. Pois uma Força Medonha nos confronta, e é como nos tempos em que Nimrod construiu uma torre para chegar aos céus.

– Oculta ela pode estar – disse Merlinus. – Mas não mudada. Deixe-me trabalhar, meu senhor. Eu a despertarei. Porei uma espada em cada folha de capim para feri-los; e os próprios torrões de terra serão veneno aos seus pés. Hei de…

– Não – disse o diretor. – Proíbo-o de falar nisso. Se fosse possível, seria um desrespeito à lei. Qualquer vestígio do espírito que ainda permaneça na terra recolheu-se de nós mil e quinhentos anos mais, desde o seu tempo. Você não dirigirá uma palavra a ele. Você não erguerá um dedo para invocá-lo. Estou lhe ordenando. Nestes nossos tempos é totalmente fora da lei. – Até aquele instante, ele vinha falando num tom severo e frio. Agora ele se debruçou na direção de Merlin e prosseguiu com uma voz diferente. – Nunca foi muito lícito, nem mesmo no seu tempo. Lembre-se, quando tomamos conhecimento de que você seria despertado, achamos que você ficaria do lado do inimigo. E, como Nosso Senhor todas as coisas faz para cada um, um dos propósitos de você ser despertado era o da salvação da sua alma.

Merlin voltou a afundar na poltrona como um homem abatido. O urso lambeu sua mão, que pendia, pálida e relaxada, por cima do braço da poltrona.

– Senhor – disse Merlin, daí a algum tempo –, se eu não devo trabalhar para vocês desse modo, nesse caso vocês acolheram em sua casa um monte de carne inútil. Pois já não sou grande coisa como guerreiro. Se chegarmos às armas, serei de pouca valia.

– Tampouco será assim – disse Ransom, hesitando, como um homem que reluta em chegar a uma definição. – Nenhum poder que seja meramente telúrico – prosseguiu ele por fim – servirá na luta contra a Força Medonha.

– Voltemo-nos então para as preces – disse Merlinus. – Mas também por esse lado eu não era considerado de muito valor… chamavam-me de filho do demônio, alguns deles. Era mentira. Não sei, porém, por que fui trazido de volta.

– É claro que devemos manter nossas preces – disse Ransom. – Agora e sempre. Mas não foi isso o que eu quis dizer. Existem forças celestiais: forças criadas, não nesta terra, mas nos Céus.

Merlinus olhou para ele em silêncio.

– Você bem sabe do que estou falando – disse Ransom. – Eu não lhe disse, quando nos conhecemos, que os Oyéresu eram meus Senhores?

– Claro que sim – disse Merlin. – E foi assim que eu soube que o senhor pertencia à Congregação. Essa não é nossa senha em todos os cantos da Terra?

– Senha? – exclamou Ransom, com ar de surpresa. – Eu não sabia disso.

– Mas… mas – disse Merlinus –, se não conhecia a senha, como veio a dizê-la?

– Eu a disse porque era a verdade.

O mago lambeu os lábios, que tinham se tornado muito pálidos.

– Verdade como as coisas mais simples são verdadeiras – repetiu Ransom. – Verdade, como é verdade que você está sentado aqui com meu urso ao seu lado.

Merlin abriu as mãos espalmadas.

– O senhor é meu pai e minha mãe – disse ele. Seus olhos, inabalavelmente fixos em Ransom, estavam arregalados como os de uma criança espantada, mas, quanto ao resto, ele parecia ser um homem menor do que Ransom tinha de início suposto que fosse.

– Permita-me falar – disse ele por fim –, ou me mate se quiser, pois estou nas suas mãos. No meu tempo, eu também soube disso, de pessoas que falaram com os deuses. Blaise, meu Mestre, conhecia algumas palavras dessa língua. Contudo, esses eram, afinal de contas, poderes da Terra. Pois… não preciso ensiná-lo, o senhor sabe mais que eu… não é com os próprios Oyéresu, os verdadeiros poderes dos Céus, que os maiores da nossa arte se encontram, mas somente com seus espectros terrestres, suas sombras. Somente com a Vênus da Terra, o Mercúrio da Terra; não com Perelandra em si, não com Viritrilbia em si. É apenas…

– Não estou falando dos espectros – disse Ransom. – Já estive diante do próprio Marte na esfera de Marte; e diante da própria Vênus, na esfera de Vênus. O que destruirá nossos inimigos é a força deles e a força de outros maiores que eles.

– Mas, senhor – disse Merlin –, como isso é possível? Não é contra a Sétima Lei?

– Que lei é essa? – perguntou Ransom.

– Nosso Senhor Imaculado não criou uma lei para Si Mesmo para não mandar descer os Poderes, fosse para consertar, fosse para destruir as coisas nesta Terra, até o fim de todas as coisas? Ou este é o fim que neste momento está se desenrolando?

