16
Foi com enorme prazer que Mark se descobriu mais uma vez se vestindo para o jantar, e para o que parecia ter a probabilidade de ser um excelente jantar. Deram-lhe um lugar entre Filostrato à direita e um recém-chegado bastante insignificante à esquerda. Até mesmo Filostrato parecia humano e amistoso em comparação com os dois iniciados, e diante do recém-chegado seu coração decididamente se alegrou. Ele percebeu com surpresa que o vagabundo estava sentado à mesa principal entre Jules e Wither, mas não olhou com frequência naquela direção, pois o vagabundo, ao captar seu olhar, tinha imprudentemente erguido o copo e piscado um olho para ele. O padre estranho estava em pé, paciente, por trás da cadeira do vagabundo. Quanto aos demais, nada de importante aconteceu até ser feito um brinde à saúde do rei e Jules se levantar para proferir seu discurso.
Durante os primeiros minutos, qualquer um que lançasse o olhar pelas longas mesas teria visto o que sempre se vê nessas ocasiões. Havia os rostos plácidos de bons vivants idosos que a comida e o vinho tinham posto num estado de contentamento que nenhuma quantidade de discursos poderia violar. Havia os rostos pacientes de comensais responsáveis porém sérios, que havia muito tempo aprenderam a continuar com os próprios pensamentos, enquanto davam ao discurso apenas a atenção suficiente para reagir, quando fossem obrigatórios uma risada ou um murmúrio baixo de grave concordância. Havia a costumeira expressão nervosa no rosto dos homens jovens que não apreciam o vinho do Porto e estão loucos para fumar. Havia uma atenção luminosa, excessivamente trabalhada, nos rostos empoados de mulheres que conheciam seu dever para com a sociedade. No entanto, se você continuasse a observar as mesas, com o tempo teria percebido uma mudança. Teria visto que um rosto depois do outro erguia os olhos e se voltava para o orador. Teria visto primeiro curiosidade, depois atenção fixa, depois incredulidade. Por fim, teria percebido que a sala estava em total silêncio, sem uma tosse ou um rangido, que todos os olhos estavam fixos em Jules, e logo todas as bocas se abriam numa expressão entre o fascínio e o horror.
Para membros diferentes da plateia, a mudança chegou de modos distintos. Para Frost, ela começou no momento em que ele ouviu Jules encerrar uma frase com as palavras “um anacronismo tão gritante quanto o de contar com o Calvário para trazer a salvação na guerra moderna”. Com a Cavalaria, pensou Frost quase em voz alta. Por que o palerma não podia cuidar do que estava dizendo? O erro causou-lhe uma irritação extrema. Talvez… mas epa! O que era aquilo? Sua audição tinha sido prejudicada? Pois Jules parecia estar dizendo que a densidade futura da humanidade dependia da implosão dos cavalos da Natureza. “Está bêbado”, pensou Frost. E então com uma pronúncia cristalina, fora de qualquer possibilidade de erro, veio “O madrigórico do agraço precisa ser taltibianizado.”
Wither demorou mais para se dar conta do que estava acontecendo. Ele nunca tinha esperado que o discurso fizesse o menor sentido como um todo e, por um bom tempo, as conhecidas palavras de ordem vinham fluindo de uma forma que não perturbava a expectativa do seu ouvido. Na realidade, ele achava que Jules estava se arriscando muito, que um pequeno passo em falso privaria tanto o orador quanto a plateia da capacidade de até mesmo fingir que ele estava dizendo alguma coisa específica. Mas, desde que essa fronteira não fosse ultrapassada, ele até que estava admirando o discurso. Era algo no seu próprio estilo. E então pensou: “Como? Isso está indo longe demais! Mesmo eles devem entender que não se pode falar em aceitar o desafio do passado, atirando a luva do futuro.” Cauteloso, ele passeou o olhar pela sala. Tudo estava bem. Mas não estaria, se Jules não se sentasse logo. Naquela última frase, sem dúvida havia palavras que ele desconhecia. Que diabos ele poderia querer dizer com assantibato? Ele passou os olhos pela sala outra vez. As pessoas estavam prestando atenção demais: sempre um mau sinal. E então veio a frase “Os suplentes exemplantaram num contínuo de variações porosas.”
De início, Mark não prestou atenção alguma no discurso. Tinha muitas outras coisas em que pensar. O surgimento daquele papagaio pomposo bem no meio da crise na sua história representava uma mera interrupção. Ele estava correndo risco demais e ao mesmo tempo, de algum modo precário, estava feliz demais para se importar com Jules. Uma vez ou duas, alguma expressão atraía sua atenção e lhe dava vontade de sorrir. O que o alertou para a situação real foi o comportamento dos que estavam sentados perto dele. Mark se deu conta da crescente imobilidade deles. Percebeu que todos menos ele próprio tinham começado a prestar atenção. Levantou os olhos e viu seus rostos. Foi então que começou a escutar de verdade. “Não haveremos”, estava dizendo Jules, “não haveremos, enquanto não garantirmos a erebação de todos os initens prostundiários.” Por menos que se importasse com Jules, um súbito choque de alarme o feriu. Ele olhou em volta novamente. Estava evidente que não era ele que tinha enlouquecido: todos ouviram o palavrório. Talvez, possivelmente com exceção do vagabundo, que exibia a atitude solene de um juiz. Ele nunca tinha ouvido um discurso de um desses caras da alta-roda mesmo e teria se sentido decepcionado se conseguisse entendê-lo. Também jamais tinha bebido vinho do Porto de boa safra e, embora não gostasse muito do sabor, vinha se dedicando a ele como gente grande.
Wither não se esquecera por um instante de que havia repórteres presentes. Isso em si não tinha muita importância. Se alguma coisa inadequada aparecesse no jornal do dia seguinte, seria moleza para ele dizer que os repórteres estavam alcoolizados ou ensandecidos e destruí-los. Por outro lado, ele poderia deixar a história passar. Sob muitos aspectos, Jules era um inconveniente, e aquela poderia ser uma oportunidade melhor do que qualquer outra para encerrar a sua carreira. No entanto, essa não era a questão imediata. Wither estava se perguntando se deveria esperar que Jules se sentasse ou se deveria se levantar e interrompê-lo com algumas palavras sensatas. Ele não queria fazer espetáculo. Seria melhor se Jules se sentasse espontaneamente. Ao mesmo tempo, àquela altura havia na sala lotada uma atmosfera que o aconselhava a não se demorar demais. Olhando para o ponteiro dos segundos do seu relógio, ele decidiu esperar mais dois minutos. Quase no instante em que fez isso, ele soube que havia calculado mal. Uma intolerável risada em voz de falsete ressoou da parte mais distante da mesa, sem querer parar. Alguma mulher pateta estava histérica. Imediatamente, Wither tocou no braço de Jules, fez um gesto de cabeça para ele e se levantou.
– Ei? Que doce duzeno? – resmungou Jules. Wither, pousando a mão no ombro do homenzinho, sem alarde, mas aplicando todo o seu peso, forçou-o a se abaixar até se sentar. Então pigarreou. Ele sabia fazer isso de um modo que todos os olhos na sala se voltassem imediatamente para ele. A mulher parou de berrar. Pessoas que estavam sentadas totalmente imóveis em posições tensas se mexeram e relaxaram. Wither passou o olhar pela sala por um segundo ou dois, em silêncio, sentindo seu domínio sobre a plateia. Ele viu que já os controlava. Não haveria mais histeria. Começou então a falar.
Todos eles deveriam ter aparentado estar cada vez mais à vontade à medida que ele prosseguia. E logo haveria murmúrios de enorme tristeza pela tragédia que eles acabavam de presenciar. Era isso o que Wither esperava. O que ele viu de fato o deixou confuso. Instalara-se o mesmo silêncio demasiadamente atento, que prevalecera durante o discurso de Jules. Olhos brilhantes que não piscavam e bocas abertas o acolhiam em todas as direções. A mulher começou a rir de novo… ou não, dessa vez eram duas mulheres. Cosser, depois de lançar um olhar assustado, levantou-se de um salto, derrubando a cadeira no chão, e saiu da sala em disparada.
O vice-diretor não conseguia entender isso, pois para ele sua voz parecia estar proferindo o discurso que ele tinha resolvido fazer. Mas a plateia o ouvia dizer “Penhoras e valores, é meu ensejo que todos nós… hã… rechacemos com beleza a azia defensável, embora, creio eu, lavatória, que reluz ter escolhido nosso pregado inspetor nesta moita. Seria… ah… seria puro, muito puro, pela equitativa de qualquer um…”
A mulher que tinha rido levantou-se apressada da cadeira. O homem sentado ao seu lado a ouviu murmurar no seu ouvido “Gol lameiro.” Ele captou as sílabas sem sentido e sua expressão antinatural de uma só vez. Por alguma razão, tudo o enfureceu. Ele se levantou para ajudá-la a devolver a cadeira para o lugar, num daqueles gestos de cortesia selvagem que muitas vezes, na sociedade moderna, funcionam no lugar da violência. Na realidade, ele arrancou a cadeira da mão dela. Ela deu um berro, tropeçou numa ruga no tapete e caiu. O homem do outro lado dela a viu cair e viu a expressão de fúria do primeiro homem. “Fiapos, cocê vez?”, rosnou ele, debruçando-se na direção do outro com um movimento ameaçador. Quatro ou cinco pessoas naquela parte da sala já estavam em pé. Estavam gritando. Ao mesmo tempo, havia movimento em outros cantos. Alguns homens mais novos estavam se encaminhando para a porta. “Penhores, penhores”, disse Wither, severo, com a voz muito mais alta. Em muitas ocasiões anteriores, com a mera elevação da voz e a emissão de uma palavra autoritária, ele tinha conduzido à ordem reuniões turbulentas.
Mas daquela vez ele nem chegou a ser ouvido. Pelo menos vinte pessoas ali presentes estavam naquele mesmo instante tentando fazer o mesmo. Para cada uma delas, estava claro que as coisas tinham chegado àquele estágio em que uma palavra ou frase de puro bom-senso, dita por uma voz diferente, devolveria a sala inteira à sanidade. Um pensou numa palavra ríspida; outro, numa piada; outro, em alguma coisa muito tranquila e reveladora. Resultado, uma nova algaravia numa enorme variedade de tons ressoava de diversos lugares simultaneamente. Frost foi o único dos líderes que não tentou dizer nada. Em vez disso, ele escreveu algo a lápis numa tira de papel, acenou para um criado e o instruiu por meio de sinais a entregar a mensagem à senhorita Hardcastle.
Quando a mensagem foi posta nas mãos dela, o clamor já era universal. Para Mark, aquilo parecia o barulho de um restaurante lotado num país estrangeiro. A senhorita Hardcastle alisou o papel e inclinou a cabeça para ler. A mensagem dizia Prace frituras intantemente até bdeluroide pontudo. Purgente. Preço. Ela amassou o papel na mão.
Antes de receber a mensagem, a senhorita Hardcastle já sabia que estava mais do que meio alcoolizada. Tinha calculado que isso fosse acontecer e pretendia que fosse assim. Ela sabia que mais tarde, depois do jantar, desceria às celas para se divertir. Havia lá uma nova prisioneira – uma garota fofinha do tipo que a Fada apreciava – com quem poderia passar uma hora agradável. O pandemônio sem sentido não a alarmava. Ela o considerava empolgante. Aparentemente, Frost queria que ela tomasse alguma atitude. Ela decidiu que o faria. Levantou-se e percorreu toda a extensão da sala até a porta. Trancou-a, pôs a chave no bolso e então se voltou para examinar os convidados. Percebeu pela primeira vez que nem o suposto Merlin nem o padre basco podiam ser vistos em parte alguma. Wither e Jules, ambos em pé, estavam lutando um com o outro. Ela partiu na direção dos dois.
Tantas pessoas tinham se levantado que ela levou um bom tempo para alcançá-los. Toda a aparência de um jantar festivo desaparecera. Aquilo se assemelhava mais à cena num terminal ferroviário em Londres num dia de feriado. Todos estavam tentando restaurar a ordem, mas, como suas palavras eram ininteligíveis, no esforço de serem compreendidos, todos falavam cada vez mais alto. Ela mesma gritou algumas vezes e chegou a lutar bastante até conseguir atingir seu objetivo.
Houve um barulho ensurdecedor e na sequência, por fim, alguns segundos de silêncio total. Mark primeiro percebeu que Jules tinha sido morto. Só em seguida foi que viu que a senhorita Hardcastle tinha atirado nele. Depois disso, foi difícil ter certeza do que aconteceu. A debandada e a gritaria ocultaram mais de dez planos razoáveis para desarmar a assassina, mas era impossível conciliá-los. Deles nada resultou a não ser chutes, brigas, saltos para cima e por baixo de mesas, investidas e recuos, gritos, quebra de vidro. Ela atirava sem parar. Foi o cheiro mais do que qualquer outra coisa que mais tarde na vida de Mark fez que ele se lembrasse da cena: o cheiro dos tiros associado ao pegajoso cheiro composto de sangue, vinho do Porto e da Madeira.
De repente, a confusão de gritos concentrou-se num único ruído agudo e prolongado de terror. Todos estavam se sentindo mais apavorados. Alguma coisa passara veloz pelo piso entre as duas mesas compridas e desaparecera debaixo de uma delas. Talvez metade dos presentes não tivesse visto o que era… tivesse apenas visto um relance de negro e amarelo castanho. Os que tinham visto a criatura com nitidez não tinham como contar aos outros. Conseguiam apenas apontar e gritar sílabas sem sentido. Mas Mark tinha reconhecido o que era. Um tigre.
Pela primeira vez naquela noite, todos se deram conta de quantos esconderijos aquela sala continha. O tigre poderia estar debaixo de qualquer uma das mesas. Poderia estar em qualquer um dos nichos das janelas salientes, por trás das cortinas. Havia também um biombo que atravessava um canto da sala.
Não se deve supor que mesmo naquele momento todos os convidados tivessem perdido o controle. Com apelos veementes à sala inteira ou sussurros urgentes aos vizinhos imediatos, eles tentavam conter o pânico, organizar uma retirada metódica, indicar como a fera poderia ser atraída ou enxotada para um lugar a céu aberto e abatida a tiros. Mas a maldição da algaravia frustrava todos os seus esforços. Eles não conseguiam deter os dois movimentos que estavam se desenrolando. A maioria não tinha visto a senhorita Hardcastle trancar a porta: eles estavam se acotovelando na direção dela, para sair a qualquer preço. Eles brigariam, matariam se pudessem, para não deixar de chegar à porta. Uma minoria numerosa, por outro lado, sabia que a porta estava trancada. Devia haver outra porta, a usada pelos criados, aquela pela qual o tigre tinha entrado. Estes estavam se precipitando para a extremidade oposta da sala para descobri-la. Todo o centro da sala estava ocupado pelo encontro daquelas duas ondas… uma enorme escaramuça de rúgbi, de início barulhenta com esforços frenéticos de explicação, mas logo, à medida que a briga se acirrava, tornou-se quase silenciosa, a não ser pelo som da respiração forçada, dos pés que chutavam ou pisoteavam e dos resmungos sem sentido.
Quatro ou cinco combatentes se encostaram pesadamente numa mesa, arrancando a toalha com sua queda e com ela todos os pratos de frutas, garrafas de vinho, taças, travessas. Do meio dessa confusão, com um uivo de terror, irrompeu o tigre. Aconteceu tão depressa que Mark mal se deu conta. Ele viu a cabeça medonha, o rosnado felino, os olhos chamejantes. Ele ouviu um tiro… o último. E então o tigre tinha sumido de novo. Alguma coisa gorda, branca e ensanguentada estava caída entre os pés dos que participavam da escaramuça. De início, de onde estava, Mark não conseguiu reconhecer quem era, pois olhava o rosto de cima para baixo e as caretas o disfarçaram até ele ficar totalmente imóvel. E então ele reconheceu a senhorita Hardcastle.
Já não se viam Wither e Frost em parte alguma. Houve um rosnado ali bem perto. Mark voltou-se, pensando ter localizado o tigre. Nesse momento ele viu com o canto do olho o relance de alguma criatura menor e mais cinza. Achou que era um pastor alemão. Se era, o cão estava enlouquecido. Ele correu ao longo da mesa, com o rabo entre as pernas, babando. Uma mulher, em pé com as costas na mesa, virou-se, viu o animal, tentou dar um grito e no instante seguinte tombou, quando a criatura investiu contra seu pescoço. Era um lobo.
– Ai… ai!!! – guinchou Filostrato e pulou para cima da mesa. Alguma outra criatura tinha passado em disparada entre seus pés. Mark viu-a seguir como um raio pelo piso e entrar na escaramuça, despertando convulsões novas e frenéticas naquela massa entranhada de terror. Era algum tipo de cobra.
Mais alto que o caos de sons que agora irrompia – a cada minuto parecia haver um novo animal na sala –, veio por fim um som do qual aqueles ainda capazes de algum entendimento puderam extrair novo ânimo. Pá… pá… pá… a porta estava sendo golpeada pelo lado de fora. Tratava-se de uma enorme porta dobrável, uma porta pela qual uma pequena locomotiva quase poderia entrar, pois o salão tinha sido feito numa imitação de Versalhes. Uma ou duas folhas já estavam se lascando. O barulho enlouqueceu os que tinham feito da porta sua meta. Ele também pareceu enlouquecer os animais. Eles não paravam para comer o que tinham matado, ou paravam só para dar uma lambida no sangue. Havia mortos e moribundos por toda parte, pois a escaramuça, àquela altura, estava matando tanto quanto as feras. E sempre, de todos os cantos, subiam as vozes que tentavam gritar para quem estava do outro lado da porta. “Depressa, depressa. Rápido”, mas só gritavam sílabas sem sentido. O barulho junto da porta estava cada vez mais alto. Como que por imitação, um gorila enorme pulou para cima da mesa, onde Jules estivera sentado, e começou a bater no próprio peito. Então, com um rugido, ele se atirou no meio da multidão.
Por fim, a porta cedeu. As duas folhas cederam. O corredor, emoldurado pelo portal, estava escuro. Do meio da escuridão, surgiu alguma coisa cinzenta, serpeante. Ela ondulou no ar e começou a arrancar metodicamente a madeira lascada de cada lado, para desobstruir a passagem. Mark viu com nitidez como ela se precipitou, enroscando-se num homem – Steele, pensou ele, mas todos pareciam diferentes agora –, e ergueu seu corpo muito alto do chão. Depois disso, monstruoso e improvável, o enorme vulto do elefante irrompeu violento sala adentro: seus olhos enigmáticos, suas orelhas, destacando-se rígidas como as asas do demônio de cada lado da cabeça. O animal ficou parado um segundo, com Steele se contorcendo na volta da tromba, e o atirou ao chão. Ele o pisoteou. Depois, levantou a cabeça e a tromba outra vez e deu um bramido horrível. E então adentrou a sala, barrindo e pisoteando: pisoteando sem parar, como uma moça pisando uvas, com passos pesados e logo molhados, numa mistura de sangue e ossos, de carne, vinho, frutas e toalhas encharcadas. Algo maior que o perigo voou da cena para dentro do cérebro de Mark. O orgulho e a glória insolente da fera, o descaso com que ela matava, pareceram esmagar seu espírito, ao mesmo tempo que suas patas chatas esmagavam homens e mulheres. Ali estava sem dúvida o rei do mundo… E então tudo ficou escuro e ele não soube de mais nada.
Quando o senhor Bultitude voltou a si, ele se encontrava num lugar escuro, repleto de cheiros desconhecidos. Isso não o surpreendeu muito, nem o perturbou. Estava habituado ao mistério. Enfiar a cara em qualquer quarto de hóspedes em St. Anne’s, como às vezes ele conseguia fazer, era uma aventura não menos extraordinária do que o que lhe acontecera. E ali os aromas eram, em geral, promissores. Ele percebeu que nas proximidades havia comida e – o que era ainda mais empolgante – uma fêmea da sua espécie. Parecia também que havia grande quantidade de outros animais por ali, mas isso era mais insignificante do que alarmante. Ele decidiu procurar a ursa e a comida. Foi nesse instante que descobriu que, em três direções, paredes bloqueavam seu caminho e, na quarta, havia grades. Ele não podia sair. Isso, associado a uma necessidade muda de companhia humana, à qual estava acostumado, aos poucos fez que mergulhasse numa depressão. Uma tristeza como somente os animais conhecem – mares imensos de emoção desconsolada sem uma única balsa de pensamento racional para servir de apoio – afogou-o em profundezas insondáveis. A seu modo, ele levantou a voz e chorou.
No entanto, não muito longe dele, outro prisioneiro, um humano, estava se sentindo tragado quase do mesma maneira. O senhor Maggs, sentado numa pequena cela branca, remoía com constância sua enorme tristeza, como somente um homem simples consegue remoer. Nas suas circunstâncias, um homem instruído teria encontrado na desgraça toques de reflexão. Ele teria pensado que aquela nova ideia de cura em vez de punição, aparentemente tão humanitária, na realidade privava o criminoso de todos os seus direitos e, ao excluir o nome Punição, tornava a coisa infinita. Mas o senhor Maggs pensava o tempo todo simplesmente numa única coisa: que aquele era o dia com que ele tinha contado durante todo o período em que cumprira sua sentença; que tinha esperado, àquela hora, estar em casa tomando chá com Ivy (ela teria preparado algum prato saboroso para ele na primeira noite) e que nada daquilo tinha acontecido. Ele permanecia sentado, totalmente imóvel. Mais ou menos de dois em dois minutos, uma única lágrima gorda lhe escorria pela bochecha. Ele não teria se importado tanto se lhe tivessem fornecido um maço de cigarros.
Foi Merlin quem trouxe a liberdade aos dois. Ele tinha saído da sala de jantar, assim que a maldição de Babel se fixou com firmeza nos inimigos. Ninguém o viu partir. Wither uma vez ouviu sua voz clamar alta e intoleravelmente alegre acima do tumulto de palavras sem sentido “Qui Verbum Dei contempserunt, eis auferetur etiam ver bum hominis.”15 Depois disso, Wither não voltou a vê-lo, nem ao vagabundo. Merlin tinha ido estragar sua casa. Ele tinha liberado feras e homens. Os animais que já estavam mutilados, ele matou com uma ação instantânea dos poderes de que dispunha, rápidos e indolores como as brandas flechas de Ártemis. Ao senhor Maggs ele entregou um bilhete escrito. Dizia o seguinte: “Meu querido Tom, espero que você esteja bem mesmo, e o diretor aqui é gente fina e diz para você vir o mais rápido possível para o Solar em St. Anne’s. E nem pense em passar por Edgestow, Tom, por favor. Mas venha da forma que puder. Imagino que alguém lhe dê uma carona. Está tudo certo. Nada mais por agora. Montes de amor da sempre sua Ivy.” Os outros prisioneiros, ele deixou ir aonde bem quisessem. O vagabundo, descobrindo que Merlin lhe dava as costas por um segundo e tendo percebido que a casa parecia estar vazia, conseguiu escapar, primeiro para a cozinha e de lá, reforçado com todos os comestíveis que conseguiu enfiar nos bolsos, para o mundo lá fora. Não me foi possível rastreá-lo depois disso.
Os animais, com exceção de um burro que desapareceu mais ou menos à mesma hora que o vagabundo, Merlin despachou para o salão de jantar, enfurecidos por sua voz e seu toque. Mas ele reteve o senhor Bultitude. Este último o reconheceu de imediato como o homem ao lado de quem ele tinha se sentado na Sala Azul: menos doce e grudento que naquela ocasião, mas reconhecivelmente a mesma pessoa. Ainda que estivesse sem a brilhantina, havia em Merlin algo que combinava perfeitamente com o urso; e, quando se encontraram, o urso “lhe fez toda a festa que um animal pode fazer para um homem”. Merlin pôs a mão na sua cabeça e sussurrou na sua orelha; e sua mente obscura se encheu de empolgação, como se algum prazer havia muito tempo proibido e esquecido de repente lhe fosse oferecido. Pelos corredores longos e vazios de Belbury, o urso foi atrás de Merlin. A saliva gotejava da sua boca, e ele começava a rosnar. Estava pensando em sabores salgados, cálidos, nas agradáveis resistências de ossos, de coisas a esmagar, a lamber e a dilacerar com os dentes.
Mark sentiu primeiro que alguém o sacudia, depois o choque da água fria lançada no seu rosto. Com dificuldade, ele se sentou. O salão estava vazio a não ser pelos corpos dos mortos desfigurados. A luz elétrica intacta iluminava feroz a confusão medonha: comida e imundície, o luxo destroçado e homens mutilados, cada um mais medonho que o outro. Foi o suposto padre basco que o despertou.
– Surge, miselle [Levanta, desgraçado] – disse ele, ajudando Mark a ficar em pé. Mark levantou-se. Tinha alguns cortes e hematomas, e sua cabeça doía, mas praticamente não estava ferido. O homem ofereceu-lhe vinho numa das grandes taças de prata, porém Mark afastou o rosto com um estremecimento. Desconcertado, ele contemplou o rosto do desconhecido e descobriu que uma carta era posta na sua mão. “Sua mulher o espera”, dizia a carta “no Solar em St. Anne’s on the Hill. Venha rápido pela estrada, da melhor forma que puder. Não se aproxime de Edgestow – A. Denniston.” Ele olhou mais uma vez para Merlin e achou seu rosto terrível. Mas Merlin encarou seu olhar com um ar de autoridade sisuda, pôs a mão no seu ombro e o empurrou até a porta, passando por cima de todo o estrago escorregadio e tilintante. Seus dedos transmitiam uma sensação de formigamento através da pele de Mark. Ele foi levado ao vestiário, forçado a vestir de qualquer jeito um casaco e um chapéu (nenhum dos dois pertencia a ele) e dali despachado à luz das estrelas, num frio cruel das duas da manhã, com Sírius de um verde cruel, alguns flocos de neve seca começando a cair. Ele hesitou. O desconhecido afastou-se um pouco dele por um segundo e então, com a mão aberta, deu-lhe um golpe nas costas. Os ossos de Mark doeram com essa lembrança enquanto ele viveu. No instante seguinte, ele se descobriu correndo, como nunca tinha corrido desde a infância. Não de medo, e sim porque suas pernas se recusavam a parar. Quando conseguiu voltar a controlá-las, ele já estava a uns oitocentos metros de Belbury e, olhando para trás, viu um clarão no céu.
Wither não estava entre os mortos na sala de jantar. Era natural que soubesse todas as saídas possíveis do recinto; e, mesmo antes da chegada do tigre, ele já tinha escapulido. Ele compreendeu o que estava acontecendo, se não com perfeição, ainda assim melhor do que qualquer outra pessoa. Viu que o intérprete basco tinha feito aquilo tudo. E, com isso, soube também que poderes superiores aos humanos haviam descido para destruir Belbury. Somente alguém cuja alma fosse cavalgada pelo próprio Mercúrio poderia desfazer a linguagem daquela forma. E isso por sua vez o informou de algo pior. Isso significava que os Mestres das Trevas tinham se equivocado totalmente em seus cálculos. Eles falaram de uma barreira que impossibilitava aos poderes da Imensidão dos Céus atingir a superfície da Terra; tinham lhe garantido que nada de fora poderia transpor a órbita da Lua. Toda a sua organização estava baseada na crença de que Tellus estava sob bloqueio, fora do alcance desse tipo de auxílio e deixada (até certo ponto) à mercê de seus mestres e dele. Portanto, Wither soube que tudo estava perdido.
É inacreditável como esse conhecimento o afetara pouco. Não poderia tê-lo afetado, porque já havia muito tempo ele deixara de acreditar no conhecimento em si. O que tinha sido na sua remota juventude uma repugnância meramente estética a realidades que fossem grosseiras ou vulgares, tinha se aprofundado e se agravado, ano após ano, transformando-se numa firme rejeição a tudo o que fosse, em qualquer grau, alheio a ele mesmo. Ele tinha passado de Hegel a Hume; depois pelo pragmatismo e então pelo positivismo lógico, para acabar saindo no vazio total. O modo indicativo correspondia agora a absolutamente nenhum pensamento que sua mente pudesse entreter. Com todo o seu coração ele determinara que não houvesse nenhuma realidade e nenhuma verdade, e agora mesmo a iminência da sua destruição não conseguia despertá-lo. A última cena do Doutor Fausto, na qual o homem delira e implora à beira do Inferno, talvez seja apenas para efeito teatral. Os últimos momentos antes da condenação eterna não costumam ser tão dramáticos. Muitas vezes, o homem sabe com perfeita clareza que algum ato de sua vontade ainda poderia salvá-lo. Mas isso não torna esse conhecimento real para ele mesmo. Alguma ínfima sensualidade habitual, algum ressentimento trivial demais para ser desperdiçado numa mosca, a entrega a alguma letargia fatal, parece-lhe naquele momento mais importante que a escolha entre o júbilo total e a destruição total. Com os olhos arregalados, vendo que o terror infinito está prestes a começar e ainda assim (por enquanto) sem conseguir se sentir aterrorizado, ele observa passivamente, sem mover um dedo por sua salvação, enquanto os últimos laços com a alegria e a razão são cortados e, sonolento, vê a armadilha se fechar sobre sua alma. Tão dominados pelo sono eles estão na hora em que abandonam o caminho certo.
Straik e Filostrato também ainda estavam vivos. Eles se encontraram num dos corredores frios, iluminados, tão distantes da sala de jantar que o barulho da carnificina não passava de um leve murmúrio. Filostrato estava ferido, com o braço direito gravemente estropiado. Eles não falaram: ambos sabiam que seria inútil tentar – mas continuaram andando um ao lado do outro. Filostrato pretendia chegar à garagem dando a volta pelos fundos. Achava que talvez conseguisse dirigir, de algum modo, pelo menos até Sterk.
Quando viraram um canto no corredor, os dois viram o que tinham visto muitas vezes mas imaginavam que não voltariam a ver – o vice-diretor, encurvado, com as juntas estalando, andando, cantarolando sua musiquinha. Filostrato não queria ir com ele, mas Wither, como que percebendo seu ferimento, lhe ofereceu um braço. Filostrato tentou recusar: sílabas sem sentido saíram da sua boca. Wither pegou com firmeza seu braço esquerdo; Straik pegou o outro, o braço estropiado. Ganindo e tremendo de dor, Filostrato os acompanhou a contragosto. O pior, porém, estava por vir. Ele não era um iniciado; nada sabia dos eldila das trevas. Acreditava que sua capacidade tinha realmente mantido vivo o cérebro de Alcasan. Por isso, mesmo com tanta dor, ele gritou horrorizado, quando descobriu que os outros dois o arrastavam pela antessala até a presença do Cabeça, sem parar para nenhum dos preparativos antissépticos que ele sempre impusera aos colegas. Em vão ele tentou dizer-lhes que um momento de tamanho descuido poderia arrasar com toda a sua obra. Mas dessa vez foi na própria sala que seus condutores começaram a se despir. E dessa vez eles tiraram toda a roupa.
Arrancaram também as dele. Quando a manga direita, dura de sangue, não saiu do lugar, Wither pegou uma faca da antessala e a rasgou. Por fim, os três homens estavam nus, postados diante do Cabeça: Straik, macilento, de ossos grandes; Filostrato, uma trêmula montanha de banha; Wither, uma senilidade obscena. E então foi atingido o ápice do terror do qual Filostrato jamais voltaria a descer; pois o que ele considerava impossível começou a acontecer. Ninguém tinha lido os mostradores, ajustado as pressões, nem ligado o ar e a saliva artificial. No entanto, palavras começaram a sair da boca seca e escancarada da cabeça do morto.
– Adorem! – disse ela.
Filostrato sentiu que seus companheiros forçavam seu corpo para a frente e depois de novo para cima; então para a frente e para baixo uma segunda vez. Ele foi obrigado a subir e descer numa obediência ritmada, enquanto os outros faziam os mesmos movimentos. Quase a última coisa que viu na Terra foram as dobras da pele no pescoço magro de Wither, balançando como a barbela de um peru. Quase a última coisa que ouviu foi Wither, começando um cantochão. Então Straik juntou-se a ele. E em seguida, com horror, Filostrato descobriu que ele próprio estava cantando:
Ouroborindra!
Ouroborindra!
Ouroborindra ba-ba-í!
Mas não por muito tempo.
– Outra – disse a voz –, deem-me outra cabeça.
Filostrato soube de imediato por que eles o forçavam a se aproximar de um determinado lugar na parede. Ele tinha projetado tudo sozinho. Na parede que separava a antessala da sala do Cabeça, havia uma pequena veneziana. Quando aberta, ela revelava uma janela na parede, e aquela janela tinha uma guilhotina que podia cair veloz e pesada. Mas a guilhotina tinha uma lâmina. A pequena guilhotina não fora criada para ser usada daquela forma. Eles iam assassiná-lo inutilmente, de um modo nada científico. Se fosse ele que estivesse fazendo aquilo a um deles, tudo teria sido diferente. Tudo teria sido preparado com semanas de antecedência: a temperatura das duas salas exatamente certa, a lâmina esterilizada, todas as ligações prontas para serem feitas, quase antes que a cabeça fosse cortada. Ele tinha calculado até mesmo as alterações que provavelmente o pavor da vítima provocaria na sua pressão sanguínea. A circulação artificial seria ajustada levando em conta essas alterações, de maneira que iniciasse seu funcionamento com a menor quebra de continuidade possível. Seu último pensamento foi o de que tinha subestimado o pavor.
Os dois iniciados, vermelhos da cabeça aos pés, olharam um para o outro, com a respiração pesada. Quase antes que as pernas e as nádegas gordas do italiano parassem de estrebuchar, os dois foram levados a recomeçar o ritual:
Ouroborindra!
Ouroborindra!
Ouroborindra ba-ba-í!
O mesmo pensamento ocorreu a ambos ao mesmo tempo. “Ela vai pedir outra.” E Straik se lembrou de que Wither estava com a faca. Com um esforço descomunal, ele conseguiu se livrar do ritmo: parecia que garras estavam rasgando seu peito de dentro para fora. Wither viu o que ele pretendia fazer. Quando Straik saiu em disparada, Wither já estava atrás dele. Straik chegou à antessala e escorregou no sangue de Filostrato. Wither golpeou-o repetidamente com a faca. Ele não tinha força para lhe cortar o pescoço, mas conseguiu matá-lo. Wither se levantou, com dores devorando seu coração de velho. Viu então a cabeça do italiano jogada no chão. Pareceu-lhe bom apanhá-la e levá-la para a sala interior, para mostrá-la ao Cabeça original. Foi o que fez. E então ele se deu conta de que alguma coisa estava se mexendo na antessala. Será que eles não haviam fechado a porta externa? Ele não conseguia se lembrar. Tinham entrado trazendo Filostrato à força entre eles. Era possível… tudo tinha sido tão fora do normal. Ele depôs a carga cuidadosamente, quase com cortesia, mesmo agora – e se dirigiu à porta entre as duas salas. No instante seguinte, ele recuou. Um urso enorme, que se ergueu nas patas traseiras no instante em que o viu, com a boca escancarada, os olhos chispando, as patas dianteiras abertas como para um abraço. Era isso o que Straik tinha se tornado? Ele soube (embora não pudesse dar atenção a isso) que estava no limiar de um mundo onde esse tipo de coisa poderia acontecer.
Ninguém em Belbury estivera mais controlado do que Feverstone. Ele nem era um iniciado como Wither, nem um inocente útil como Filostrato. Sabia da existência dos macróbios, mas esse não era o tipo de coisa pela qual se interessava. Sabia que o esquema de Belbury talvez não funcionasse, contudo sabia igualmente que, se não funcionasse, ele sairia a tempo. Mantinha abertas umas dez linhas de retirada. Também tinha a consciência perfeitamente limpa e não tinha tentado se iludir. Nunca caluniara ninguém a não ser para roubar-lhe o emprego; nunca lesara ninguém a não ser quando queria dinheiro; nunca desgostava de verdade de ninguém a não ser que a pessoa fosse enfadonha. A partir de um estágio muito inicial, ele percebeu que alguma coisa estava dando errado. Era preciso adivinhar até que ponto estava errado. Será que era o fim de Belbury? Se fosse assim, ele precisava voltar para Edgestow e investir na posição que já tinha preparado para si mesmo como protetor da universidade contra o Inec. Por outro lado, se houvesse alguma chance de aparentar ser o homem que tinha salvado Belbury num momento de crise, essa seria decididamente a melhor linha. Ele ia esperar enquanto fosse seguro. E esperou muito. Descobriu uma janelinha pela qual os pratos quentes eram passados do corredor da cozinha para o salão de jantar. Ele passou por ela e ficou observando a cena. Seus nervos estavam em excelente estado, e ele achou que poderia puxar e fechar a portinhola a tempo, se qualquer animal perigoso investisse contra a janela. Ficou ali durante o massacre inteiro, os olhos brilhando, algo semelhante a um sorriso no rosto, fumando cigarros sem parar e tamborilando com os dedos duros no peitoril da janelinha. Quando tudo terminou, disse a si mesmo: “Bem, macacos me mordam!” Sem dúvida tinha sido um espetáculo dos mais extraordinários.
Os animais fugiram todos em disparada para algum canto. Ele sabia que havia uma chance de encontrar um ou dois deles nos corredores, mas teria de se arriscar. O perigo – em moderação – atuava sobre ele como um tônico. Abriu caminho até os fundos da casa e entrou na garagem. Tinha a impressão de que devia ir para Edgestow imediatamente. Não conseguiu encontrar seu carro ali. Na realidade, havia muito menos carros do que esperava. Parecia que outras pessoas tiveram a ideia de escapulir enquanto era possível; e seu carro havia sido roubado. Ele não sentiu ressentimento e tratou de procurar outro da mesma marca. Demorou um pouco e, quando descobriu um, enfrentou uma dificuldade considerável para fazê-lo pegar. A noite estava fria. Vai nevar, pensou. Amarrou a cara, pela primeira vez naquela noite. Detestava neve. Já passava das duas da manhã quando conseguiu sair.
Bem na hora em que ia dar a partida, teve a impressão de que alguém entrara na traseira do carro, atrás dele.
– Quem está aí? – perguntou, em tom áspero. Resolveu descer para olhar. Mas, para sua surpresa, seu corpo não obedeceu a essa decisão. Em vez disso, ele saiu da garagem dirigindo o carro, deu a volta pela frente da casa e saiu para a estrada. Àquela altura a neve estava caindo de verdade. Ele descobriu que não conseguia virar a cabeça e não conseguia parar de dirigir. Além disso, estava desenvolvendo uma velocidade absurda, na droga daquela neve. Não tinha escolha. Muitas vezes ouvira falar em carros guiados a partir do assento traseiro, e parecia que aquilo estava acontecendo mesmo. Então para sua consternação ele descobriu que tinha deixado a estrada. O carro, ainda a uma velocidade imprudente, seguia aos solavancos, saltando, pelo que se chamava de Alameda dos Ciganos ou (pelos instruídos) de Wayland Street – a antiga estrada romana de Belbury a Edgestow, cheia de capim e sulcos. “Ora! Que diabo estou fazendo?”, pensou Feverstone. “Será que bebi demais? Vou quebrar o pescoço nessa brincadeira, se não me cuidar!” Contudo, o carro prosseguia como se estivesse sendo dirigido por alguém que considerava aquela trilha uma excelente estrada e o caminho natural para Edgestow.
Frost saiu do salão de jantar alguns minutos depois de Wither. Ele não sabia aonde estava indo ou o que estava prestes a fazer. Havia muitos anos que acreditava, em teoria, que tudo o que se apresenta à mente como motivo ou intenção consiste tão somente em um subproduto do que o corpo está fazendo. No entanto, durante o último ano, mais ou menos – desde que tinha sido iniciado –, começara a saborear como fato o que por tanto tempo havia sustentado como teoria. Cada vez mais, seus atos se mostravam desprovidos de motivo. Ele fazia isso e aquilo, dizia assim e assado, e não sabia por quê. Sua mente era mera espectadora. Ele não conseguia entender por que seria necessária a existência daquela espectadora. Ele se ressentia dessa existência, mesmo enquanto afirmava a si próprio que o ressentimento também era apenas um fenômeno químico. A emoção mais próxima de uma paixão humana que ainda existia nele era uma espécie de fúria controlada contra todos os que acreditavam na mente. Não havia como tolerar uma ilusão dessas. Não havia, e não devia haver, essa coisa que se chama de homem. Mas nunca, até aquela noite, ele tinha se dado conta com tanta nitidez de que o corpo e seus movimentos eram a única realidade, que o eu que parecia observar o corpo deixando o salão de jantar e seguindo para a câmera do Cabeça era uma nulidade. Como era enfurecedor que o corpo tivesse o poder de projetar um eu ilusório!
Foi assim que o Frost cuja existência Frost negava viu seu corpo entrar na antessala, viu-o deter-se de chofre ao deparar com um cadáver nu e ensanguentado. Ocorreu a reação química denominada choque. Frost parou, revirou o corpo e reconheceu Straik. Um instante depois, seu pincenê reluzente e a barba pontuda olharam no interior da sala do Cabeça. Ele quase não notou que Wither e Filostrato jaziam ali mortos. Sua atenção estava fixada em algo mais sério. O suporte onde a Cabeça deveria estar estava vazio: o círculo de metal retorcido, os tubos de borracha, emaranhados e arrebentados. Ele então percebeu uma cabeça no chão. Curvou-se para examiná-la. Era a de Filostrato. Da cabeça de Alcasan, ele não encontrou sinal, a menos que ela fosse uma confusão de ossos quebrados ao lado da de Filostrato.
Ainda sem perguntar o que faria nem por quê, Frost foi à garagem. O local estava totalmente vazio e em silêncio. A neve estava alta no chão. Ele voltou com tantas latas de gasolina quanto conseguiu carregar. Empilhou, na Sala da Objetividade, todos os inflamáveis em que conseguiu pensar. Depois trancou-se, fechando com a chave a porta externa da antessala. O que quer que estivesse ditando suas ações fez que enfiasse a chave no tubo de intercomunicação com o corredor. Quando a empurrou até onde seus dedos alcançavam, Frost tirou um lápis do bolso e com ele a empurrou. Logo ouviu o retinir da chave caindo no chão do corredor do outro lado. Aquela ilusão enfadonha, sua consciência, estava gritando em protesto. Seu corpo, mesmo que ele quisesse, não tinha força para dar atenção aos berros. Como a figura mecânica que tinha escolhido ser, seu corpo rígido, agora terrivelmente frio, entrou de novo na Sala da Objetividade, derramou toda a gasolina e atirou um fósforo aceso na pilha. Somente então seus controladores permitiram que ele suspeitasse que a própria morte talvez não o curasse da ilusão de ser uma alma. Pelo contrário, talvez ela provasse a entrada num mundo em que essa ilusão dominava infinita e irrestrita. Foi-lhe oferecida uma saída para a alma, se não para o corpo. Ele tomou conhecimento (e simultaneamente o rejeitou) de que estivera errado desde o início, que as almas e a responsabilidade pessoal existiam. Isso ele viu em parte; e odiou totalmente. A tortura física de morrer queimado não foi mais feroz que seu ódio. Com esforço supremo, Frost mergulhou de volta na sua ilusão. Nessa atitude, a eternidade o alcançou, como em histórias antigas o nascer do sol os alcança e os transforma em pedra imutável.