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Belbury e St. Anne’s on the Hill

Enquanto subia a escadaria larga, Mark viu a si mesmo e a seu companheiro num espelho. Como sempre, Feverstone parecia no controle do seu traje, do seu rosto e da situação como um todo. O algodão no lábio superior de Mark tinha saído do lugar com o vento da viagem, de modo que dava a impressão de ser uma metade de um bigode falso violentamente virado para cima, revelando um trecho de sangue seco por baixo. Um momento depois, ele se descobriu numa sala de janelas grandes, com uma lareira chamejante, onde foi apresentado ao senhor John Wither, vice-diretor do Inec.

Wither era um senhor de cabelos brancos, de maneiras refinadas. Seu rosto estava bem barbeado e era realmente muito grande, com olhos azuis aguados e algo de bastante vago e caótico na expressão. Parecia que ele não estava dedicando a eles toda a sua atenção; e creio que essa impressão devia decorrer dos olhos, pois suas palavras e gestos eram corteses a ponto de serem efusivos. Ele disse que era um imenso, imenso prazer acolher o senhor Studdock entre eles. Era algo que se somava às profundas obrigações que ele já devia a lorde Feverstone. Ele esperava que tivessem feito uma viagem agradável. O senhor Wither parecia ter a impressão de que eles teriam vindo por via aérea e, quando essa impressão foi corrigida, de que teriam vindo de Londres de trem. Ele então começou a perguntar se os aposentos do senhor Studdock eram perfeitamente confortáveis e precisou que lhe recordassem que os dois tinham chegado naquele exato instante. “Suponho”, pensou Mark, “que o velhote esteja tentando me deixar à vontade.” Na realidade, a conversa do senhor Wither estava surtindo o efeito exatamente contrário. Mark desejou que o velhote lhe oferecesse um cigarro. Era extremamente constrangedora sua crescente convicção de que o homem nada sabia a seu respeito e até mesmo de que todos os sólidos esquemas e promessas de Feverstone estavam naquele momento se dissolvendo em alguma espécie de nevoeiro. Por fim, ele reuniu toda a coragem possível e tentou levar o senhor Wither direto ao ponto, dizendo que ainda não tinha percebido com total clareza de que modo poderia ser útil ao Instituto.

– Posso lhe garantir, senhor Studdock – disse o vice-diretor, com uma expressão extraordinariamente distante no olhar –, que não há necessidade de prever a menor… a menor dificuldade a esse respeito. Jamais houve nenhuma ideia de limitar suas atividades nem sua influência geral em questões de procedimentos, muito menos seu relacionamento com seus colegas, e o que eu poderia chamar, no todo, de termos de referência que regeriam sua colaboração conosco, sem o exame mais amplo possível das suas opiniões e, na realidade, das suas recomendações. O senhor vai descobrir, senhor Studdock, se posso me expressar desse modo, que somos uma família muito feliz.

– Ah, não me compreenda mal, senhor – disse Mark. – Não foi isso absolutamente o que eu quis dizer. Apenas disse que gostaria de ter alguma ideia do que eu faria exatamente se viesse para cá.

– Bem, ora, quando o senhor fala de vir para cá – disse o vice-diretor –, isso levanta uma questão sobre a qual espero que não haja nenhum equívoco. Creio que todos concordamos quanto a não haver necessidade de cogitar residência, quer dizer, neste estágio. Nós achamos, todos nós achamos, que o senhor deveria ter total liberdade para realizar seu trabalho onde seja do seu agrado. Se preferir morar em Londres ou em Cambridge…

– Edgestow – disse lorde Feverstone.

– Ah, sim, Edgestow. – Aqui o vice-diretor virou-se e dirigiu a palavra a Feverstone. – Eu estava só explicando ao senhor… hã… Studdock, e tenho certeza de que você está de pleno acordo comigo, que nada estava mais distante da intenção do Comitê do que ditar, ou mesmo aconselhar, onde o senhor… onde seu amigo deveria morar. É claro que, não importa onde ele more, naturalmente deveríamos pôr à sua disposição transporte aéreo e rodoviário. Lorde Feverstone, suponho que já tenha lhe explicado que todas as questões desse tipo acabarão se ajustando sem a menor dificuldade.

– Na realidade, senhor – disse Mark –, eu não estava pensando exatamente nisso. Eu não tenho… quer dizer, eu não deveria ter a menor objeção em morar em qualquer lugar. Eu apenas…

O vice-diretor interrompeu-o, se é que algo tão delicado quanto a voz de Wither pudesse ser chamado de interrupção.

– Mas eu lhe garanto, senhor… hã…, eu lhe garanto, senhor, que não existe a menor objeção a que o senhor resida onde quer que considere conveniente. Em nenhuma etapa, jamais houve a menor sugestão…

Mas aqui Mark, quase em desespero, arriscou-se ele mesmo a fazer uma interrupção.

– É a exata natureza do trabalho – disse ele – e de minhas qualificações para ele que eu queria esclarecer.

– Meu caro amigo – disse o vice-diretor –, nesse sentido não precisa ter a menor inquietação. Como já lhe disse, o senhor descobrirá que somos uma família muito feliz. E pode ficar totalmente tranquilo, pois nenhum questionamento quanto à sua perfeita adequação perturbou a mente de qualquer um de nós. Eu não lhe ofereceria uma posição entre nós se houvesse o menor perigo de o senhor não ser bem acolhido por todos, ou se houvesse a mais leve suspeita de que suas qualidades valiosíssimas não fossem do agrado geral. O senhor está… está entre amigos aqui, senhor Studdock. Eu seria a última pessoa a aconselhá-lo a ligar-se a qualquer organização em que corresse o risco de ser exposto… hã… a contatos pessoais desagradáveis.

Mark não voltou a perguntar explicitamente o que o Inec queria que ele fizesse; em parte porque começou a recear que se supunha que isso já fosse do seu conhecimento, e em parte porque uma pergunta totalmente direta teria parecido uma grosseria naquela sala – uma grosseria que talvez de repente o excluísse da atmosfera aconchegante e quase anestesiada de confidências vagas, embora de grande peso e importância, na qual ele aos poucos estava sendo envolvido.

– Muita gentileza sua – disse ele. – A única coisa que eu gostaria de esclarecer só mais um pouco é… bem… a abrangência exata da nomeação.

– Bem – disse o senhor Wither numa voz tão baixa e tão profunda que era quase um suspiro –, alegra-me muito que o senhor tenha tocado nesse assunto agora, de maneira totalmente informal. É óbvio que nem o senhor nem eu desejaríamos firmar um compromisso agora, nesta sala, em nenhum sentido que fosse lesivo aos poderes do Comitê. Entendo muito bem seus motivos e… hum… os respeito. É claro que não estamos falando de uma nomeação no sentido quase técnico do termo. Fazer isso não seria correto para nenhum de nós dois (embora o senhor bem possa me relembrar, de modos diferentes), ou pelo menos poderia levar a certos inconvenientes. Mas creio que posso lhe assegurar com a máxima franqueza que ninguém quer engessá-lo nem forçá-lo a caber num leito de Procusto. Entre nós, na verdade não pensamos em termos de funções rigorosamente demarcadas, é claro. Bem, para ser franco, considero difícil que homens como o senhor e eu tenhamos o hábito de usar conceitos desse tipo. Todos no Instituto acham que seu trabalho não é tanto uma contribuição departamental para um objetivo já definido, quanto um momento, ou etapa, na progressiva autodefinição de um todo orgânico.

E Mark respondeu… Que Deus o perdoasse, pois ele era jovem, encabulado, vaidoso e tímido, tudo ao mesmo tempo.

– Para mim isso é realmente importante. A elasticidade da sua organização é um dos aspectos que me atraem.

Depois disso, ele não teve outra oportunidade de levar o vice-diretor ao ponto desejado; e, sempre que a voz lenta e delicada se calava, Mark descobria que respondia no mesmo estilo, parecendo não conseguir agir de modo diferente apesar da repetição torturante da pergunta “A respeito do que mesmo estamos conversando?”. Bem no final da entrevista, houve um instante de clareza. O senhor Wither supôs que ele, Mark, acharia conveniente entrar para o clube do Inec: mesmo durante os dias seguintes, ele teria mais liberdade como sócio do que como convidado. Mark concordou e depois ficou vermelho como um menininho ao saber que o jeito mais fácil era tornar-se membro vitalício pelo custo de duzentas libras. Ele não possuía essa quantia no banco. É claro que, se tivesse conseguido o novo emprego, com suas mil e quinhentas libras por ano, tudo daria certo. Mas ele tinha conseguido o emprego? Será que existia um emprego?

– Que bobagem a minha – disse ele, em voz alta. – Não estou com meu talão de cheques.

Daí a instantes, ele se descobriu na escadaria com Feverstone.

– E então? – perguntou Mark, ansioso. Pareceu que Feverstone não o ouviu. – E então? – repetiu Mark. – Quando vou saber meu destino? Quer dizer, eu consegui o emprego?

– Ei, cara! – gritou Feverstone de repente para um homem no saguão lá embaixo. No instante seguinte, ele desceu até o pé da escadaria, segurou a mão do amigo com afeto e desapareceu. Mark, acompanhando-o mais devagar, descobriu-se no saguão, calado, sozinho e constrangido, entre os grupos e pares de homens tagarelas, que estavam todos atravessando o aposento na direção das grandes portas dobráveis à sua esquerda.

Pareceu durar muito tempo esse postar-se, sem saber o que fazer, esse esforço de parecer natural e de não olhar nos olhos de desconhecidos. O ruído e os aromas agradáveis que emanavam das portas dobráveis deixavam evidente que as pessoas estavam indo almoçar. Mark hesitou, inseguro quanto a sua própria condição. Por fim, decidiu que não conseguia mais ficar ali parado como um pateta, e entrou.

Sua expectativa era de que houvesse várias mesas pequenas a uma das quais ele poderia ter se sentado sozinho. Mas havia uma única mesa comprida, já quase tão cheia que, depois de procurar em vão por Feverstone, ele precisou se sentar ao lado de um desconhecido.

– Suponho que cada um sente onde quiser – murmurou ele enquanto se sentava; mas o desconhecido pareceu não ouvir. Era um homem alvoroçado que comia muito depressa e falava ao mesmo tempo com seu vizinho do outro lado.

– É exatamente essa a questão – dizia ele. – Como eu disse a ele, para mim não faz diferença de que jeito eles vão resolver o assunto. Não faço a menor objeção a que o pessoal do IJP assuma toda essa história, se for isso o que o VD quer; mas o que não me agrada é que um homem seja responsável por isso, se metade do trabalho está sendo feito por outra pessoa. Como eu disse a ele, você agora tem três chefes batendo a cabeça uns nos outros por alguma tarefa que realmente poderia ser realizada por um escriturário. Está se tornando ridículo. Veja o que aconteceu hoje de manhã.

Esse estilo de conversa continuou durante a refeição inteira.

Embora a comida e a bebida fossem de excelente qualidade, foi um alívio para Mark quando as pessoas começaram a deixar a mesa. Seguindo o movimento geral, ele atravessou novamente o saguão e entrou numa sala espaçosa, mobiliada como uma sala de estar, onde estava sendo servido café. Ali, por fim, ele viu Feverstone. De fato, teria sido difícil não vê-lo porque ele era o centro de um grupo e dava risadas prodigiosas. Mark teve vontade de se aproximar dele, ao menos para descobrir se deveria passar a noite ali e, se fosse esse o caso, se havia um quarto designado para ele. Mas o grupo de homens em torno de Feverstone era daquele tipo reservado ao qual é difícil alguém se unir. Ele foi se aproximando de uma das muitas mesas e começou a folhear as páginas brilhosas de uma revista semanal ilustrada. De alguns em alguns segundos, erguia os olhos para ver se havia alguma chance de trocar uma palavra a sós com Feverstone. A quinta vez em que fez isso, descobriu-se olhando bem na cara de um dos seus colegas de faculdade, um pesquisador de Bracton chamado William Hingest. O Elemento Progressista o chamava, se bem que não na sua presença, de Bill Nevasca.

Hingest não havia comparecido à reunião do corpo docente, embora Curry tivesse imaginado que iria, e praticamente não se dava com lorde Feverstone. Mark percebeu com certa reverência que aquele era um homem diretamente em contato com o Inec – alguém que começava, por assim dizer, num ponto além de Feverstone. Hingest, que era especialista em físico-química, era um dos dois cientistas em Bracton que tinha reputação fora da Inglaterra. Espero que o leitor não tenha sido induzido a supor que os pesquisadores de Bracton fossem um corpo especialmente ilustre. Decerto não era intenção do Elemento Progressista eleger medíocres para bolsas de pesquisa, mas sua determinação de optar por “homens sólidos” limitava violentamente seu campo de escolha; e, como Busby dissera uma vez, “Não se pode ter tudo”. Bill Nevasca possuía um antiquado bigode encaracolado no qual o branco tinha quase, mas não totalmente, triunfado sobre o louro, o nariz grande semelhante a um bico e a cabeça careca.

– Este é um prazer inesperado – disse Mark, com um toque de formalidade. Ele sempre sentira um pouco de medo de Hingest.

– Hum? – resmungou Bill. – Hem? Ah, é você, Studdock? Não sabia que tinham contratado seus serviços aqui.

– Senti sua falta ontem na reunião do corpo docente – disse Mark.

Era mentira. O Elemento Progressista sempre considerava a presença de Hingest embaraçosa. Como cientista – e o único cientista realmente eminente que tinham –, ele era legítima propriedade deles. Era, porém, aquela anomalia odiosa, o tipo errado de cientista. Glossop, que era um clássico, era seu maior amigo na faculdade. Ele tinha o ar (“a afetação”, como Curry dizia) de quem não dava menos importância às próprias descobertas revolucionárias na química, e muito mais ao fato de ser um Hingest: a família era de uma antiguidade quase mítica, “jamais contaminada”, como disse seu historiador do século XIX, “por traidor, funcionário público ou título de baronete”. Ele tinha sido particularmente ofensivo por ocasião da visita de Broglie a Edgestow. O francês tinha passado seu tempo livre exclusivamente na companhia de Bill Nevasca, mas, quando um pesquisador júnior fez uma insinuação sobre o opulento banquete de ciência que os dois sábios deviam ter compartilhado, Bill Nevasca pareceu procurar na memória por um instante e então respondeu que achava que eles não tinham chegado a esse assunto. “Todo aquele papo-furado do Almanaque de Gota, suponho”, tinha sido o comentário de Curry, se bem que não na presença de Hingest.

– Hem? Que foi? Reunião do Corpo Docente? – disse Nevasca. – O que foi discutido?

– A venda do Bosque de Bragdon.

– Uma bobajada – resmungou Nevasca.

– Espero que você concorde com a decisão à qual chegamos.

– Não faria diferença a decisão à qual vocês chegassem.

– Ah! – disse Mark, com certa surpresa.

– Nada disso tem sentido. O Inec teria ficado com o bosque, qualquer que fosse o caso. Eles têm poderes para forçar a venda.

– Mas é extraordinário! Deram-me a entender que eles iriam para Cambridge se nós não o vendêssemos.

Hingest fungou ruidosamente.

– Não há nem uma gota de verdade nisso. Quanto a ser extraordinário, depende do que você quer dizer. Não há nada de extraordinário no fato de os pesquisadores de Bracton debaterem uma tarde inteira sobre uma questão irreal. E não há nada de extraordinário no fato de o Inec desejar, se possível, transferir para Bracton a ignomínia de transformar o coração da Inglaterra num cruzamento entre um hotel americano falido e um gasômetro embelezado. O único enigma verdadeiro é o motivo pelo qual o Inec ia querer aquele pedaço de terra.

– Suponho que descobriremos com o avanço das atividades.

– Você, talvez. Eu não.

– É mesmo? – disse Mark, com uma indagação.

– Para mim, chega – disse Hingest, baixando a voz. – Vou embora hoje à noite. Não sei o que você estava fazendo em Bracton; mas, se tinha algum valor, eu o aconselharia a voltar e persistir.

– Verdade?! – disse Mark. – Por que diz isso?

– Não faz diferença para um velho como eu – disse Hingest –, mas eles poderiam acabar com você. Naturalmente tudo depende daquilo de que um homem gosta.

– Por sinal – disse Mark –, eu ainda não me decidi. – Ele tinha sido ensinado a encarar Hingest como um reacionário pervertido. – Nem mesmo sei qual seria meu trabalho se eu resolvesse ficar.

– Qual é sua matéria?

– Sociologia.

– Hum – disse Hingest. – Nesse caso, posso logo lhe indicar o homem a quem você se reportaria. Um cara chamado Steele. Daquele lado, junto da janela, está vendo?

– Talvez você pudesse me apresentar.

– Então você está decidido a ficar?

– Bem, acho que pelo menos eu devia conhecê-lo.

– Tudo bem – disse Hingest. – Não é da minha conta. – E então acrescentou, com a voz mais alta: – Steele.

Steele virou-se. Era um homem alto, de expressão séria, com aquele tipo de rosto que, embora comprido e semelhante a uma cara de cavalo, tem ainda assim lábios bastante grossos e protuberantes.

– Esse aqui é Studdock – disse Hingest –, o novo homem para seu departamento. – E com isso deu-lhes as costas e foi embora.

– Ah – disse Steele. E então, depois de um intervalo: – Ele disse meu departamento?

– Foi o que ele disse – respondeu Mark, com um sorriso hesitante –, mas talvez tenha compreendido errado. É que sou sociólogo… se isso ajudar a esclarecer.

– Eu sou mesmo o chefe do departamento de Sociologia – disse Steele –, mas esta é a primeira vez que ouço falar de você. Quem lhe disse que você deveria ir para lá?

– Bem, na realidade – disse Mark –, tudo está muito indefinido. Eu acabei de ter uma conversa com o vice-diretor, mas nós não chegamos a entrar em detalhes.

– Como você conseguiu chegar a ele?

– Lorde Feverstone me apresentou.

Steele assobiou.

– E aí, Cosser – gritou ele para um homem de rosto sardento que ia passando –, escute só essa. Feverstone acabou de descarregar esse cara no nosso departamento. Levou direto ao VD sem me dizer uma palavra. O que você acha disso?

– Bem, não dá para acreditar! – disse Cosser, praticamente sem olhar para Mark, mas olhando muito fixo para Steele.

– Sinto muito – disse Mark, com a voz um pouco mais alta e com uma atitude um pouco mais rígida do que demonstrara até então. – Não se alarmem. Parece que me puseram numa posição embaraçosa. Deve ter havido algum equívoco. Para ser franco, estou neste instante apenas dando uma olhada por aí. Seja qual for o caso, não tenho nenhuma certeza de que pretendo ficar.

Nenhum dos outros dois prestou a menor atenção a essa última sugestão.

– Isso é típico de Feverstone – disse Cosser a Steele.

Steele voltou-se para Mark.

– Eu deveria aconselhá-lo a não dar muita atenção ao que lorde Feverstone diz aqui – observou ele. – Isso aqui não lhe diz respeito de modo algum.

– Só faço objeção – disse Mark, desejando poder impedir seu rosto de ficar vermelho – a ser posto numa posição embaraçosa. Vim aqui apenas a título de experiência. Para mim é indiferente se assumo um trabalho no Inec ou não.

– Veja bem – disse Steele a Cosser –, na realidade não há lugar para um homem na nossa área. Principalmente para alguém que não conhece o trabalho. A menos que o ponham na UL…

– É verdade – disse Cosser.

– Senhor Studdock, creio eu – disse outra voz junto do cotovelo de Mark, uma voz aguda que parecia desproporcional para a montanha de homem que ele viu ao virar a cabeça. Ele reconheceu o interlocutor de imediato. O rosto liso e moreno e o cabelo preto eram inconfundíveis, da mesma forma que seu sotaque estrangeiro. Tratava-se do professor Filostrato, o célebre fisiologista, ao lado de quem Mark tinha se sentado num jantar cerca de dois anos antes. Ele era gordo a um ponto que é cômico no palco, mas o efeito não era engraçado na vida real. Mark ficou encantado por um homem daqueles ter se lembrado dele.

– Alegra-me que você tenha vindo se unir a nós – disse Filostrato, segurando o braço de Mark e conduzindo-o delicadamente para longe de Steele e Cosser.

– Para ser franco – disse Mark –, não tenho certeza se vim. Quem me trouxe foi Feverstone, mas ele desapareceu, e Steele… supostamente é para o departamento dele que eu entraria… parece não saber nada a meu respeito.

– Ora! Steele! – disse o professor. – Tudo isso é insignificante. Esse parece que tem o rei na barriga. Um dia desses vai ser posto no devido lugar. Pode ser que seja você quem se encarregará disso. Li toda a sua obra, si si. Não o leve em consideração.

– Faço forte objeção a ser posto em situação embaraçosa… – começou Mark.

– Escute, meu amigo – interrompeu-o Filostrato –, você precisa tirar todas essas ideias da sua cabeça. A primeira coisa a levar em conta é que o Inec é sério. Não é nada menos que a existência da espécie humana que depende do nosso trabalho: do nosso verdadeiro trabalho, compreende? Você há de encontrar atritos e impertinências entre essa canaglia, essa ralé. Eles não devem receber atenção, da mesma forma que não se dá atenção a uma antipatia por um companheiro de tropa quando a batalha está no auge.

– Desde que me deem alguma coisa para fazer que valha a pena – disse Mark –, eu não permitiria que nada dessa natureza interferisse no meu trabalho.

– É, é, é verdade. O trabalho é mais importante do que você poderá entender por enquanto. Você vai ver. Esses Steeles e Feverstones… eles não têm a menor importância. Desde que você esteja nas boas graças do vice-diretor, não precisa dar a mínima para eles. Você não precisa dar ouvidos a ninguém a não ser a ele, entendeu? Ah… e tem mais uma coisa. Não faça inimizade com a Fada. Quanto aos demais, ria de todos.

– A Fada?

– Sim. Ela, que eles chamam de Fada. Ai, meu Deus, uma Inglesaccia terrível! Ela é a chefe da nossa polícia, a polícia Institucional. Ecco, aí vem ela. Vou apresentá-los. Senhorita Hardcastle, permita-me apresentar-lhe o senhor Studdock.

Mark descobriu-se lutando para soltar a mão do aperto de foguista ou de carroceiro de uma mulher grande, de uniforme preto de saia curta. Apesar de um busto que teria feito jus a uma atendente de bar vitoriana, ela era mais de compleição forte do que gorda; e seu cabelo cinza como o ferro era cortado bem curto. Seu rosto era quadrado, sério e pálido; e sua voz, grave. Um borrão de batom aplicado com uma violenta desatenção à verdadeira forma da sua boca era sua única concessão à moda; e ela rolava ou mascava um longo charuto preto, apagado, entre os dentes. Enquanto falava, costumava remover o charuto, olhando atentamente para a mistura de batom e saliva na sua ponta mutilada, para depois recolocá-lo no lugar ainda com mais firmeza do que antes. Ela se sentou imediatamente numa poltrona perto de onde Mark estava parado, lançou a perna direita por cima de um dos braços, e fixou nele um olhar de fria intimidade.

Clique-claque, bem nítidos, no silêncio em que Jane aguardava em pé, vieram os passos da pessoa do outro lado do muro. A porta abriu-se então, e Jane se descobriu encarando uma mulher alta mais ou menos da sua idade. Essa pessoa olhou para ela com olhos penetrantes, impassíveis.

– Aqui mora uma senhorita Ironwood? – disse Jane.

– Mora – disse a outra moça, sem abrir mais a porta nem se afastando para ela passar.

– Por favor, eu gostaria de vê-la – disse Jane.

– Você tem hora marcada? – perguntou a mulher alta.

– Bem, não exatamente – disse Jane. – Quem me encaminhou foi o doutor Dimble, que conhece a senhorita Ironwood. Ele disse que eu não precisaria de hora marcada.

– Ah, se você vem do doutor Dimble, tudo fica diferente – disse a mulher. – Entre. Agora espere um instante enquanto eu cuido dessa fechadura. Pronto. Agora está tudo bem. Não há espaço para duas neste caminho e eu lhe peço que me dê licença de ir à frente.

A mulher conduziu-a por um caminho de tijolos ao lado de um muro no qual cresciam árvores frutíferas, e então para a esquerda por uma trilha musgosa com groselheiras de cada lado. Depois veio um pequeno gramado com uma gangorra no centro, e mais adiante uma estufa. Ali elas se encontraram no tipo de aglomerado que às vezes ocorre nos limites de um grande jardim: andando por uma ruela que tinha de um lado um celeiro e um estábulo; e, do outro, uma segunda estufa, um galpão de envasamento e uma pocilga – habitada, como os grunhidos e o cheiro não totalmente agradável lhe informavam. Depois havia caminhos estreitos através de uma horta, que parecia estar numa encosta bastante íngreme; e em seguida roseiras, todas duras e espinhentas, com seu traje de inverno. A certa altura, elas foram por um caminho feito apenas de tábuas. Isso fez que Jane se lembrasse de alguma coisa. Era um jardim muito grande. Era como… como… isso mesmo, agora ela se lembrava: Peter Rabbit. Ou era como o jardim no Romance da Rosa? Não, nem um pouco parecido, na verdade. Ou como o jardim de Klingsor? Ou o jardim de Alice? Ou ainda como o jardim no alto de algum zigurate na Mesopotâmia que tinha provavelmente ensejado toda a lenda do Paraíso? Ou simplesmente como todos os jardins murados? Freud disse que gostávamos de jardins porque eram símbolos do corpo feminino. Mas esse deve ser o ponto de vista de um homem. É presumível que os jardins tivessem um significado diferente nos sonhos das mulheres. Ou não? Será que tanto os homens como as mulheres sentiam um interesse equivalente pelo corpo feminino e até, embora parecesse ridículo, quase do mesmo modo? Uma frase surgiu na sua memória. “A beleza da fêmea é fonte de alegria para a fêmea tanto quanto para o macho, e não é por acaso que a deusa do Amor é mais velha e mais forte que o deus.” Onde será que ela teria lido isso? E, por sinal, que tolice horrorosa ela vinha pensando mais ou menos no último minuto! Ela descartou todas essas ideias sobre jardins e se decidiu a recuperar o controle. Uma sensação curiosa de que agora estava em território hostil, ou no mínimo desconhecido, levou-a a manter-se alerta. Nesse instante, elas saíram repentinamente do caminho entre moitas de azaleias e loureiros e se descobriram diante de uma pequena porta lateral, com uma pipa d’água ao lado, na longa parede de uma grande casa. Exatamente quando chegaram ali, uma janela fechou-se ruidosamente no andar superior.

Dali a um minuto ou dois, Jane estava sentada esperando numa sala espaçosa, escassamente mobiliada, com um fogão para aquecer o ambiente. A maior parte do piso estava descoberta e as paredes, acima dos lambris que chegavam à altura da cintura, eram de um reboco branco-acinzentado, tanto que o efeito geral era ligeiramente austero e monástico. O passo da mulher alta sumiu nos corredores, e com isso a sala foi tomada por um forte silêncio. Ouvia-se eventualmente o grasnado de gralhas. “Agora não tem mais volta”, pensou Jane. “Vou ter de contar aquele sonho a essa mulher, e ela vai fazer todo tipo de pergunta.” Em geral, ela se considerava uma pessoa moderna, que podia conversar sem constrangimento sobre qualquer assunto, mas, enquanto estava sentada naquela sala, as coisas começaram a parecer diferentes. Todos os tipos de reservas secretas em seu programa de franqueza, coisas que, agora ela percebia, tinham sido rotuladas para nunca serem contadas, voltavam sorrateiras para sua consciência. Era surpreendente que pouquíssimas delas estivessem relacionadas com o sexo.

– Os dentistas – disse Jane – pelo menos deixam jornais ilustrados na sala de espera. – Ela se levantou e abriu o único livro que estava em cima da mesa no meio da sala. Instantaneamente, os olhos bateram nas seguintes palavras: “A beleza da fêmea é fonte de alegria para a fêmea tanto quanto para o macho, e não é por acaso que a deusa do Amor é mais velha e mais forte que o deus. Desejar o desejo da própria beleza é a vaidade de Lilith, mas desejar a apreciação da própria beleza é a obediência de Eva, e, para ambas, é no amante que a amada prova seu encanto. Como a obediência é o caminho do prazer, a humildade é a…”

Naquele instante, a porta abriu-se de repente. Jane ficou vermelha ao fechar o livro e erguer os olhos. Parecia que a mesma moça que a recebera acabava de abrir a porta e ainda estava em pé no umbral. Jane agora sentiu por ela aquela admiração quase apaixonada que as mulheres, com maior frequência do que se supõe, sentem por outras mulheres cuja beleza não é do seu próprio tipo. Seria bom, pensou Jane, ser daquele jeito – tão empertigada, tão franca, tão valente, tão perfeita para montar a cavalo e tão divinamente alta.

– A senhorita Ironwood está? – disse Jane.

– A senhora é a senhora Studdock? – perguntou a moça.

– Sou – disse Jane.

– Vou levá-la até ela agora mesmo – disse a outra. – Estamos esperando pela senhora. Meu nome é Camilla, Camilla Denniston.

Jane a acompanhou. Pela largura estreita e pela simplicidade dos corredores, avaliou que ainda se encontravam nos fundos da casa e que, se isso se confirmasse, ela devia ser realmente uma casa muito grande. As duas andaram muito até Camilla bater a uma porta e se postar de lado para Jane entrar, depois de dizer em voz baixa e clara (“como uma criada,” pensou Jane) “Ela chegou”. E Jane entrou; e lá estava a senhorita Ironwood, toda vestida de preto, sentada com as mãos cruzadas sobre os joelhos, exatamente como Jane a tinha visto no sonho, se é que ela estava sonhando, na noite anterior no apartamento.

– Sente-se, minha jovem – disse a senhorita Ironwood.

As mãos que estavam cruzadas sobre os joelhos eram muito grandes e ossudas, embora não sugerissem rudeza; e, mesmo sentada, a senhorita Ironwood era extremamente alta. Tudo nela era grande: o nariz, os lábios que não sorriam e os olhos cinzentos. Talvez estivesse mais perto dos sessenta que dos cinquenta. Havia na sala uma atmosfera que Jane achou desagradável.

– Como você se chama, minha jovem? – perguntou a senhorita Ironwood, pegando um lápis e um caderno.

– Jane Studdock.

– Você é casada?

– Sou.

– Seu marido sabe que você veio nos procurar?

– Não.

– E sua idade, por favor?

– Vinte e três.

– E agora – disse a senhorita Ironwood –, o que tem a me dizer?

Jane respirou fundo.

– Ultimamente venho tendo uns sonhos desagradáveis e me sentindo deprimida – disse ela.

– Como são os sonhos? – perguntou a senhorita Ironwood.

A narrativa de Jane – que não foi muito benfeita – demorou algum tempo. Enquanto falava, ela mantinha os olhos fixos nas mãos grandes da senhorita Ironwood, na sua saia preta, no lápis e no caderno. E foi por esse motivo que ela de repente parou. Pois, enquanto falava, viu que a mão da senhorita Ironwood parara de escrever e que os dedos se enroscaram no lápis. Pareciam ser dedos imensamente fortes. E a cada instante eles apertavam mais, até que os nós ficaram brancos e as veias saltadas no dorso das mãos; e finalmente, como que sob a influência de alguma emoção sufocada, eles partiram o lápis em dois. Foi aí que Jane parou assustada e olhou para o rosto da senhorita Ironwood. Os grandes olhos cinzentos ainda estavam fixos nela sem nenhuma mudança de expressão.

– Por favor, continue, minha jovem – disse a senhorita Ironwood.

Jane retomou sua história. Quando terminou, a senhorita Ironwood fez uma série de perguntas. Depois, ficou tanto tempo em silêncio que Jane indagou:

– A senhora acha que estou com algum problema sério?

– Não há nada de errado com você – respondeu a senhorita Ironwood.

– Quer dizer que vai passar?

– Não tenho como saber. Eu diria que provavelmente não.

A decepção sombreou o rosto de Jane.

– Então, não se pode fazer nada? Eram sonhos horríveis. De uma nitidez horrível, nem um pouco como sonhos.

– Isso eu posso entender perfeitamente.

– É alguma coisa que não tem cura?

– O motivo pelo qual você não pode se curar é que você não está doente.

– Mas alguma coisa deve estar errada. Sem dúvida não é natural ter sonhos desse tipo.

Fez-se uma pausa.

– Acho melhor – disse a senhorita Ironwood – eu lhe contar toda a verdade.

– Sim, por favor – disse Jane com a voz tensa. As palavras da outra a assustavam.

– E começarei dizendo o seguinte – continuou a senhorita Ironwood: – você é mais importante do que imagina.

Jane nada disse, mas pensou consigo mesma “Ela está sendo condescendente comigo. Acha que sou louca.”

– Qual era seu nome de solteira? – perguntou a senhorita Ironwood.

– Tudor – disse Jane. Em qualquer outro momento, ela teria dito isso com bastante constrangimento, já que fazia questão de que ninguém a supusesse vaidosa de seus antepassados.

– O ramo de Warwickshire da família?

– Sim.

– Você já leu um livrinho, de apenas quarenta páginas, escrito por um antepassado seu sobre a batalha de Worcester?

– Não. Meu pai tinha um exemplar… O único, acho que ele disse. Mas eu nunca o li. Perdeu-se quando a casa foi desmanchada depois que ele morreu.

– Seu pai estava enganado ao pensar que aquele era o único exemplar. Existem pelo menos outros dois: um está nos Estados Unidos, e o outro está nesta casa.

– E?

– Seu antepassado forneceu um relato correto e completo da batalha, que ele diz ter concluído no mesmo dia em que ela foi travada. Mas ele não estava lá. Na ocasião, ele estava em York.

Jane, que realmente não estava acompanhando o que a senhorita Ironwood dizia, olhou para ela.

– Se ele estava dizendo a verdade – disse a senhorita Ironwood –, e nós acreditamos que estava, ele sonhou. Está entendendo?

– Sonhou com a batalha?

– Sim. Mas sonhou certo. Ele viu no sonho a batalha verdadeira.

– Não vejo a ligação entre uma coisa e outra.

– A vidência, o poder de sonhar a realidade, é às vezes hereditária – disse a senhorita Ironwood.

Alguma coisa pareceu atrapalhar a respiração de Jane. Ela estava começando a se sentir ofendida. Esse era exatamente o tipo de coisa que ela detestava: um evento do passado, alguma coisa irracional e totalmente inconveniente, que saía do seu covil para vir se intrometer na sua vida.

– Isso pode ser provado? – perguntou ela. – Quer dizer, só temos a palavra dele.

– Temos os seus sonhos – disse a senhorita Ironwood. Sua voz, sempre séria, tinha se tornado severa. Um pensamento fantástico passou pela cabeça de Jane. Poderia aquela velha nutrir alguma ideia de que não se deve chamar de mentirosos nem mesmo nossos antepassados mais remotos?

– Meus sonhos? – disse ela, com um pouco de aspereza.

– Sim – disse a senhorita Ironwood.

– Como assim?

– Na minha opinião, você viu coisas reais nos seus sonhos. Você viu Alcasan realmente sentado na cela de condenado e viu uma visita que ele de fato recebeu.

– Mas… mas… ora, isso é ridículo – disse Jane. – Essa parte foi mera coincidência. O resto foi apenas um pesadelo. Era tudo impossível. Ele desatarraxou a cabeça, é o que lhe digo. E eles desenterraram o velho horroroso. Fizeram que voltasse à vida.

– Sem dúvida, há alguma confusão aí. Mas na minha opinião existem fatos mesmo por trás desses episódios.

– Receio não acreditar nesse tipo de coisa – disse Jane com frieza.

– Por sua formação, é natural que não acredite – respondeu a senhorita Ironwood. – A menos que você tenha descoberto por si mesma, é claro, que tem uma tendência a sonhar fatos reais.

Jane pensou no livro sobre a mesa, do qual ela parecia ter se lembrado antes de vê-lo; e depois havia a aparência da senhorita Ironwood… que ela também tinha visto antes de conhecê-la. Mas devia ser tolice sua.

– Então a senhora não pode fazer nada por mim?

– Posso lhe dizer a verdade – disse a senhorita Ironwood. – Foi o que tentei fazer.

– Quer dizer, a senhora não tem como fazer isso parar? Como me curar?

– A vidência não é uma doença.

– Mas eu não quero ter isso – disse Jane, veemente. – Preciso impedir que aconteça. Odeio esse tipo de coisa. – A senhorita Ironwood nada disse. – A senhora não conhece ninguém que possa acabar com isso? – perguntou Jane. – Não pode me recomendar ninguém?

– Se você procurar um psicoterapeuta comum – disse a senhorita Ironwood –, ele partirá do pressuposto de que os sonhos meramente refletem seu subconsciente. Ele tentaria tratá-la. Não sei quais seriam os resultados de um tratamento com base nessa premissa. Receio que possam ser muito sérios. E… com certeza o tratamento não acabaria com os sonhos.

– Mas afinal do que se trata? – disse Jane. – Quero levar uma vida normal. Quero fazer meu trabalho. Tudo isso é insuportável! Por que eu deveria ser escolhida para essa coisa horrível?

– A resposta a isso é conhecida somente por autoridades muito superiores a mim.

Houve um breve silêncio. Jane fez um movimento indefinível.

– Bem, se a senhora não pode fazer nada por mim – disse ela, bastante contrariada –, talvez seja melhor eu ir embora. – E então, de repente, acrescentou: – Mas como é possível que a senhora saiba tudo isso? Quer dizer, de que fatos a senhora está falando?

– Creio – disse a senhorita Ironwood – que você provavelmente tem mais motivos para supor a veracidade dos seus sonhos do que me contou. Se não tiver, logo terá. Nesse meio-tempo, responderei à sua pergunta. Nós sabemos que seus sonhos são em parte verdadeiros porque eles se encaixam em informações que já possuímos. Foi por enxergar sua importância que o doutor Dimble a encaminhou para nós.

– Quer dizer que ele me mandou vir aqui não para ser curada, mas para dar informações? – disse Jane. A ideia se ajustava a certas coisas que Jane tinha observado na postura do doutor Dimble, quando ela lhe fez os relatos de seus sonhos.

– Exatamente.

– Quem dera eu tivesse sabido disso um pouco antes – disse Jane com frieza, levantando-se definitivamente para sair. – Receio que tenha sido um mal-entendido. Eu imaginava que o doutor Dimble estivesse tentando me ajudar.

– E ele estava. Mas também estava tentando fazer alguma coisa mais importante ao mesmo tempo.

– Imagino que eu deveria ser grata por chegar a ser alvo de consideração – disse Jane, áspera. – E exatamente de que modo eu haveria de ser ajudada por todo esse tipo de coisa? – A tentativa de um desdém irônico fracassou, quando ela disse essas últimas palavras; e uma raiva rubra, sem disfarces, invadiu seu rosto. Sob certos aspectos, ela era muito jovem.

– Minha jovem – disse a senhorita Ironwood –, você não está se dando conta da gravidade dessa questão. As cenas que você viu dizem respeito a algo em comparação com o qual a felicidade, ou mesmo a vida, sua ou minha, não têm importância alguma. Devo implorar que você encare a situação. Você não pode se livrar do seu dom. Pode tentar reprimi-lo, mas fracassará e ficará terrivelmente amedrontada. Por outro lado, você pode pô-lo à nossa disposição. Se o fizer, sentirá muito menos medo no longo prazo e ajudará a salvar a espécie humana de uma enorme catástrofe. Ou, em terceiro lugar, você pode falar dele a mais alguém. Se o fizer, tenho de avisá-la da possibilidade quase certa de que cairá nas mãos de outras pessoas, as quais estarão pelo menos tão ansiosas quanto nós para fazer uso dessa sua faculdade, e que não se importarão com sua vida e sua felicidade mais do que se importariam com as de uma mosca. As pessoas que você viu nos seus sonhos são pessoas de verdade. Não é de todo improvável que já saibam que você, involuntariamente, as andou espionando. E, se for esse o caso, não descansarão enquanto não puserem as mãos em você. Eu a aconselharia, para seu próprio bem, a se unir a nós.

– A senhora não para de falar em nós e nosso. Vocês são algum tipo de companhia?

– Sim. Você pode chamá-la de companhia.

Durante os últimos minutos, Jane estivera em pé e quase tinha acreditado no que ouvia. E então, de repente, toda a sua repugnância a dominou: toda a vaidade ferida, o ressentimento pela confusão sem sentido na qual ela parecia ter sido apanhada e sua aversão geral pelo misterioso e pelo desconhecido. Naquele momento, nada lhe pareceu mais importante que sair daquela sala e se afastar da voz grave, serena, da senhorita Ironwood. “Ela já piorou meu estado”, pensou Jane, ainda se considerando uma paciente.

– Agora preciso ir para casa – disse ela, em voz alta. – Não sei do que a senhora está falando. Não quero ter nada que ver com isso.

Mark acabou descobrindo que se esperava que ele ficasse pelo menos uma noite; e, quando subiu para se vestir para o jantar, estava se sentindo mais animado. Isso se devia em parte a um uísque com soda que tinha tomado com a Fada Hardcastle imediatamente antes de subir; e em parte ao fato de que, com uma olhada no espelho, ele percebeu que já podia arrancar o desagradável chumaço de algodão do seu lábio. O quarto, com a lareira acesa e o banheiro privativo, tinha também algo que ver com seu estado de ânimo. Ainda bem que ele tinha permitido que Jane o convencesse a comprar aquele novo smoking! Estava com ótima aparência ali estendido na cama; e ele agora se dava conta de que o velho realmente não teria servido. Mas o que lhe tinha dado mais segurança foi sua conversa com a Fada.

Seria um equívoco dizer que ele gostava dela. Com efeito, ela despertara nele toda a repulsa que um jovem sente ao se encontrar perto de uma criatura cuja sexualidade é grosseira, até mesmo insolente, e ao mesmo tempo totalmente desprovida de atrativos. E alguma coisa no seu olhar frio denunciara a Mark que ela tinha perfeita consciência dessa reação e que a considerava divertida. Ela lhe contara uma boa quantidade de piadas indecentes. Muitas vezes até aquele momento, Mark estremecia diante dos esforços desajeitados da fêmea emancipada para se entregar a esse tipo de humor, mas seus estremecimentos sempre tinham se reconfortado com uma noção de superioridade. Desta vez, porém, sua impressão era a de que ele era o alvo. Aquela mulher estava exasperando o puritanismo masculino para sua diversão. Mais adiante, ela resvalou para reminiscências da polícia. Apesar de algum ceticismo inicial, Mark aos poucos se horrorizou com sua suposição de que cerca de trinta por cento de todos os nossos julgamentos de homicídio se encerravam com o enforcamento de um inocente. Houve também detalhes sobre o galpão da execução que não tinham ocorrido a Mark até então.

Tudo isso era desagradável. Mas era compensado pela natureza deliciosamente confidencial da conversa. Diversas vezes naquele dia, tinha lhe sido imposta a sensação de que ele era alguém de fora. Essa sensação desapareceu por completo enquanto a senhorita Hardcastle conversava com ele. Ele tinha a noção de que estava por dentro. Parecia que a senhorita Hardcastle tinha levado uma vida emocionante. Em ocasiões diferentes, fora uma sufragista, uma pacifista e uma fascista britânica. Tinha sido carregada à força pela polícia e encarcerada. Por outro lado, conhecera primeiros-ministros, ditadores e famosos astros do cinema. Toda a sua história era secreta. Por ter estado dos dois lados, ela sabia o que uma força policial podia fazer e o que não podia; e era da opinião de que havia pouquíssimas coisas que não podia fazer.

– Especialmente agora – disse ela. – Aqui no Instituto, estamos apoiando a cruzada contra a burocracia.

Mark concluiu que, para a Fada, o lado policial do Instituto era o lado de real importância. Ele existia para aliviar o executivo normal do que poderia ser chamado de casos de saneamento, categoria que abrangia desde a vacinação até acusações de perversões antinaturais – a partir das quais, como ela salientou, era só um passo para incluir todos os casos de chantagem. No que diz respeito ao crime, em geral, já tinha sido divulgada na imprensa a ideia de que o Instituto deveria ter permissão para realizar experimentos bastante amplos, na esperança de descobrir até que ponto o tratamento humanitário, corretivo, poderia substituir a antiga noção de punição por “represália” ou “vingança”. Era aí que o excesso de burocracia jurídica prejudicava seu avanço.

– Mas só restam dois jornais que nós não controlamos – disse a Fada. – E nós os esmagaremos. É preciso que o homem comum fique num estado em que diga automaticamente “sadismo”, ao ouvir a palavra “punição”. E então teríamos carta branca. – Mark não compreendeu isso de imediato. Mas a Fada ressaltou que o que tinha prejudicado todas as forças policiais até o presente era exatamente a ideia de punição merecida. Pois o merecimento sempre era finito: podia-se castigar o criminoso até certo ponto e não mais. O tratamento corretivo, por outro lado, não precisava ter limite fixo: podia continuar até ter efetuado uma cura, e os encarregados dele é que decidiriam quando isso ocorreria. E se a cura era humanitária e desejável, a prevenção não seria muito mais? Em breve, qualquer um que tivesse chegado a estar nas mãos da polícia estaria sob o controle do Inec. No final das contas, todo cidadão. – E é aí que você e eu entramos, filhinho – acrescentou a Fada, cutucando o peito de Mark com o indicador. – No longo prazo não há distinção entre o trabalho da polícia e a sociologia. Você e eu precisamos trabalhar juntos.

Isso reacendera em Mark suas dúvidas a respeito de um emprego lhe estar sendo oferecido ou não e, em caso positivo, qual ele era. A Fada lhe avisara que Steele era um homem perigoso.

– Há duas pessoas com quem você vai precisar ter muita cautela – disse ela. – Uma é Frost, e a outra é o velho Wither. – Mas em geral ela riu dos seus medos. – Você já está conosco, filhinho – disse ela. – Só não seja exigente demais sobre o que exatamente vai ter de fazer. Vai descobrir à medida que prosseguir. Wither não gosta que as pessoas tentem forçá-lo a se definir. De nada adianta dizer que você veio aqui para fazer isso e que se recusa a fazer aquilo. Tudo está acontecendo depressa demais neste exato momento para esse tipo de atitude. Você precisa demonstrar que é útil. E não acredite em tudo o que lhe disserem.

No jantar, Mark descobriu-se sentado ao lado de Hingest.

– Bem – disse Hingest –, eles acabaram conseguindo laçá-lo, hein?

– Acredito que sim – disse Mark.

– Porque – disse Hingest –, se você tivesse mudado de ideia, vou voltar de carro hoje à noite e poderia lhe dar uma carona.

– Você ainda não me disse por que mesmo está nos deixando – disse Mark.

– Ah, bem, tudo depende do que se gosta. Se você aprecia a companhia daquele eunuco italiano, do pastor maluco e daquela tal de Hardcastle… a avó dela teria lhe dado uns bons tabefes, se estivesse viva… naturalmente não há mais o que dizer.

– Suponho que não se possa julgar a questão em termos meramente sociais. Quer dizer, isso aqui é mais do que um clube.

– Hem? Julgar? Nunca julguei nada na minha vida, ao que eu saiba, exceto numa exposição de flores. É só uma questão de gosto. Vim aqui porque achei que haveria alguma relação com a ciência. Agora que descobri que se assemelha mais a uma conspiração política, vou embora para casa. Estou velho demais para esse tipo de coisa; e, se eu quisesse participar de alguma conspiração, esta aqui não seria a que eu escolheria.

– Suponho que você esteja querendo dizer que o elemento de planejamento social não é do seu agrado. Entendo perfeitamente que ele não se encaixa no seu trabalho como se encaixa em ciências como a Sociologia, mas…

– Não existem ciências como a Sociologia. E, se eu descobrisse que a Química começava a se encaixar numa polícia secreta sob o comando de uma megera de meia-idade que não usa espartilho e num esquema para tirar de cada cidadão inglês suas terras, sua loja e seus filhos, eu deixaria a Química ir para o inferno e retomaria a jardinagem.

– Acho que compreendo, sim, o sentimento que ainda está vinculado ao homem do povo; mas, quando se chega a estudar a realidade, como é minha obrigação…

– Eu teria vontade de destroçá-la e pôr alguma outra coisa no lugar. É claro. É isso o que acontece quando estudamos os homens: nossas descobertas são ilusórias. Eu, por mim, acredito ser impossível estudar os homens. Só se pode chegar a conhecê-los, o que é algo totalmente diferente. Só porque você os estuda, vai querer fazer que as classes inferiores governem o país e ouçam música clássica, o que é uma asneira. Você também vai querer tirar deles tudo o que faz a vida valer a pena; e não apenas deles, mas de todas as outras pessoas, exceto um punhado de pedantes e professores universitários.

– Bill! – disse a Fada Hardcastle de repente, da outra ponta da mesa, numa voz tão alta que até mesmo Hingest não pôde ignorar. Ele fixou os olhos nela, e seu rosto ficou vermelho-escuro.

– É verdade – berrou a Fada – que você vai sair de carro imediatamente depois do jantar?

– É, senhorita Hardcastle, é verdade.

– Eu estava me perguntando se você poderia me dar uma carona.

– Seria um prazer – disse Hingest, numa voz sem nenhuma intenção de fingimento –, se nós formos na mesma direção.

– Para onde você vai?

– Vou para Edgestow.

– Vai passar por Brenstock?

– Não. Saio do anel rodoviário na encruzilhada logo depois do portão da frente da propriedade de lorde Holywood e desço pela via que costumavam chamar de Potter’s Lane.

– Ah, droga! Não adianta para mim. Melhor eu esperar amanhecer.

Depois disso, Mark descobriu-se ocupado com seu vizinho da esquerda e só foi ver Bill Nevasca outra vez quando o encontrou no saguão após o jantar. Ele estava de sobretudo e pronto para ir para o carro.

Ele começou a falar enquanto abria a porta, e por essa razão Mark foi levado a acompanhá-lo pela grande área de cascalho, até onde o carro estava estacionado.

– Aceite meu conselho, Studdock – disse ele. – Ou pelo menos reflita. Eu por mim não acredito na Sociologia, mas você tem uma carreira razoável pela frente se ficar em Bracton. Não lhe será benéfico envolver-se com o Inec… e, por Deus, tampouco será benéfico para alguém.

– Suponho que haja duas opiniões sobre tudo – disse Mark.

– Quê? Duas opiniões? Há dezenas de opiniões sobre todas as coisas até que se saiba a resposta. Daí em diante, nunca há mais de uma. Mas não é da minha conta. Boa noite.

– Boa noite, Hingest – disse Mark. O outro deu a partida e saiu com o carro.

Havia um toque de frio no ar. O ombro de Órion, embora Mark desconhecesse até mesmo essa constelação importante, chamejava para ele acima do topo das árvores. Ele sentiu alguma hesitação em voltar a entrar na casa. Poderia significar mais conversa com pessoas interessantes e influentes; mas também poderia significar mais uma vez a sensação de ser alguém de fora, à toa por ali, assistindo a conversas das quais não podia participar. De todo modo, estava cansado. Caminhando pela frente da casa, ele por fim chegou a outra porta menor, pela qual calculou que poderia entrar, sem passar pelo saguão ou pelos salões abertos ao público. Entrou e imediatamente subiu para o andar superior onde iria passar a noite.

Camilla Denniston acompanhou Jane à saída, não pela pequena porta no muro pela qual tinha entrado, mas pelo portão principal que dava para a mesma rua cerca de cem metros mais adiante. Uma luz amarela a partir de um rasgo no céu cinza, lá para os lados do oeste, derramava um brilho efêmero e gelado sobre toda a paisagem. Jane tinha se sentido envergonhada de deixar transparecer raiva ou ansiedade diante de Camilla. Como resultado, quando ela se despediu, as duas se sentiam tolhidas. No entanto, permanecia uma aversão arraigada pelo que ela chamava de “toda essa bobagem”. Ela, na verdade, não tinha certeza se era bobagem, mas já tinha resolvido que trataria a situação como se fosse. Não acabaria “enrolada nela”, não se deixaria ser atraída. Era preciso viver a própria vida. Evitar vínculos e interferências era, desde muito tempo, um dos seus princípios primordiais. Mesmo quando tinha descoberto que se casaria com Mark se ele pedisse, o pensamento “mas eu ainda preciso manter minha própria vida” surgira de imediato e nunca estivera ausente da sua mente por mais do que alguns minutos corridos. Restava algum ressentimento contra o amor em si, e portanto contra Mark, por ter invadido sua vida dessa forma. Ela pelo menos tinha uma consciência muito clara de tudo a que uma mulher renuncia ao se casar. Parecia-lhe que Mark tinha uma noção insuficiente desse aspecto. Embora ela não formulasse a ideia, esse medo de ser invadida e enredada era a razão mais profunda da sua determinação de não ter um filho… ou pelo menos não por um bom tempo. Tinha-se a própria vida a viver.

Quase no instante em que chegou de volta ao apartamento, o telefone tocou.

– É você, Jane? – disse uma voz. – Sou eu, Margaret Dimble. Aconteceu uma coisa tão terrível. Eu lhe conto quando chegar aí. Estou com raiva demais para falar agora. Você por acaso tem uma cama de hóspedes? Como? O senhor Studdock não está? Nem um pouco, se você não se importar. Mandei Cecil dormir na faculdade. Você tem certeza de que não vou atrapalhar? Muito, muito obrigada. Chego aí em meia hora.