– Pode ser o início do fim – disse Ransom. – Mas disso eu nada sei. Maleldil pode ter criado uma lei para não mandar descer os Poderes. No entanto, se os homens, por meio de engenharia e filosofia natural, aprendem a voar pelos céus adentro e chegam, fisicamente, entre os Poderes celestes para perturbá-los, Ele não proibiu os Poderes de reagir. Pois tudo isso está dentro da ordem natural. Um homem perverso aprendeu a fazer isso. Ele foi voando, por um engenho sofisticado, até onde Marte reside nos Céus e até onde Vênus reside, e me levou com ele como seu prisioneiro. E lá eu falei com os verdadeiros Oyéresu frente a frente. Está me entendendo?

Merlin inclinou a cabeça.

– E assim o homem mau fez acontecer, até mesmo como Judas fez acontecer, a coisa que ele menos pretendia. Porque agora havia um homem no mundo, eu mesmo, que era conhecido dos Oyéresu e falava sua língua, nem por milagre divino nem por magia de Numinor, mas naturalmente, como quando dois homens se encontram numa estrada. Nossos inimigos tiraram de si mesmos a proteção da Sétima Lei. Eles romperam pela filosofia natural a barreira que Deus por seu próprio poder não quis romper. Da mesma forma, eles o procuraram como amigo e despertaram para si mesmos um flagelo. E é por isso que os Poderes dos Céus desceram a esta casa e, neste aposento onde agora estamos conversando, Malacandra e Perelandra falaram comigo.

O rosto de Merlin ficou um pouco mais descorado. O urso afocinhava sua mão, sem ser percebido.

– Tornei-me uma ponte – disse Ransom.

– Senhor – disse Merlin –, que resultará disso? Se eles aplicarem sua força, destruirão toda a Terra Média.

– Sua força nua e crua, sim – disse Ransom. – É por isso que se dispõem a operar somente através de um homem.

O mago passou uma mão enorme de um lado a outro da testa.

– Através de um homem cuja mente se abra para ser invadida desse modo – disse Ransom –, alguém que, por vontade própria, a abriu no passado. Tomo Nosso Senhor Imaculado por testemunha de que, se a tarefa me coubesse, eu não a recusaria. Mas ele não aceita que uma mente que ainda tem sua virgindade seja violada desse modo. E pela mente de um praticante de magia negra, a pureza deles não consegue operar, nem se dispõe a isso. Alguém que tenha se envolvido superficialmente… nos tempos em que esse tipo de envolvimento não tinha começado a ser maléfico, ou quando mal estava começando a sê-lo… e também um cristão e um penitente. Um instrumento (preciso ser explícito) bom o suficiente para ser usado dessa maneira e não bom demais. Em toda esta região ocidental do mundo, havia somente um homem que tinha vivido naquele tempo e que ainda poderia ser convocado. Você…

Ele parou, chocado com o que estava acontecendo. O homem enorme tinha se levantado da poltrona e estava em pé, agigantando-se diante dele. Da sua boca horrivelmente aberta, veio um berro que pareceu a Ransom animalesco, embora fosse na realidade somente o berro de uma primitiva lamentação celta. Era horrorizante ver aquele rosto barbado e encarquilhado todo banhado com lágrimas não disfarçadas, como o de uma criança. Todo o verniz romano em Merlinus tinha sido raspado. Ele se transformara numa monstruosidade arcaica e despudorada, balbuciando súplicas numa mistura do que parecia galês e também espanhol.

– Silêncio – gritou Ransom. – Sente-se. Você nos faz passar vergonha.

Tão de repente como tinha começado, a comoção terminou. Merlin voltou para sua poltrona. Para um homem moderno, pareceu estranho que, tendo recuperado seu autocontrole, ele não demonstrasse o mais leve embaraço por sua perda temporária. Todo o caráter da sociedade ambivalente em que esse homem devia ter vivido ficou mais claro para Ransom do que páginas de história poderiam ter tentado esclarecer.

– Não pense – disse Ransom – que também para mim seja brincadeira eu me encontrar com esses que descerão para capacitá-lo.

– O senhor – disse Merlin, hesitante – esteve no Céu. Não passo de um homem. Não sou o filho de um dos Seres Etéreos. Essa foi uma mentira. Como vou poder?… O senhor não é como eu. O senhor já contemplou os rostos deles.

– Não o de todos eles – disse Ransom. – Espíritos mais poderosos que Malacandra e Perelandra descerão desta vez. Estamos nas mãos de Deus. Isso pode destruir a nós dois. Não há garantia de que você ou eu salvemos nossa vida ou nossa razão. Não sei como vamos nos atrever a contemplar a face deles; mas sei que não poderemos ousar contemplar a face de Deus, se recusarmos essa missão.

De repente, o mago bateu com a mão no joelho.

Por Hércules! – exclamou ele. – Não estamos indo depressa demais? Se o senhor é o Líder Supremo, eu sou o Alto Conselho de Logres e vou aconselhá-lo. Se os Poderes precisarem me dilacerar para derrotar nossos inimigos, que seja feita a vontade de Deus. Mas será que já chegamos a esse ponto? E esse seu rei saxão que governa de Windsor? Não há como buscar ajuda com ele?

– Ele não tem poder sobre essa questão.

– Então ele não é fraco o suficiente para ser destronado?

– Não tenho nenhum desejo de destroná-lo. Ele é o rei. Foi coroado e ungido pelo arcebispo. Na ordem de Logres, posso ser o Líder Supremo; mas na ordem da Grã-Bretanha, sou um súdito do rei.

– Será então que são seus grandes homens, os condes, magistrados e bispos, que cometem o mal, e ele não sabe?

– É mesmo, embora eles não sejam exatamente o tipo de grande homem que você tem em mente.

– E nós não somos bastante numerosos para enfrentá-los em combate?

– Nós somos quatro homens, algumas mulheres e um urso.

– Eu vi a época em que Logres era só eu mesmo, um homem e dois meninos, e um desses era um plebeu. Mesmo assim, saímos vencedores.

– Agora, isso não poderia acontecer. Eles têm um mecanismo chamado imprensa, pelo qual as pessoas são enganadas. Nós morreríamos sem que ninguém jamais ouvisse falar de nós.

– E o que dizer dos verdadeiros clérigos? Deles também não virá ajuda? Não pode ser que todos os seus padres e bispos sejam corruptos.

– A própria Fé está dilacerada desde o seu tempo e fala com uma voz dividida. Mesmo que ela se restabelecesse, os cristãos não chegam a ser um décimo do povo. Não haverá ajuda por aí.

– Busquemos então ajuda de além-mar. Não existe príncipe cristão em Nêustria, na Irlanda ou em Benwick, que viria purificar a Britânia se fosse chamado?

– Não resta nenhum príncipe cristão. Esses outros países estão na mesma situação da Britânia, se não estiverem ainda mais imersos na doença.

– Então devemos ir a instâncias superiores. Devemos procurar aquele cuja missão é derrubar tiranos e dar vida a reinos moribundos. Devemos recorrer ao imperador.

– Não há imperador algum.

– Nenhum imperador… – começou Merlin, e então sua voz foi se calando. Por alguns minutos ele ficou imóvel, lutando com um mundo que jamais tinha visualizado. Passado algum tempo, falou. – Ocorre-me um pensamento, e não sei se é bom ou nocivo. Mas, como sou o Alto Conselho de Logres, não o esconderei do senhor. É uma era fria esta em que despertei. Se toda essa região ocidental do mundo é apóstata, não seria lícito, nesta enorme necessidade, procurar mais longe… para além das fronteiras da cristandade? Não encontraríamos pessoas, mesmo entre os pagãos, que não sejam totalmente corruptas? No meu tempo, havia relatos de pessoas desse tipo: homens que não conheciam os preceitos de nossa doutrina santíssima, mas que adoravam a Deus como podiam e reconheciam a Lei da Natureza. Senhor, creio que seria lícito procurar ajuda até mesmo lá. Para lá de Bizâncio. Ouviam-se também rumores de que havia conhecimento naquelas terras: um círculo e sabedoria orientais que vinham para o Oeste a partir de Numinor. Não sei de onde: Babilônia, Arábia ou Catai. O senhor disse que seus navios percorreram toda a terra, por cima e por baixo.

Ransom fez que não.

– Você não entende – disse ele. – O veneno foi preparado nas terras do Oeste, mas ele já está espalhado por toda parte agora. Por mais longe que fosse, você encontraria as máquinas, as cidades lotadas, os tronos vazios, os textos falsos, os leitos estéreis: homens enlouquecidos com falsas promessas e amargurados com desgraças verdadeiras, adorando as obras de ferro de suas próprias mãos, isolados da Terra, sua mãe, e de seu pai, no Céu. Você poderia ir tanto para o Leste de modo que o Leste se tornasse Oeste e você voltasse para a Britânia cruzando o grande Oceano, mas mesmo assim em parte alguma você teria conseguido sair para a luz. A sombra de uma asa escura encobre Tellus por inteiro.

– Então é o fim? – perguntou Merlin.

– E é por isso – disse Ransom, sem dar atenção à pergunta – que não nos resta saída a não ser essa única de que lhe falei. A Força Medonha segura toda esta Terra em seu punho para espremê-la à vontade. Se não fosse pelo erro que cometeram, não restaria esperança alguma. Se pela própria vontade maligna eles não tivessem derrubado a fronteira e permitido a entrada dos Poderes Celestiais, este seria o momento de sua vitória. Sua força os traiu. Eles foram aos deuses, que não teriam vindo a eles, e, com isso, fizeram a Imensidão dos Céus desabar sobre sua cabeça. Portanto, morrerão. Pois, embora você procure todas as frestas para escapar, agora que está vendo todas elas fechadas, você não me desobedecerá.

E assim, muito lentamente, foi tomando conta do rosto branco de Merlin, primeiro fechando sua boca aflita e por fim reluzindo nos seus olhos, aquela expressão quase animal, terrosa, saudável e com um toque de esperteza meio cômica.

– Bem – disse ele –, se as tocas estiverem tapadas, a raposa enfrentará os cães. Mas, se eu tivesse sabido no nosso primeiro encontro quem o senhor era, acho que o teria posto para dormir como fiz com seu Bobo.

– Meu sono é muito leve desde que viajei nos Céus – disse Ransom.