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Quase antes de Jane terminar de pôr lençóis limpos na cama de Mark, a senhora Dimble chegou, com uma enorme quantidade de embrulhos.
– Você é um anjo por me abrigar esta noite – disse ela. – Acho que tentamos todos os hotéis em Edgestow. Este lugar vai se tornar insuportável. A mesma resposta por toda parte! Todos lotados com os agregados e vivandeiros desse Inec detestável. Secretárias, aqui; datilógrafas, acolá; “empreiteiros de obras”. É uma afronta. Se Cecil não tivesse conseguido um quarto na faculdade, acredito que ele teria sido forçado a dormir na sala de espera da estação. Só espero que o homem na faculdade tenha arejado a cama.
– Mas, afinal de contas, o que aconteceu? – perguntou Jane.
– Despejados, minha cara!
– Mas não é possível, senhora Dimble. Quer dizer, isso não pode ser permitido por lei.
– Foi isso que Cecil disse… Imagine só, Jane. A primeira coisa que vimos, quando abrimos a janela hoje de manhã, foi um caminhão na entrada de carros com as rodas traseiras no meio do canteiro de rosas, descarregando um pequeno exército do que pareciam ser criminosos, com pás e picaretas. No nosso próprio jardim! Havia um homenzinho odioso usando quepe, que falou com Cecil com um cigarro na boca. Pelo menos, não estava dentro da boca, mas grudado no lábio superior, sabe, e adivinhe o que ele disse? Ele disse que eles não faziam nenhuma objeção a que nós continuássemos de posse (da casa, veja bem, não do jardim) até as oito horas da manhã de amanhã. Nenhuma objeção!
– Mas sem dúvida, sem dúvida, deve ser algum engano.
– Naturalmente, Cecil ligou para o tesoureiro. E, naturalmente, o tesoureiro tinha saído. Isso levou quase a manhã inteira, ligando e ligando de novo. E àquela altura, aquela grande faia de que você gostava tanto tinha sido derrubada, assim como todas as ameixeiras. Se eu não estivesse sentindo tanta raiva, teria me sentado ali e chorado até não poder mais. Essa era minha vontade. Por fim, Cecil conseguiu falar com o senhor Busby, que foi totalmente inútil. Disse que devia estar ocorrendo algum equívoco, mas que estava fora da sua competência agora e que seria melhor nós entrarmos em contato com o Inec em Belbury. É claro que se revelou totalmente impossível entrar em contato com eles. Mas, já na hora do almoço, vimos que simplesmente não podíamos passar a noite lá, não importava o que acontecesse.
– Por que não?
– Minha querida, você não tem a menor noção de como estava a situação. Caminhões e tratores enormes passando barulhentos o tempo todo, e um guindaste em cima de uma espécie de vagão ferroviário. Ora, nossos entregadores não conseguiram passar. O leite só foi chegar às onze. A carne não conseguiu chegar. Eles ligaram de tarde para dizer que o pessoal da entrega não tinha conseguido chegar à nossa casa nem por uma rua nem pela outra. Nós mesmos tivemos a maior dificuldade para chegar à cidade. Levamos meia hora da nossa casa até a ponte. Foi como um pesadelo. Luzes de sinalização e barulho por todos os cantos, a estrada praticamente destruída e uma espécie de enorme acampamento de zinco já sendo armado no Campo Público. E as pessoas! Homens tão horrendos. Eu não sabia que tínhamos trabalhadores desse tipo na Inglaterra. Ai, horrível, horrível! – A senhora Dimble abanou-se com o chapéu que acabava de tirar.
– E o que vocês vão fazer? – perguntou Jane.
– Só Deus sabe! – disse a senhora Dimble.– Por enquanto, fechamos a casa, e Cecil foi procurar Rumbold, o advogado, para ver se pelo menos poderíamos lacrá-la e deixá-la fechada até conseguirmos tirar nossas coisas de lá. Parece que Rumbold não sabe por onde começar. Ele não para de dizer que o Inec está numa posição muito peculiar em termos legais. Depois disso, tenho certeza de que não sei de nada. Até onde eu posso ver, não haverá casa alguma em Edgestow. Já não há cogitação de tentar morar do outro lado do rio, mesmo que eles permitissem. O que você disse? Ai, indescritível. Todos os choupos estão sendo derrubados. Todos aqueles chalezinhos simpáticos junto da igreja estão sendo demolidos. Encontrei a coitada da Ivy… é a sua senhora Maggs, sabe… se debulhando em lágrimas. Coitadas! Elas ficam medonhas quando choram por cima do pó de arroz. Ela também está sendo despejada. Coitadinha. Já teve problemas suficientes na vida sem isso. Fiquei feliz de sair de lá. Os homens eram tão horríveis... Três brutamontes vieram à porta dos fundos pedindo água quente e bradaram tanto que deixaram Martha louca de medo, e Cecil precisou falar com eles. Achei que fossem agredir Cecil, achei, sim. Foi horrivelmente desagradável. Mas um tipo de policial especial os fez ir embora. Quê? Há dezenas do que parecem ser policiais por toda parte, e eu também não gostei da cara deles. Brandindo alguma espécie de cassetete, como se veria num filme americano. Sabe, Jane, Cecil e eu pensamos a mesma coisa: pensamos que era quase como se tivéssemos perdido a guerra. Ai, minha menina, chá! Exatamente o que eu queria.
– A senhora deve ficar aqui o tempo que quiser, senhora Dimble – disse Jane. – Mark terá de dormir na faculdade.
– Bem, na realidade – disse Mamãe Dimble –, neste instante acho que nenhum membro do corpo docente de Bracton deveria ter permissão para dormir em parte alguma! Mas eu abriria uma exceção no caso do senhor Studdock. Por sinal, não precisarei me comportar como a espada de Siegfried… e, cá entre nós, uma bela espada gorda e atarracada eu seria! Mas todo esse aspecto está resolvido. Cecil e eu vamos para o Solar em St. Anne’s. Atualmente temos precisado estar lá com alguma frequência, sabe?
– Ah – disse Jane, prolongando involuntariamente a exclamação, à medida que toda a sua história voltava a fluir em sua mente.
– Puxa, como estou sendo egoísta – disse Mamãe Dimble. – Cá estou eu falando sem parar dos meus problemas, totalmente esquecida de que você esteve lá e está cheia de notícias para me dar. Você viu Grace? Gostou dela?
– “Grace” é a senhorita Ironwood? – perguntou Jane.
– Sim.
– Eu a vi. Não sei se gostei ou não dela. Mas não quero falar sobre tudo aquilo. Não consigo pensar em nada a não ser nessa sua história abominável. É a senhora que é a verdadeira mártir, não eu.
– Não, minha querida – disse a senhora Dimble –, não sou uma mártir. Sou apenas uma velhota zangada, cujos pés estão me matando e que está com uma dor de cabeça lancinante (mas que está começando a passar) e está tentando falar até melhorar de humor. Afinal de contas, Cecil e eu não perdemos nosso meio de vida como a pobre Ivy Maggs. No fundo não importa sair da velha casa. Sabe, o prazer de morar ali era de certo modo um prazer melancólico. (Eu me pergunto, a propósito, se os seres humanos realmente gostam de ser felizes.) Um pouco de melancolia, sim. Todos aqueles quartos espaçosos no andar superior, que achávamos que queríamos porque acreditávamos que teríamos um monte de filhos, e depois nunca tivemos. Talvez eu estivesse gostando demais de ficar devaneando a respeito deles nas tardes compridas, quando Cecil não estava em casa. Sentindo pena de mim mesma. Eu diria que estarei melhor longe dela. Eu poderia ter acabado como aquela mulher apavorante de Ibsen, que estava sempre divagando sobre bonecas. Realmente é pior para Cecil. Ele adorava tanto receber todos os alunos por lá. Jane, essa é a terceira vez que você boceja. Você está caindo de sono, e eu a estou incomodando com essa conversa sem-fim. É nisso que dá ficar casada trinta anos. Os maridos foram feitos para nós falarmos com eles. Parece que isso os ajuda a concentrar a mente no que estão lendo, como o som da água numa represa. Pronto! Você está bocejando de novo.
Jane achou embaraçoso dividir um quarto com Mamãe Dimble porque ela rezava. Era totalmente extraordinário, pensou Jane, como isso a perturbou. Ela não sabia para onde olhar; e foi muito difícil voltar a conversar naturalmente por alguns minutos depois que a senhora Dimble tinha se levantado da posição de joelhos.
– Você está acordada, agora? – disse a voz da senhora Dimble, baixinho, no meio da noite.
– Estou – disse Jane. – Desculpe. Eu a acordei? Eu estava gritando?
– Sim. Estava gritando sobre alguém levar um golpe na cabeça.
– Eu os vi matando um homem… um homem num carro grande que vinha dirigindo por uma estrada vicinal. Depois ele chegou a uma encruzilhada e seguiu para a direita passando por algumas árvores; e havia alguém em pé no meio da estrada, acenando com uma lanterna para que ele parasse. Não pude ouvir o que disseram. Eu estava longe demais. Eles devem tê-lo convencido a saltar do carro, e lá estava ele conversando com um deles. A luz batia direto no seu rosto. Não era o mesmo velho que eu vi no outro sonho. Ele não tinha barba, só bigode. E tinha uma postura muito ágil, altiva. Ele não gostou do que o homem lhe disse e logo levantou os punhos e o derrubou no chão. Outro homem por trás dele tentou atingi-lo na cabeça com alguma coisa, mas ele foi muito rápido e se virou a tempo. Então foi bastante horrível, mas também admirável. Eram três a atacá-lo, e ele lutou contra todos os três. Já li sobre esse tipo de coisa em livros, mas nunca me dei conta de qual seria a sensação de presenciar o fato. É claro que acabaram por apanhá-lo. Espancaram sua cabeça com violência, com as coisas que brandiam. Estavam perfeitamente tranquilos com a história e se abaixaram para examiná-lo e se certificar de que realmente tinha morrido. A luz da lanterna parecia esquisita. Dava a impressão de fazer longas tiras verticais de luz, como barras, em torno do lugar inteiro. Mas talvez a essa hora eu já estivesse despertando. Não, obrigada, estou bem. Foi horrível, mas na verdade não estou assustada. Não como teria ficado antes. Sinto mais pena do velho.
– E acha que vai poder voltar a dormir?
– Ah, sim! Sua dor de cabeça melhorou, senhora Dimble?
– Desapareceu totalmente, obrigada. Boa noite.
– Sem a menor dúvida – pensou Mark –, esse deve ser o pastor maluco de quem Bill Nevasca estava falando. – O Comitê em Belbury ia se reunir somente às dez e meia; e desde o café da manhã ele estava andando no jardim com o reverendo Straik, apesar do tempo enevoado e desagradável. No exato instante em que o homem o deteve para conversar pela primeira vez, as roupas gastas e as botas desajeitadas, a gola puída de padre, o rosto trágico, magro e sombrio, mal barbeado e marcado com rugas e cicatrizes, bem como a sinceridade amarga de sua atitude, fizeram soar uma nota dissonante. Aquele não era um tipo que Mark tinha esperado encontrar no Inec.
– Não imagine – disse o senhor Straik – que eu me entregue a quaisquer sonhos de executar nosso programa sem violência. Haverá resistência. Eles vão morder a língua, e não vão se arrepender. Nós não recuaremos. Enfrentaremos essas perturbações com uma firmeza que levará os caluniadores a dizer que nós as desejamos. Que digam. Em certo sentido, desejamos, sim. Não faz parte de nossa fé preservar esse sistema de pecado organizado que se chama sociedade. Para essa organização, a mensagem que temos a transmitir é uma mensagem de desespero absoluto.
– Agora é isso o que eu queria dizer – disse Mark –, quando afirmei que o seu ponto de vista e o meu deverão, no longo prazo, ser incompatíveis. A preservação da sociedade, o que envolve um planejamento meticuloso, é exatamente o fim que tenho em mente. Não creio que haja ou que possa haver qualquer outro fim. Para você, o problema é totalmente diferente, porque você tem a expectativa de alguma coisa a mais, algo melhor que a sociedade humana, em algum outro mundo.
– Com cada pensamento, cada vibração do meu coração, cada gota do meu sangue – disse o senhor Straik –, eu repudio essa doutrina condenável. É exatamente esse o subterfúgio pelo qual o mundo, a organização e corpo da morte, desviou e emasculou os ensinamentos de Jesus, e transformou em sacerdotalismo e misticismo a simples conclamação do Senhor por integridade e discernimento aqui e agora. O Reino de Deus deve se tornar realidade aqui… neste mundo. E haverá de se tornar. Ao ouvir o nome de Jesus, todos se ajoelharão. Por esse nome, eu me dissocio inteiramente de toda religião organizada que já se viu neste mundo.
E, ao ouvir o nome de Jesus, Mark, que teria palestrado sem pestanejar sobre o aborto ou perversões para uma plateia de moças, se sentiu tão embaraçado que soube que suas bochechas estavam enrubescendo levemente. E ficou tão zangado consigo mesmo e com o senhor Straik por essa descoberta, que elas enrubesceram de verdade. Era exatamente esse o tipo de conversa que ele não conseguia suportar; e, desde a aflição bem lembrada das aulas sobre a Bíblia na escola, ele nunca tinha se sentido tão pouco à vontade. Resmungou alguma coisa sobre seu desconhecimento da teologia.
– Teologia! – disse o senhor Straik, com profundo desdém. – Não é de teologia que estou falando, meu rapaz, mas do Senhor Jesus. A teologia é conversa fiada, papo-furado, um engodo, uma brincadeira para os ricos. Não foi em salas de conferência que descobri o Senhor Jesus. Foi nas minas de carvão, ao lado do caixão da minha filha. Se eles imaginam que a teologia é algum tipo de acolchoamento que os manterá em segurança no dia mais importante e terrível, hão de descobrir que erraram. Pois ouça o que digo, isso vai acontecer. O Reino vai chegar, a este mundo, a este país. Os poderes da ciência são um instrumento. Um instrumento irresistível, como sabemos todos nós no Inec. E por que eles são um instrumento irresistível?
– Porque a ciência se baseia na observação – sugeriu Mark.
– São um instrumento irresistível – gritou Straik – porque são um instrumento na mão d’Ele. Um instrumento de julgamento tanto quanto de cura. Foi isso o que não consegui que nenhuma das Igrejas enxergasse. Elas estão cegas. Cegas por seus farrapos imundos de humanismo, sua cultura, humanitarismo e liberalismo, e também por seus pecados, ou pelo que acham que são seus pecados, muito embora eles sejam o que elas têm de menos pecaminoso. Foi por isso que acabei isolado: um homem pobre, fraco, indigno, mas o único profeta restante. Eu sabia que Ele voltaria com poder. E, portanto, onde vemos o poder, vemos o sinal da vinda d’Ele. E é por isso que me descubro me aliando a comunistas, materialistas e a qualquer outra pessoa que esteja realmente disposta a facilitar a vinda. A mais frágil dessas pessoas aqui tem o trágico sentido da vida, a impiedade, a dedicação total, a disposição de sacrificar todos os valores meramente humanos, que não consegui encontrar em meio a toda a hipocrisia enjoativa das religiões organizadas.
– Você está querendo dizer – perguntou Mark – que, no que diz respeito à prática imediata, sua cooperação com o programa não tem limites?
– Abandone toda ideia de cooperação! – disse o outro. – Por acaso, o barro coopera com o oleiro? Ciro cooperou com o Senhor? Essas pessoas serão usadas. Eu também serei usado. Instrumentos. Veículos. Mas eis o ponto que lhe diz respeito, meu rapaz. Você não tem escolha se vai ser usado ou não. Depois que você puser a mão no arado, não terá como voltar. Ninguém sai do Inec. