17
A claridade do dia chegou sem nenhum nascer do sol visível, enquanto Mark subia ao ponto mais alto na sua jornada. A estrada branca, ainda virgem de trânsito humano, mostrava ora as pegadas de uma ave, ora as de um coelho, pois a nevada naquele instante estava chegando ao fim, numa revoada de flocos maiores e mais lentos. Um grande caminhão, parecendo preto e aconchegante naquela paisagem, emparelhou com ele. O homem pôs a cabeça para fora da janela.
– Indo para Birmingham, companheiro? – perguntou ele.
– Para aquele lado – respondeu Mark. – Pelo menos vou até St. Anne’s.
– E onde isso fica? – disse o motorista.
– No alto do morro atrás de Pennington – disse Mark.
– Ah – disse o homem. – Posso levar você até a esquina. Já lhe poupa um pedaço do caminho. – Mark subiu e se sentou ao seu lado.
Metade da manhã já tinha se passado, quando o homem o deixou numa esquina ao lado de um pequeno hotel de interior. A neve tinha assentado, e no céu havia mais por cair. O dia estava extremamente silencioso. Mark entrou no hotelzinho, onde encontrou uma estalajadeira idosa e gentil. Tomou um banho quente e um café da manhã de primeira. Adormeceu numa poltrona diante de um fogo vigoroso. Só acordou por volta das quatro. Calculou que estava a apenas alguns quilômetros de St. Anne’s e resolveu tomar o chá antes de partir. Tomou-o. Por sugestão da estalajadeira, acompanhou-o de um ovo quente. Na pequena sala de estar havia duas prateleiras cheias de volumes encadernados de The Strand. Num deles, Mark encontrou uma história infantil seriada que tinha começado a ler ainda menino, mas que abandonara por ter completado dez anos, quando ainda estava na metade e por sentir vergonha de lê-la com aquela idade. Agora, ele a perseguiu de um volume para outro até terminá-la. Era boa. As histórias para adultos para as quais ele tinha se voltado, depois do aniversário de dez anos, agora lhe pareciam lixo, com exceção de Sherlock Holmes. “Acho que preciso ir andando logo”, disse para si mesmo.
Sua leve relutância em fazer isso não provinha do cansaço – de fato, ele se sentia perfeitamente repousado e melhor do que tinha se sentido havia algumas semanas –, mas de uma espécie de timidez. Ia ver Jane; e Denniston; e (provavelmente) os Dimbles também. Na realidade, ia ver Jane no que ele agora considerava ser o mundo certo dela. Mas não dele. Pois agora ele acreditava que, com toda a sua ansiedade de uma vida inteira por pertencer a um círculo fechado, ele havia escolhido o círculo errado. Jane estava no devido lugar. Ele ia ser aceito somente por gentileza, porque Jane fora tola o suficiente para se casar com ele. Mark não se ressentia disso, porém se sentia acanhado. Via a si mesmo, como esse novo círculo devia vê-lo – como mais um grosseiro insignificante, igual aos Steeles e aos Cossers, enfadonho, obscuro, assustado, calculista, frio. Ele se perguntou vagamente por que era assim. Como outras pessoas, como Denniston ou Dimble, tinham tanta facilidade para passear pelo mundo, com todos os músculos relaxados e um olhar descuidado percorrendo o horizonte, transbordando de fantasia e humor, sensíveis à beleza, não permanentemente na defensiva e sem precisar estar? Qual era o segredo daquele riso fácil e agradável que ele por nenhum esforço conseguia imitar? Tudo neles era diferente. Eles não podiam nem mesmo se jogar em poltronas sem sugerir, pela postura dos membros, certa nobreza, uma indolência leonina. Na vida deles havia uma liberdade de atuação que nunca houvera na dele. Eles eram Copas; ele era somente Espadas. Mesmo assim, precisava ir andando… É claro, Jane era Copas. Ele devia lhe dar sua liberdade. Seria totalmente injusto pensar que seu amor por ela tinha sido desprezivelmente sensual. O amor, diz Platão, é filho da carência. O corpo de Mark era mais sábio do que sua mente até pouco tempo atrás; e mesmo seus desejos sensuais eram o verdadeiro indicador de algo que lhe faltava e Jane tinha para dar. Quando Jane passou pela primeira vez pelo mundo seco e empoeirado que sua mente habitava, ela havia sido como uma chuvarada de primavera. Ao se abrir para ela, ele não estava equivocado. Tinha errado somente ao supor que o casamento, em si, lhe dava poder ou direito de se apoderar daquele frescor. Como agora percebia, seria o mesmo que pensar que se poderia comprar um pôr do sol, adquirindo o campo do qual ele tivesse sido visto.
Ele tocou a sineta e pediu a conta.
Naquela mesma tarde, Mamãe Dimble e as três moças estavam lá em cima, no grande aposento, que ocupava praticamente todo o andar superior de uma ala do Solar, e que o diretor chamava de Guarda-Roupa. Quem tivesse olhado de relance ali dentro teria imaginado por um instante que não se encontrava num aposento, mas em algum tipo de floresta – uma floresta tropical refulgindo com cores vivas. Um segundo olhar, e seria possível imaginar que se estava num daqueles deliciosos andares superiores de uma imensa loja, onde tapetes colocados em pé e tecidos suntuosos suspensos do teto criam uma espécie de floresta entretecida. Na realidade, elas estavam em pé no meio de uma coleção de trajes de gala: dezenas de trajes, cada um separado do outro, dispostos na sua pequena coluna de madeira.
– Esse ficaria lindo em você, Ivy – disse Mamãe Dimble, levantando com a mão a prega de um manto de um verde forte, sobre o qual pequenos arabescos e espirais de ouro formavam um desenho festivo. – Vamos, Ivy – continuou ela –, você não gostou? Você não está amolada por causa de Tom, está? O diretor não lhe disse que ele estará aqui hoje à noite ou amanhã ao meio-dia, o mais tardar?
Ivy olhou para ela com ar perturbado.
– Não é isso – disse ela. – Onde será que o diretor vai estar?
– Mas você não pode querer que ele fique, Ivy – disse Camilla –, não em dor permanente. E seu trabalho estará terminado… se tudo der certo em Edgestow.
– Ele sempre quis voltar para Perelandra – disse Mamãe Dimble. – É como se fosse saudade de casa. Sempre, sempre… Dava para ver nos olhos dele.
– E aquele tal de Merlin, vai voltar para cá? – perguntou Ivy.
– Creio que não – disse Jane. – Creio que nem ele nem o diretor pensam que ele vai voltar. E depois tive um sonho ontem à noite. Parecia que ele estava pegando fogo… Não quero dizer que estivesse sendo queimado, sabe, mas que havia luz… todos os tipos de luz nas cores mais estranhas eram lançadas dele e o percorriam da cabeça aos pés. Esta foi a última coisa que vi: Merlin em pé ali como algum tipo de coluna e todas aquelas coisas horrendas acontecendo à sua volta. E dava para ver no seu rosto que ele era um homem totalmente esgotado, se vocês entendem o que quero dizer, que ele cairia destroçado no instante em que os poderes o liberassem.
– Não estamos avançando com a escolha dos nossos vestidos para esta noite.
– De que ele é feito? – perguntou Camilla, passando o dedo e depois cheirando o manto verde. Era uma pergunta digna de ser feita. O tecido não era nem um pouco transparente; e, no entanto, todos os tipos de luzes e sombras residiam em suas pregas ondulantes; e ele escorria pelas mãos de Camilla como uma queda-d’água. Ivy começou a se interessar.
– Puxa! – disse ela. – A quanto sairia um metro?
– Pronto – disse Mamãe Dimble, enquanto o ajeitava com habilidade em torno de Ivy. E então exclamou, com verdadeira surpresa: – Ah!. – As três recuaram diante de Ivy, observando-a com prazer. Sua aparência comum não tinha exatamente sumido das suas formas e do seu rosto; entretanto o traje se apropriara dela, como um grande compositor se apropria de uma melodia popular e a joga como uma bola através da sua sinfonia, fazendo dela uma maravilha, deixando, contudo, que continue a ser ela mesma. Uma “fada espevitada” ou um “elfo esperto”, uma vivacidade pequena porém perfeita, estava diante delas, mas ainda era reconhecível como Ivy Maggs.
– Não é típico de um homem? – exclamou a senhora Dimble. – Não há um espelho neste aposento.
– Acho que não era para nós nos vermos – disse Jane. – Ele disse alguma coisa sobre sermos espelhos suficientes umas para as outras.
– Eu só queria ver como estou de costas – disse Ivy.
– Agora Camilla – disse Mamãe Dimble. – Nenhum quebra-cabeça para você. Esse aqui é obviamente o seu.
– Ah, você acha que é esse mesmo? – perguntou Camilla.
– É claro que sim – disse Jane.
– Você vai ficar tão linda nesse aí – disse Ivy. Era um vestido longo e justo que parecia da cor do aço, embora fosse macio como espuma ao toque. Ele se enrolava justo nos quadris e se abria numa cauda que roçava os calcanhares. “Como uma sereia”, pensou Jane e, então, “como uma valquíria.”
– Sinto lhe avisar – disse Mamãe Dimble – que com esse vestido você vai precisar usar um diadema.
– Isso não seria um pouco…
Mas Mamãe Dimble já o estava colocando na cabeça de Camilla. Aquela reverência que quase todas as mulheres sentem pelas joias (que não precisa estar relacionada ao valor em dinheiro) fez que três delas se calassem por um momento. Talvez não existissem outros diamantes semelhantes na Inglaterra. O esplendor era fabuloso, despropositado.
– O que vocês estão olhando desse jeito? – perguntou Camilla, que tinha visto não mais que um relance, quando a coroa foi levantada pelas mãos da senhora Dimble, e não sabia que estava ali postada “como a luz das estrelas, nos despojos das províncias”.
– São de verdade? – perguntou Ivy.
– De onde eles são, Mamãe Dimble? – perguntou Jane.
– Tesouro de Logres, queridas, tesouros de Logres – disse a senhora Dimble. – Talvez de um tempo antes do dilúvio ou de lugares para além da Lua. Agora Jane.
Jane não conseguiu ver nada de especialmente apropriado no traje que as outras concordaram em vestir nela. O azul era de fato sua cor, mas ela tinha pensado em alguma coisa um pouco mais austera e dignificada. Se lhe coubesse escolher, teria considerado aquele traje um pouco elaborado demais. No entanto, quando viu as outras baterem palmas, resignou-se. Na realidade, nem lhe ocorreu agir de outro modo, e toda a questão foi esquecida dali a um instante diante da empolgação de escolher um traje para Mamãe Dimble.
– Alguma coisa discreta – disse ela. – Sou uma velha e não quero parecer ridícula.
– Esse não serviria de modo algum – disse Camilla, caminhando pela longa fileira de esplendores suspensos, ela própria como um meteoro, enquanto passava diante do pano de fundo de púrpura, ouro e escarlate, de neve macia e opala indefinível, de pele, seda, veludo, tafetá e brocado. – Aquele é lindo – disse ela. – Mas não para a senhora. E ah! Olhe só aquele! Mas não combinaria. Não estou vendo nada…
– Aqui! Ai, venham olhar, sim! Venham! – gritou Ivy, como se tivesse medo de que sua descoberta fugisse, se as outras não lhe dessem atenção imediata.
– Ah! Sim, é esse mesmo – disse Jane.
– Sem dúvida – disse Camilla.
– Vista, Mamãe Dimble – disse Ivy. – A senhora sabe que tem de vestir. – Era daquela cor de labareda quase tirânica que Jane tinha visto na visão no pavilhão, mas com um corte diferente, com pele em torno do grande broche de cobre que fechava a gola no pescoço, com mangas compridas drapeadas. E era acompanhado por um barrete de muitas pontas. E mal tinham segurado o vestido, todas ficaram espantadas, nenhuma mais do que Jane, embora na realidade ela tivesse tido as melhores razões para prever o resultado. Pois aquela esposa limitada de um acadêmico bastante obscuro, aquela mulher respeitável e estéril de cabelos grisalhos e com papadas, estava em pé diante dela, sem possibilidade de equívoco, como uma espécie de sacerdotisa ou sibila, a serva de alguma deusa da fertilidade da pré-história – uma antiga matriarca tribal, mãe de mães, grave, aterradora e venerável. Um longo cajado, entalhado minuciosamente como se uma cobra estivesse enroscada nele de alto a baixo, parecia pertencer ao traje. Elas o puseram na sua mão.
– Estou um espanto? – disse Mamãe Dimble, olhando para os três rostos calados.
– Está linda – disse Ivy.
– É o traje exato – disse Camilla.
Jane pegou a mão da velha senhora e a beijou.
– Querida – disse ela –, um espanto, no bom sentido, é a descrição exata de sua aparência.
– O que os homens vão usar? – perguntou Camilla de repente.
– Não se pode esperar que estejam usando roupa de gala, não é mesmo? – disse Ivy. – Não, se estão cozinhando e levando coisas para lá e para cá o tempo todo. E eu devo dizer que, se esta tiver de ser a última noite e tudo o mais, na minha opinião nós é que deveríamos ter preparado o jantar. Eles que resolvam o que quiserem a respeito do vinho. E o que vão fazer com aquele ganso é mais do que eu queria imaginar, porque creio que o senhor MacPhee jamais assou uma ave na vida, não importa o que diga.
– Seja como for, não vão conseguir estragar as ostras – disse Camilla.
– É verdade – disse Ivy. – Nem o pudim de ameixas, não mesmo. Mas bem que eu queria descer para dar uma olhada.
– Melhor não – disse Jane, com uma risada. – Você sabe como ele fica quando está no comando da cozinha.
– Não tenho medo dele – disse Ivy, quase, mas sem chegar a mostrar a língua. E no seu traje atual o gesto não destoava.
– Vocês não precisam se preocupar nem um pouco com o jantar, garotas – disse Mamãe Dimble. – Ele vai prepará-lo muito bem. Desde que ele e meu marido não enveredem por alguma discussão filosófica, exatamente quando deveriam estar servindo os pratos. Vamos nos divertir. Como está quente aqui dentro.
– ‘Tá uma delícia – disse Ivy.
Nesse instante, o aposento inteiro sacudiu-se de uma ponta até a outra.
– Que pode ter sido isso? – disse Jane.
– Se ainda estivéssemos em guerra, eu diria que foi uma bomba – disse Ivy.
– Venham olhar – disse Camilla, que tinha retomado seu controle mais rápido que as outras e agora estava à janela que dava para o oeste, na direção do vale do Wynd. – Ai, olhem! – disse ela outra vez. – Não, não é fogo. E não são holofotes. Também não são relâmpagos ramificados. Ui!… Mais um choque. E lá… Olhem para lá! Está claro como o dia lá, para além da igreja. Ora, do que eu estou falando? São só três da tarde. Aquilo é mais claro que o dia. E o calor!
– É que começou – disse Mamãe Dimble.
Naquela manhã, mais ou menos na mesma hora em que Mark subia no caminhão, Feverstone, não muito ferido, mas bastante abalado, conseguia sair do carro roubado. Aquele carro tinha terminado seu percurso, capotado numa vala funda, e Feverstone, sempre disposto a ver o lado positivo de tudo, enquanto se esforçava para sair dele, pensava que as coisas poderiam ter sido piores: poderia ter sido seu próprio carro. A neve estava espessa na vala, e ele ficou muito molhado. Quando se levantou e olhou ao redor, viu que não estava sozinho. Um vulto alto e parrudo, de batina preta, estava diante dele, a cerca de cinco metros de distância. Estava de costas para ele e já se afastava a passos firmes.
– Ei! – gritou Feverstone. O outro virou-se e olhou para ele em silêncio por um segundo ou dois; e então retomou sua caminhada. Feverstone sentiu de imediato que aquele não era o tipo de homem com quem poderia se dar. Na verdade, ele nunca tinha gostado menos da aparência de alguém. Tampouco poderia ele, nos seus sapatos leves, arrebentados e ensopados, acompanhar o passo vigoroso de mais de seis quilômetros por hora daqueles pés calçados com botas. Ele nem tentou. O vulto de preto chegou a um portão, parou ali e fez um ruído como um relincho. Parecia que estava falando com um cavalo do outro lado do portão. No instante seguinte (Feverstone não viu exatamente como aconteceu), o homem já estava para lá do portão e estava montado no cavalo, partindo a meio galope por um descampado, que se erguia branco como o leite até o horizonte.
Feverstone não fazia ideia de onde se encontrava, porém estava claro que a primeira coisa a fazer era chegar a uma estrada. Isso demorou muito mais do que ele esperava. Não estava frio de congelar, e poças fundas estavam escondidas por baixo da neve em muitos lugares. Ao pé do primeiro monte, ele chegou a tamanho atoleiro que foi forçado a abandonar o leito da estrada romana e tentar abrir caminho pelos campos. A decisão foi fatal. Ela o fez gastar duas horas procurando por aberturas em sebes e tentando alcançar o que de longe pareciam ser estradas, mas que revelavam não ser nada disso, quando ele se aproximava. Sempre detestara o campo e sempre detestara as intempéries, além de não ser apreciador de caminhadas.
Quase ao meio-dia, ele encontrou uma estrada sem postes indicadores, que uma hora depois o levou a uma estrada principal. Ali, graças a Deus, havia um bom volume de tráfego, tanto de automóveis como de pedestres, todos num único sentido. Os três primeiros carros não deram a menor atenção a seus sinais. O quarto parou.
– Depressa, entre logo – disse o motorista.
– Está indo para Edgestow? – perguntou Feverstone, com a mão na porta.
– Deus do céu, não! – disse o outro. – Edgestow fica para lá! – (e ele apontou para trás) –, se é que você vai querer ir lá. – O homem pareceu surpreso e consideravelmente nervoso.
No final, não houve o que fazer a não ser andar. Todos os veículos estavam indo embora de Edgestow, nenhum indo para Edgestow. Feverstone ficou um pouco surpreso. Sabia tudo a respeito do êxodo (na verdade, fora parte do seu plano de limpar a cidade ao máximo possível), mas tinha suposto que àquela altura já tivesse terminado. No entanto, durante toda aquela tarde, enquanto ele patinhava e escorregava ao avançar pela neve revirada, os fugitivos continuavam a passar por ele. É claro que praticamente não temos nenhuma prova de primeira mão do que aconteceu em Edgestow naquela tarde e naquela noite. Mas temos uma boa quantidade de histórias de como tantas pessoas deixaram a cidade no último momento. Elas encheram os jornais durante semanas e permaneceram como tema em conversas particulares durante meses. No final, viraram piada. “Não, eu não quero saber como você saiu de Edgestow” tornou-se uma frase feita. Mas, por trás de todos os exageros, permanece a verdade inconteste de que um número espantoso de cidadãos deixou a cidade bem a tempo. Um recebeu uma mensagem de um pai moribundo. Outro decidiu de modo totalmente repentino, e ele não sabia dizer por quê, sair para tirar pequenas férias. Outro viajou porque os canos da sua casa tinham estourado com o gelo e ele achou melhor sair até que eles fossem consertados. Não foram poucos os que partiram por causa de algum acontecimento trivial, que lhes pareceu um prenúncio: um sonho, um espelho partido, folhas de chá numa xícara. Presságios de um tipo mais antigo também foram reavivados durante essa crise. Um tinha ouvido seu burro, outra pessoa tinha ouvido seu gato, dizer “com a maior clareza”: “Vá embora.” E centenas ainda estavam partindo pelos velhos motivos: porque suas casas lhes foram tiradas, seu meio de vida foi destruído e suas liberdades, ameaçadas pela Polícia Institucional.
Foi por volta das quatro da tarde que Feverstone se descobriu atirado de cara no chão. Esse foi o primeiro choque. Eles continuaram, cada vez mais frequentes, durante as horas que se seguiram: horríveis estremecimentos e logo arfadas da terra; além de um murmúrio crescente de barulhos subterrâneos generalizados. A temperatura começou a subir. A neve estava desaparecendo por todos os lados, e às vezes ele se descobria com água pelos joelhos. O ar estava tomado por uma névoa da neve que se derretia. Quando ele chegou à crista da última descida íngreme da chegada a Edgestow, não conseguiu ver nada da cidade: só o nevoeiro, através do qual subiam aos seus olhos extraordinários lampejos de luz. Mais um choque fez que se estatelasse no chão. Ele então resolveu não descer. Daria meia-volta e acompanharia o trânsito – procuraria alcançar a ferrovia para tentar chegar a Londres. Surgiu na sua mente a imagem de uma sauna no seu clube, dele mesmo diante do guarda-fogo no salão de fumar, contando toda aquela história. Seria algo ter sobrevivido a Belbury e a Bracton. Ele tinha sobrevivido a muitas coisas no seu tempo e acreditava na sua sorte.
Já tinha dado alguns passos morro abaixo quando tomou essa decisão e deu meia-volta na mesma hora. Mas, em vez de subir, ele descobriu que estava descendo. Como se estivesse pisando em piçarra numa encosta de montanha, em vez de numa estrada encascalhada, o chão deslizava para trás onde ele pisava. Quando conseguiu parar de descer, estava trinta metros mais abaixo. Começou a subir de novo. Dessa vez, foi jogado de onde estava, rolou de pernas para o ar, com pedras, terra, capim e água se despejando por cima e em torno dele, numa confusão turbulenta. Era como uma grande onda derrubando algum banhista, contudo era uma onda de terra. Ele se pôs em pé de novo, voltando-se para o monte. Lá atrás, o vale parecia ter se transformado num Inferno. O abismo coberto de nevoeiro tinha entrado em combustão e ardia com chamas ofuscantes da cor de violeta; em algum lugar havia ronco de água, prédios desabando, turbas gritando. O morro diante dele estava em ruínas – nenhum sinal de estrada, sebe ou campo, somente uma cascata de terra nua solta. E também estava muito mais íngreme do que tinha sido. Sua boca, cabelo e narinas estavam cheios de terra. A encosta estava se tornando mais íngreme, enquanto ele olhava. A crista se erguia cada vez mais. Depois toda a onda de terra subiu, arqueou-se, tremeu e, com todo o seu peso e estrondo, derramou-se sobre ele.
– Por que Logres, senhor? – perguntou Camilla.
O jantar tinha terminado em St. Anne’s, e eles estavam sentados com o vinho, num círculo em torno da lareira da sala de jantar. Como tinha profetizado a senhora Dimble, os homens o prepararam muito bem. Somente depois que terminaram de servir e de limpar a mesa foi que eles vestiram seus trajes festivos. Agora todos estavam sentados à vontade e diversamente esplêndidos: Ransom coroado, à direita da lareira; Grace Ironwood, de preto e prata, diante dele. Fazia tanto calor que eles tinham deixado o fogo bem baixo; e à luz das velas os trajes nobres pareciam ter um fulgor próprio.
– Fale com eles, Dimble – disse Ransom. – Não vou conversar muito de agora em diante.
– Está cansado, senhor? – perguntou Grace. – A dor está forte?
– Não, Grace – respondeu ele. – Não se trata disso. Mas agora que está tão próxima a hora de minha partida, tudo isso começa a dar a impressão de um sonho. Um sonho feliz, entendam. Todo ele, até mesmo a dor. Quero saborear cada gota. Sinto que ele se dissolveria, se eu falasse muito.
– Suponho que o senhor tenha mesmo de ir, não é? – disse Ivy.
– Minha cara – disse ele –, o que mais há a fazer? Não envelheci um dia nem uma hora desde que voltei de Perelandra. Não existe morte natural pela qual eu possa esperar. O ferimento somente será curado no mundo em que o recebi.
– Tudo isso tem a desvantagem de ser totalmente contrário às leis observadas na Natureza – comentou MacPhee. O diretor sorriu sem falar, como um homem que se recusa a ser provocado.
– Não é contrário às leis da natureza – disse uma voz, do canto onde Grace Ironwood estava sentada, quase invisível nas sombras. – Você está absolutamente certo. As leis do universo nunca são desrespeitadas. Seu erro está em pensar que as pequenas regularidades que observamos num único planeta por algumas centenas de anos são as verdadeiras leis infrangíveis; quando elas são apenas os resultados remotos que as verdadeiras leis costumam provocar com maior frequência; como uma espécie de acidente.
– Shakespeare jamais descumpre as verdadeiras leis da poesia – acrescentou Dimble. – Mas, ao segui-las, de vez em quando ele desrespeita as regularidades insignificantes que os críticos confundem com as verdadeiras leis. E então os pequenos críticos chamam isso de “licença”. Mas para Shakespeare não há nada de licencioso nisso.
– E é por isso – disse Denniston – que nada na natureza é totalmente regular. Sempre há exceções. Em média uma boa uniformidade, mas não no todo.
– Não passaram diante dos meus olhos muitas exceções à lei da morte – observou MacPhee.
– E como – disse Grace com muita ênfase –, como você haveria de esperar estar presente em mais de uma ocasião dessas? Você foi amigo de Artur ou de Barbarossa? Você conheceu Enoque ou Elias?
– Você está querendo dizer – disse Jane – que o diretor… o Líder Supremo… vai para onde eles foram?
– Sem dúvida, ele estará com Artur – disse Dimble. – Não posso dizer nada quanto aos demais. Existem pessoas que nunca morreram. Ainda não sabemos o porquê. Sabemos um pouco mais do que sabíamos a respeito do como. Existem muitos lugares no Universo… quer dizer, neste mesmo universo físico em que nosso planeta se movimenta… onde um organismo pode durar praticamente para sempre. Nós sabemos onde Artur está.
– Onde? – perguntou Camilla.
– No Terceiro Céu, em Perelandra. Em Aphallin, a ilha distante que os descendentes de Thor e Tinidril somente encontrarão daqui a cem séculos. Talvez sozinho? – … ele hesitou e olhou para Ransom, que fez que não.
– E é aí que entra Logres, não é? – disse Camilla. – Porque ele estará com Artur?
Dimble ficou calado por alguns minutos, arrumando e rearrumando a faca e o garfo de frutas no prato.
– Tudo começou – disse ele – quando descobrimos que a história arturiana é em grande parte real. Houve um momento no século VI em que alguma coisa que está sempre tentando surgir neste país quase teve êxito. Logres foi nosso nome para ela… serve tanto quanto outro nome. E depois… aos poucos começamos a encarar toda a história inglesa de uma nova perspectiva. Descobrimos a perseguição.
– Que perseguição? – perguntou Camilla.
– A de como alguma coisa que chamamos de Britânia é sempre atormentada por algo que podemos chamar de Logres. Você não percebeu que somos dois países? Depois de cada Artur, um Mordred; atrás de cada Milton, um Cromwell: uma nação de poetas, uma nação de comerciantes; a pátria de Sidney… e de Cecil Rhodes. É de estranhar que eles nos chamem hipócritas? Mas aquilo que confundem com hipocrisia é na realidade a luta entre Logres e Britânia.
Ele fez uma pausa e bebericou o vinho antes de prosseguir.
– Foi muito mais tarde – disse ele –, depois que o diretor retornou do Terceiro Céu, que nos contaram um pouco mais. Essa perseguição revelou ser não só proveniente do outro lado do muro invisível. Ransom foi convocado à cabeceira de um velho que estava morrendo em Cumberland. Seu nome não significaria nada para vocês, se eu o dissesse. Esse homem era o Líder Supremo, o sucessor de Artur, de Uther e de Cassibelaun. Foi então que soubemos a verdade. Houve uma Logres secreta no coração da Inglaterra todos esses anos: uma sucessão ininterrupta de Líderes Supremos. Aquele velho era o septuagésimo oitavo desde Artur. Nosso diretor recebeu dele o posto e as bênçãos. Amanhã, ou hoje à noite, saberemos quem há de ser o octogésimo. Alguns dos Líderes Supremos são bem conhecidos da história, embora não com esse nome. De outros, vocês nunca ouviram falar. Mas em todas as eras, eles e a pequena Logres, que se reuniu ao seu redor, foram os dedos que deram o pequeno empurrão ou o puxão quase imperceptível para instigar a Inglaterra a sair do sono entorpecido ou para atraí-la de volta da indignidade final para a qual Britânia a seduzia.
– Essa sua nova versão da história – disse MacPhee – é um pouquinho carente de documentação.
– Mas ela dispõe de bastante documentação – disse Dimble com um sorriso. – Só que você não conhece a língua em que tais documentos foram escritos. Quando a história destes últimos poucos meses vier a ser escrita na sua língua, publicada e ensinada nas escolas, não haverá menção alguma a vocês nem a mim, nem a Merlin, ao Líder Supremo nem aos planetas. E, no entanto, nestes meses a Britânia empreendeu uma rebelião perigosíssima contra Logres, tendo sido derrotada só no último instante.
– É mesmo – disse MacPhee –, e ela poderia ser história fiel aos fatos sem mencionar você, eu ou a maioria dos presentes. Eu agradeceria enormemente se qualquer um me dissesse o que nós fizemos… sempre sem falar em alimentar os porcos e cultivar alguns legumes muito razoáveis.
– Vocês fizeram o que lhes foi pedido – disse o diretor. – Vocês obedeceram e esperaram. Muitas vezes acontecerá assim. Como um dos autores modernos nos disse, com frequência o altar precisa ser construído num lugar para que o fogo dos céus desça em outro local. Mas não tirem conclusões precipitadas. Vocês podem ter muito trabalho a fazer antes que se passe um mês. A Britânia perdeu uma batalha, mas ela vai se reerguer.
– Quer dizer que isso, por enquanto, é a Inglaterra – disse Mamãe Dimble. – Só essa oscilação constante entre Logres e Britânia?
– É – respondeu seu marido. – Não dá para você sentir? A própria qualidade da Inglaterra. Se temos uma cabeça de asno, é porque andamos num bosque encantado. Ouvimos alguma coisa melhor do que o que podemos fazer, mas não conseguimos esquecê-la totalmente. Vocês não veem isso em tudo o que é inglês? Uma espécie de graça desajeitada, uma incompletude humilde, bem-humorada? Como Sam Weller estava certo quando chamou o senhor Pickwick de anjo de polainas! Tudo aqui ou é melhor ou é pior do que…
– Dimble! – disse Ransom. Dimble, cujo tom tinha se tornado um pouco veemente, parou e olhou na direção de Ransom. Ele hesitou e (como pareceu a Jane) quase enrubesceu antes de recomeçar.
– Tem razão – disse ele, com um sorriso. – Eu estava me esquecendo daquilo que você me avisou para sempre ter em mente. Essa perseguição não é uma peculiaridade nossa. Todos os povos têm seu perseguidor. Não há um privilégio especial para a Inglaterra… nada de papo-furado sobre uma nação escolhida. Nós falamos de Logres porque essa é a nossa perseguição, a que conhecemos.
– Mas esse – disse MacPhee – me parece um jeito cheio de rodeios de dizer que há homens bons e homens maus por toda parte.
– Não é de modo algum um jeito de dizer isso – respondeu Dimble. – Veja, MacPhee, quando se está pensando simplesmente em bondade no plano abstrato, logo se chega à ideia fatal de alguma coisa padronizada… algum tipo de vida comum na direção do qual todas as nações deveriam avançar. É claro que existem normas universais com as quais toda a bondade precisa estar em conformidade. Mas isso é só a gramática da virtude. Não é ali que se encontra a seiva. Ele não faz duas folhas de capim iguais. Muito menos dois santos, duas nações, dois anjos. Todo o trabalho de curar Tellus depende de nutrir essa pequena centelha, de incorporar esse espírito, que ainda está vivo em cada povo de verdade e que é diferente em cada um. Quando Logres realmente dominar Britânia, quando a deusa Razão, a clareza divina, realmente for entronizada na França, quando a ordem do Céu for de fato seguida na China, ora, então será a primavera. Mas, entrementes, nossa preocupação é com Logres. Nós derrubamos Britânia agora, mas quem sabe quanto tempo vamos conseguir mantê-la dominada? Edgestow não se recuperará do que está lhe acontecendo nesta noite. Porém, haverá outras Edgestows.
– Eu queria fazer uma pergunta a respeito de Edgestow – disse Mamãe Dimble. – Merlin e os eldila não estão sendo um pouco… bem, indiscriminados? Será que Edgestow inteira merecia ser arrasada?
– Você está lamentando a perda de quem? – disse MacPhee. – Da administração municipal corrupta, que teria vendido as próprias esposas e filhas para trazer o Inec para Edgestow?
– Bem, não sei muita coisa a respeito deles – disse ela. – Mas me refiro à universidade. Até mesmo Bracton. É claro que todos nós sabíamos que era uma faculdade horrível. Mas eles realmente pretendiam fazer assim tanto mal com todas as suas intrigas nervosinhas? Não era mais tolice do que qualquer outra coisa?
– Tem razão – disse MacPhee. – Eles estavam só brincando. Gatinhos fingindo-se de tigres. Contudo, havia um tigre de verdade à solta, e sua brincadeira terminou quando o deixaram entrar. Eles não têm direito de se queixar se, quando o caçador estiver atrás do tigre, eles acabarem com um pouco de chumbo nas entranhas também. Vai ser bom para aprenderem a não andar em más companhias.
– Pois é, então, e os pesquisadores de outras faculdades? E o que dizer de Northumberland e Duke?
– Eu sei – disse Denniston. – Sente-se pena de um homem como Churchwood. Eu o conheci bem; ele era uma simpatia. Todas as palestras dele eram dedicadas a provar a impossibilidade da ética, se bem que na vida particular ele tivesse andado dez quilômetros para não deixar de pagar uma dívida de centavos. Mas mesmo assim… havia uma única doutrina posta em prática em Belbury que não tivesse sido pregada por algum palestrante em Edgestow? Ah, é claro, eles nunca acharam que alguém fosse agir segundo suas teorias! Ninguém ficou mais assustado que eles quando aquilo de que vinham falando havia anos de repente se tornou realidade. Mas era sua própria cria voltando a eles: crescida e irreconhecível, porém sua própria cria.
– Receio que seja tudo verdade, meu caro – disse Dimble. – Traição dos intelectuais. Nenhum de nós é totalmente inocente.
– Isso é bobagem, Cecil – disse a senhora Dimble.
– Vocês estão todos se esquecendo – disse Grace – de que praticamente todos, com exceção dos muito bons (que já estavam na hora de uma justa dispensa) e os muito maus, já tinham saído de Edgestow. Mas concordo com Arthur. Os que se esqueceram de Logres acabam engolidos por Britânia. Os que clamam pelo Absurdo descobrirão que ele virá.
Nesse instante, ela foi interrompida. Ouvia-se um barulho de garras e gemidos à porta.
– Abra a porta, Arthur – disse Ransom. Passado um instante, todos os que estavam ali se puseram de pé, com exclamações de boas-vindas, pois o recém-chegado era o senhor Bultitude.
– Ah, nunca vi nada igual – disse Ivy. – O coitadinho! E todo cheio de neve, também. Vou levá-lo à cozinha para lhe arrumar alguma coisa para comer. Por onde você andou, seu moleque? Hein? Olhe só o estado em que você está.
Pela terceira vez em dez minutos, o trem deu um solavanco e parou de chofre. Dessa vez o choque apagou todas as luzes.
– Isso realmente está começando a passar da conta – disse uma voz na escuridão. Os outros quatro passageiros no compartimento de primeira classe a reconheceram como a voz do homem parrudo, bem-educado, de terno marrom; o homem bem informado que, em estágios iniciais da viagem, tinha ensinado a todos os outros onde deveriam fazer baldeação e por que agora se chegava a Sterk sem passar por Stratford; e quem era que realmente controlava a ferrovia.
– Isso é grave para mim – disse a mesma voz. – A esta altura, eu já deveria estar em Edgestow. – Ele se levantou, abriu a janela e olhou firme para a escuridão. Logo, um dos outros passageiros reclamou do frio. Ele fechou a janela e se sentou.
– Já estamos aqui há dez minutos – disse ele, depois de algum tempo.
– Desculpe. Há doze – disse outro passageiro.
Ainda assim o trem não se mexia. O barulho da briga entre dois homens num compartimento vizinho tornou-se audível.
E então voltou o silêncio.
De repente, um tranco fez que todos se chocassem na escuridão. Era como se o trem, seguindo a toda a velocidade, tivesse sido freado de qualquer jeito.
– Que diabo foi isso? – disse um deles.
– Abram as portas.
– Será que houve uma colisão?
– Está tudo bem – disse o homem bem informado, em voz alta e calma. – Estão engatando outra locomotiva. E engatando mal. São todos esses maquinistas novos que acabaram de ser admitidos.
– Atenção! – disse alguém. – Estamos nos movimentando.
Devagar e aos grunhidos, o trem começou a avançar.
– Está demorando para ganhar velocidade – disse outro.
– Ora, vocês vão ver como ele começa a compensar o tempo perdido num minuto – disse o homem bem informado.
– Quem dera eles acendessem as luzes de novo – disse a voz de uma mulher.
– Nós não estamos ganhando velocidade – disse outra.
– Estamos é perdendo. Droga! Estamos parando de novo?
– Não. Ainda estamos avançando… Ai! – Mais uma vez um choque violento os atingiu. Foi pior que o anterior. Por quase um minuto, tudo pareceu balançar e chocalhar.
– Isso é um absurdo – exclamou o homem bem informado, abrindo a janela novamente. Dessa vez, ele teve mais sorte. Um vulto escuro portando uma lanterna passava por ali, abaixo dele.
– Ei! Cabineiro! Guarda! – berrou ele.
– Está tudo bem, senhoras e senhores, tudo bem. Mantenham-se em seus lugares – gritou o vulto escuro, continuando em marcha e não fazendo caso dele.
– De nada adianta deixar entrar todo esse ar frio, senhor – disse o passageiro próximo da janela.
– Há algum tipo de luz mais adiante – disse o homem bem informado.
– Um sinal vermelho? – perguntou outro passageiro.
– Não. Não é nem um pouco como um sinal. O céu inteiro está iluminado. Como um incêndio, ou holofotes.
– Não me importo como seja – disse o homem que sentia frio. – Se ao menos… ui!
Mais um choque. E então, ao longe no escuro, ruídos de desastre, indefiníveis. O trem começou a se movimentar de novo, ainda muito devagar, como se estivesse sondando o caminho.
– Vou fazer um escândalo por conta disso – disse o homem bem informado. – É uma vergonha.
Cerca de meia hora depois, a plataforma iluminada de Sterk foi surgindo lentamente ao longo do trem.
– Aviso do Responsável pela Estação – disse uma voz. – Queiram manter-se sentados para um importante comunicado. Um leve terremoto e inundações impossibilitam a passagem pela linha até Edgestow. Nenhum detalhe disponível. Aos passageiros para Edgestow, recomenda-se que…
O homem bem informado, que era Curry, saltou do trem. Um homem como ele sempre conhece as autoridades numa via férrea; e dentro de alguns minutos ele estava em pé junto ao fogo no escritório do condutor, recebendo um relatório mais detalhado e mais particular do desastre.
– Bem, ainda não sabemos exatamente, senhor Curry – disse o homem. – Há mais ou menos uma hora que não chega nada de lá. A situação é péssima, sabe? Estão tentando apresentá-la sob a luz mais favorável possível. Nunca houve um terremoto como esse na Inglaterra, pelo que pude ouvir. E ainda por cima vieram as inundações. Não, senhor. Lamento dizer que não encontrará nada da Faculdade de Bracton. Toda aquela parte da cidade ruiu quase de imediato. Pelo que eu soube, tudo começou lá. Não tenho informação do número de vítimas. Estou feliz por ter tirado meu pai de lá na semana passada.
Em anos posteriores Curry sempre considerou esse um dos pontos críticos da sua vida. Até aquele momento, ele não tinha sido um homem religioso. Mas a palavra que lhe ocorreu instantaneamente naquele momento foi “providencial”. Não se podia encarar aquilo de nenhuma outra forma. Por um triz ele não tinha apanhado o trem anterior. E se tivesse… ora, àquela altura seria um homem morto. Dava no que pensar. A faculdade inteira arrasada! Teria de ser reconstruída. Haveria toda (ou quase toda) uma nova equipe de pesquisadores, um novo diretor. Era mais uma vez providencial que alguma pessoa responsável tivesse sido poupada para lidar com uma crise de tamanhas proporções. Naturalmente não poderia haver uma eleição normal. O supervisor da faculdade (que era o presidente da Câmara dos Lordes) provavelmente teria de indicar um novo diretor e então, em colaboração com ele, um núcleo de novos bolsistas pesquisadores. Quanto mais pensava nisso, com maior plenitude Curry percebia que toda a formação da futura faculdade cabia ao único sobrevivente. Era quase como ser o segundo fundador. Providencial… providencial. Na imaginação ele já via o retrato pintado do segundo fundador no salão recém-construído, sua estátua no quadrilátero recém-construído, o longo, longo capítulo consagrado a ele na história da faculdade. Todo esse tempo, sem a menor hipocrisia, o hábito e o instinto tinham conferido a seus ombros aquele desânimo exato, a seus olhos uma severidade tão solene, a sua fronte uma seriedade tão nobre, como a que se poderia esperar que um homem de bons sentimentos demonstrasse ao ouvir uma notícia daquela natureza. O condutor ficou imensamente impressionado. “Dava para ver como o golpe o atingiu”, como ele disse mais tarde. “Mas ele pôde aguentar. É um velhote legal.”
– Quando sai o próximo trem para Londres? – perguntou Curry. – Preciso estar lá bem cedo amanhã de manhã.
Ivy Maggs, como há de ser lembrado, tinha saído da sala de jantar para cuidar de atender ao senhor Bultitude. Foi uma surpresa para todos quando ela voltou em menos de um minuto, com uma expressão descontrolada.
– Ai, alguém venha depressa. Depressa! – disse ela, ofegante. – Tem um urso na cozinha.
– Um urso, Ivy? – disse o diretor. – Mas é claro…
– Ora, não estou falando do senhor Bultitude, senhor. Tem um urso desconhecido. Outro urso.
– É mesmo?
– E ele devorou tudo o que sobrou do ganso, metade do presunto e toda a coalhada. E agora está deitado ao longo da mesa, comendo tudo à medida que avança e se contorcendo de um prato para o outro e quebrando toda a louça. Ai, venham depressa! Não vai sobrar nada.
– E que atitude o senhor Bultitude está adotando diante de tudo isso, Ivy? – perguntou Ransom.
– Bem, é isso o que eu quero que alguém venha ver. Ele está se comportando de uma forma medonha, senhor. Nunca vi nada igual. Pra começar, ele ficou em pé erguendo as pernas de um jeito esquisito, como se achasse que estava dançando, o que todos nós sabemos que ele não consegue fazer. Mas agora ele subiu no aparador com as pernas traseiras e ali está saltitando, fazendo um barulho horroroso, como um guincho, e já enfiou o pé no pudim de ameixas e enredou a cabeça na réstia de cebolas; e eu não consigo fazer nada com ele, realmente não consigo.
– É um comportamento muito esquisito para o senhor Bultitude. Minha cara, você não imagina que o desconhecido possa ser uma ursa?
– Ai, não diga uma coisa dessas, senhor! – exclamou Ivy, com enorme consternação.
– Acho que é a verdade, Ivy. Tenho fortes suspeitas de que essa seja a futura senhora Bultitude.
– Será a atual senhora Bultitude se ficarmos aqui sentados falando a respeito muito mais tempo – disse MacPhee, pondo-se em pé.
– Ai, meu Deus, o que vamos fazer? – perguntou Ivy.
– Tenho certeza de que o senhor Bultitude está perfeitamente apto para lidar com a situação – respondeu o diretor. – No momento, a dama está fazendo um lanche. Sine Cerere et Baccho16, Dimble. Podemos confiar em que eles cuidem dos seus assuntos.
– Sem dúvida, sem dúvida – disse MacPhee. – Mas não na nossa cozinha.
– Ivy, minha cara – disse Ransom. – Você precisa ter muita firmeza. Entre na cozinha e diga à ursa desconhecida que quero vê-la. Você não estaria com medo, certo?
– Medo? Eu não. Vou mostrar para ela quem é o diretor aqui. Não que ela já não saiba.
– Qual é o problema com essa gralha? – perguntou o doutor Dimble.
– Acho que está tentando sair – disse Denniston. – Devo abrir a janela?
– Está quente o suficiente para ficar com a janela aberta, de qualquer maneira – disse o diretor. E, quando a janela foi aberta, Baron Corvo saiu com um salto e ouviram-se uns sons confusos e um crocitar ali fora.
– Mais um caso de amor – disse a senhora Dimble. – Parece que ele encontrou sua cara-metade… Que noite deliciosa! – acrescentou ela. Pois, quando a cortina se inflou e se ergueu por sobre a janela aberta, todo o frescor de uma noite de início de verão pareceu entrar soprando pela sala. Naquele momento, de um ponto um pouco mais distante, veio um som de relinchos.
– Ei! – exclamou Denniston – A velha égua também está animada.
– Psiu! Escutem! – disse Jane.
– Esse é um cavalo diferente – observou Denniston.
– É um garanhão – disse Camilla.
– Isso – disse MacPhee, com forte ênfase – está se tornando indecente.
– Pelo contrário – retrucou Ransom –, é decente, no sentido antigo. Decens, adequado, é exatamente o que é. A Vênus está por aqui em St. Anne’s.
– “Ela se aproxima mais da Terra do que de costume” – citou Dimble – “para enlouquecer os homens.”
– Ela está mais perto do que qualquer astrônomo imagina – disse Ransom. – O trabalho está completo em Edgestow; os outros deuses se retiraram. Ela espera imóvel e, quando retornar para sua esfera, eu seguirei com ela.
De repente, na penumbra, um grito agudo da senhora Dimble.
– Cuidado! Cuidado! Cecil! Sinto muito. Não suporto morcegos. Eles vão entrar no meu cabelo! – Piiiiu, piiiiu vinham as vozes dos dois morcegos enquanto esvoaçavam de um lado para outro acima das velas. Por causa das sombras, pareciam ser quatro em vez de dois.
– Seria melhor você ir, Margaret – disse o diretor. – Seria melhor você e Cecil irem juntos. Logo, logo, vou partir. Não há necessidade de longas despedidas.
– Eu realmente acho que devo ir – disse Mamãe Dimble. – Não suporto morcegos.
– Tranquilize Margaret, Cecil – disse Ransom. – Não. Não fique. Não estou morrendo. Acompanhar a partida de alguém é sempre tolice. Não dá nem uma boa alegria nem uma boa tristeza.
– Então o senhor quer que nos retiremos? – perguntou Dimble.
– Sim, meus caros amigos. Urendi Maleldil.
Ele pôs as mãos na cabeça dos dois. Cecil deu o braço à mulher, e eles se foram.
– Aqui está ela, senhor – disse Ivy Maggs, voltando a entrar na sala um instante depois, alvoroçada e radiante. Um urso vinha bamboleando ao seu lado, com o focinho branco de coalhada, e as bochechas grudentas de geleia de groselha. – E… senhor… – acrescentou ela.
– Que foi, Ivy? – perguntou o diretor.
– Por favor, senhor, é o coitado do Tom. Meu marido. E se o senhor não se importar…
– Você já lhe deu do que comer e beber, espero.
– Bem, sim, dei. Não teria sobrado nada, se aqueles ursos tivessem ficado lá muito mais.
– O que Tom comeu, Ivy?
– Dei para ele a torta fria e picles (ele sempre adorou picles) com o fim do queijo e uma garrafa de cerveja preta. E pus uma chaleira no fogo para nós podermos fazer… para ele poder fazer uma boa xícara de chá. E ele está gostando tanto, senhor. E mandou perguntar se o senhor se incomodaria se ele não subisse aqui para cumprimentá-lo, porque nunca foi de gostar de reuniões, se o senhor me entende.
Esse tempo todo o urso desconhecido tinha ficado parado, totalmente imóvel, com os olhos fixos no diretor, que agora punha a mão na cabeça chata.
– Urendi Maleldil – disse ele. – Você é uma boa ursa. Vá procurar seu parceiro… Mas aqui está ele… – Naquele momento a porta, que já estava entreaberta, foi aberta ainda mais para dar passagem à cara curiosa e ligeiramente ansiosa do senhor Bultitude. – Fique com ela, Bultitude. Mas não na casa. Jane, abra a outra janela, a janela à francesa. Parece uma noite de julho. – A janela se escancarou, e os dois ursos saíram atabalhoados para o calor e a umidade. Todos perceberam como a noite estava clara.
– Será que esses pássaros enlouqueceram, para começarem a cantar quinze minutos antes da meia-noite? – perguntou MacPhee.
– Não – disse Ransom. – Eles estão lúcidos. Agora, Ivy, você quer ir conversar com Tom. Mamãe Dimble preparou para vocês dois o pequeno quarto entre um andar e outro, na escada. No final, vocês não vão ficar no pavilhão.
– Ah, senhor – disse Ivy e parou. O diretor inclinou-se para a frente e pôs a mão na cabeça dela.
– É claro que você quer ir – disse ele. – Ora, ele mal teve tempo de vê-la no seu vestido novo. Você não tem beijos para lhe dar? – disse ele, dando-lhe um beijo. – Então dê-lhe os meus, que não são meus, mas por derivação. Não chore. Você é uma boa mulher. Vá curar esse homem. Urendi Maleldil… vamos nos encontrar outra vez.
– Que são todos esses ganidos e guinchos? – perguntou MacPhee. – Espero que os porcos não tenham se soltado. Pois eu lhe digo que o rebuliço nesta casa e no jardim já chegou ao limite do que eu posso suportar.
– Acho que são porcos-espinhos – disse Grace Ironwood.
– Esse último som foi em algum lugar na casa – disse Jane.
– Escutem! – disse o diretor, e por um curto período todos ficaram em silêncio. Então, seu rosto se relaxou num sorriso. – São meus amigos por trás dos lambris – disse ele. – Está havendo farra lá também.
So geht es in Snützepützhäusel
Da singen und tanzen die Mäusel!17
– Suponho – disse MacPhee, secamente, tirando o estojo de rapé de dentro das vestes cinzentas e ligeiramente monásticas que os outros decidiram, contra sua própria vontade, que ele usaria. – Suponho que possamos nos considerar felizes por nenhuma girafa, hipopótamo, elefante ou animal semelhante achar por bem… Deus todo-poderoso, o que é isso? – Pois, enquanto ele falava um longo tubo cinza, flexível, entrou entre as cortinas ondulantes e, passando por cima do ombro de MacPhee, se serviu de uma penca de bananas.
– Com mil demônios, de onde estão vindo todas essas feras? – perguntou ele.
– Esses são os prisioneiros libertados de Belbury – disse o diretor. – Ela se aproxima mais da Terra do que de costume… para dar lucidez à Terra. Perelandra está em toda a nossa volta, e o Homem já não se encontra isolado. Estamos agora como deveríamos estar… entre os anjos, que são nossos irmãos mais velhos, e os animais, que são nossos bobos da corte, nossos servos e nossos companheiros de folguedos.
Não importa o que MacPhee estava tentando dizer em resposta, ele foi abafado por um barulho ensurdecedor do lado de fora da janela.
– Elefantes! Dois deles – disse Jane, com a voz fraca. – Ai! O aipo! E os canteiros de rosas!
– Com sua permissão, senhor diretor – disse MacPhee, em tom severo. – Vou só fechar as cortinas. O senhor parece estar esquecido de que há senhoras aqui.
– Não – disse Grace Ironwood, numa voz tão forte quanto a dele. – Não haverá nada de impróprio para se ver. Abra mais as cortinas. Como está claro! Mais claro que o luar; quase mais claro que o dia. Uma enorme cúpula de luz paira acima do jardim inteiro. Olhem! Os elefantes estão dançando. Como levantam alto as patas! E dão voltas e mais voltas. E vejam como erguem as trombas! E como são cerimoniosos. É como um minueto de gigantes. Eles não são como os outros animais. São uma espécie de espíritos do bem.
– Eles estão indo embora – disse Camilla.
– Eles gostam de privacidade, como os amantes humanos – disse o diretor. – Não são animais comuns.
– Acho – disse MacPhee – que vou me retirar para meu escritório e fazer alguns cálculos. Eu me sentiria mais tranquilo se estivesse entre quatro paredes com a porta trancada, antes que qualquer crocodilo ou canguru comece a namorar no meio dos meus arquivos. Seria melhor que um homem nesta casa mantivesse a cabeça no lugar nesta noite, pois vocês todos estão doidos de pedra. Boa noite, senhoras.
– Adeus, MacPhee – disse Ransom.
– Não, não – disse MacPhee, parando bem de longe, mas estendendo a mão. – Não quero saber das suas bênçãos. Se algum dia eu adotar uma religião, não será do seu tipo. Meu tio foi moderador da Assembleia Geral. Mas eu lhe ofereço minha mão. O que você e eu vimos juntos… mas não importa. E eu lhe digo o seguinte, doutor Ransom, que com todos os seus defeitos (e não existe homem vivo que os conheça melhor do que eu), você é o melhor homem, no todo, que eu cheguei a conhecer ou de quem ouvi falar. Você é… você e eu… mas lá estão as senhoras chorando. Não sei ao certo o que ia dizer. Vou embora neste instante. Por que alguém haveria de querer estender uma despedida? Deus o abençoe, doutor Ransom. Senhoras, desejo-lhes boa noite.
– Abram todas as janelas – disse Ransom. – A nave na qual devo seguir está agora quase na atmosfera deste mundo.
– Está ficando cada vez mais claro – disse Denniston.
– Podemos ficar com o senhor até o fim? – perguntou Jane.
– Menina – disse o diretor –, você não deveria ficar até essa hora.
– Por que, senhor?
– Estão esperando por você.
– Por mim, senhor?
– Sim. Seu marido está à sua espera no pavilhão. Foi seu próprio quarto nupcial que você arrumou. Você não deveria ir vê-lo?
– Devo ir agora?
– Se você deixa a decisão comigo, é agora que eu a enviaria.
– Então, eu vou, senhor. Mas… mas… eu sou um urso ou um porco-espinho?
– Mais. Mas não menos. Vá em obediência, e encontrará o amor. Você não terá mais sonhos. Tenha filhos em vez disso. Urendi Maleldil.
Muito antes de chegar a St. Anne’s, Mark percebeu que ou ele mesmo ou o mundo ao redor estava numa condição muito estranha. A viagem demorou mais do que ele calculara, mas talvez isso se devesse a um erro ou dois que ele cometeu. Muito mais difícil de explicar era o horror de luz para o lado do oeste, acima de Edgestow, bem como as pulsações e os solavancos da Terra. Depois vieram um calor repentino e os caudais de neve derretida descendo pela encosta. Tudo se tornou uma névoa; e então, à medida que as luzes no oeste desapareceram, essa névoa foi ficando delicadamente luminosa num lugar diferente – acima de onde ele estava, como se a luz pairasse sobre St. Anne’s. E o tempo todo ele tinha a impressão estranha de que criaturas de formas e tamanhos muito variados passavam deslizando por ele, no nevoeiro: animais, acreditou ele. Talvez tudo fosse um sonho; ou talvez fosse o fim do mundo; ou talvez ele tivesse morrido. Entretanto, apesar de todas as perplexidades, ele estava consciente de um extremo bem-estar. Sua mente estava inquieta, e quanto ao seu corpo – saúde, juventude, prazer e anseios pareciam estar sendo soprados na direção dele a partir da luz nebulosa sobre o monte. Ele nunca duvidou de que devia prosseguir.
Sua mente não estava tranquila. Ele sabia que ia se encontrar com Jane, e alguma coisa estava começando a acontecer com ele que deveria ter acontecido muito antes. Aquela mesma atitude de laboratório diante do amor que tinha impedido em Jane a humildade de uma esposa, tinha impedido nele, durante o que passou por namoro, a humildade de um amante. Ou se alguma vez tivesse surgido nele em algum momento mais sábio a sensação de “Beleza preciosa demais para ser usada, cara demais para a terra!”, ele a afastara de si. Falsas teorias, ao mesmo tempo prosaicas e fantasiosas, tinham feito que essa disposição de espírito lhe parecesse embolorada, pouco realista e ultrapassada. Agora, tardiamente, depois de terem sido concedidos todos os favores, a desconfiança inesperada vinha se abater sobre ele. Ele tentou livrar-se dela. Eram casados, não eram? Eram pessoas modernas, sensatas? O que poderia ser mais natural, mais comum?
No entanto, certos momentos de fracasso inesquecível na sua curta vida de casados surgiram na sua imaginação. Já tinha pensado bastante no que ele próprio chamava de “humores” de Jane. Dessa vez, por fim, pensou no próprio jeito inconveniente e desastrado. E o pensamento não quis ir embora. Bem aos poucos, foi revelado à sua inspeção relutante todo o pateta, palhaço e grosseirão que havia nele; o macho tosco e mal-educado, de mãos calejadas, botas rústicas e queixo carnudo – não se precipitando a entrar… pois isso até pode ser aceitável –, mas entrando atabalhoadamente, despreocupado, violento, ali onde grandes amantes, cavaleiros e poetas teriam temido pisar. Pairou diante dele uma imagem da pele de Jane, tão lisa, tão branca (ou era assim que ele agora a imaginava) que o beijo de uma criança poderia ter deixado nela uma marca. Como ele tinha ousado? Sua pureza de neve, sua música, sua sacra inviolabilidade, o estilo de todos os seus movimentos… Como ele tinha ousado? E ainda por cima ousado, sem nenhuma noção da ousadia, com indiferença, numa estupidez descuidada! Os pensamentos que passavam pelo rosto de Jane de um momento para o outro, todos eles fora do seu alcance, criavam em torno dela uma sebe (quem dera ele tivesse tido a presença de espírito para enxergá-la), uma sebe pela qual ele jamais deveria ter cometido a temeridade de passar. Sim, sim, é claro, era ela que tinha permitido a sua passagem. Talvez por uma pena equivocada, infeliz. E ele, como um canalha, tirara vantagem daquele erro nobre de avaliação por parte dela; se comportara como se tivesse nascido naquele jardim cercado e fosse até mesmo seu proprietário natural.
Tudo isso, que deveria ter sido uma alegria constrangida, era um tormento para ele, por chegar tarde demais. Ele estava descobrindo a sebe depois de ter colhido a rosa; e não apenas colhido, mas depois de tê-la destroçado e esmagado com dedos quentes, vorazes, grossos como polegares. Como tinha ousado? E quem que compreendesse poderia perdoá-lo? Ele agora sabia como devia se apresentar aos olhos dos amigos e pares dela. Vendo essa imagem, sentiu um calor subir à sua testa, sozinho ali na névoa.
A palavra senhora não fazia parte do seu vocabulário, exceto como pura formalidade ou zombaria. Ele tinha rido antes da hora.
Bem, ele a libertaria. Ela ficaria feliz de se ver livre dele. Feliz e com razão. Ele quase teria se sentido chocado se tivesse pensado de outro modo. Senhoras em alguma sala nobre e espaçosa, conversando juntas em sereno refinamento, fosse com circunspecção delicada, fosse com riso cristalino – como poderiam elas não se sentir felizes com a saída do intruso? A criatura de voz forte e poucas palavras, só patas e botas, cujo verdadeiro lugar era a estrebaria. O que ele haveria de fazer numa sala daquelas, onde sua admiração poderia significar apenas um insulto, seus melhores esforços para ser sério ou jovial poderiam apenas revelar um mal-entendido intransponível? O que ele tinha chamado de frieza dela agora parecia ser sua paciência. E a lembrança disso ainda ardia. Pois ele agora a amava. Mas tudo estava estragado: era tarde demais para corrigir a situação.
De repente, a luz difusa clareou e se avermelhou. Ele olhou para o alto e viu uma senhora imponente, em pé junto de um portal num muro. Não era Jane, nem parecida com Jane. Era maior, quase gigantesca. Não era humana, embora fosse semelhante a uma mulher divinamente alta, em parte nua, em parte envolta em vestes da cor do fogo. A luz emanava dela. O rosto era enigmático, impiedoso, pensou ele, desumanamente belo. Ela estava abrindo a porta para ele. Ele não ousou desobedecer (“Sem dúvida”, pensou, “devo ter morrido”) e entrou. Descobriu-se num lugar de cheiros agradáveis, lareira acesa, com comida, vinho e uma cama acolhedora.
E Jane saiu da casa principal com o beijo do diretor nos lábios e as palavras dele nos ouvidos, entrou na luz fluida e no calor sobrenatural do jardim, atravessou o gramado molhado (havia pássaros por toda parte) e passou pela gangorra, pela estufa e pelas pocilgas, descendo o tempo todo até o pavilhão, descendo a escada da humildade. Pensou primeiro no diretor; depois, em Maleldil. Pensou então na obediência, e a colocação de um pé diante do outro tornou-se uma espécie de cerimônia de sacrifício. E ela pensou em filhos, e em dor e em morte. E já estava a meio caminho do pavilhão; e pensou em Mark e em todo o sofrimento dele. Quando lá chegou, ficou surpresa ao encontrá-lo todo escuro, com a porta fechada. Quando parou diante da porta com uma mão na maçaneta, ocorreu-lhe um novo pensamento. E se Mark não a quisesse… não naquela noite, nem daquela forma, nem em nenhuma outra hora, nem de nenhuma outra forma? E se Mark não estivesse lá? Uma enorme lacuna – de alívio ou de decepção, ninguém saberia dizer – abriu-se na sua mente com essa ideia. Mesmo assim, ela não mexeu no trinco. Foi então que se deu conta de que a janela, a janela do quarto, estava aberta. Havia roupas empilhadas numa cadeira dentro do aposento, de modo tão descuidado que tombavam pelo peitoril. A manga de uma camisa, camisa de Mark, chegava a cair pelo lado externo da parede do quarto. E ainda por cima com toda aquela umidade. Típico de Mark! Obviamente já estava mais que na hora de ela entrar.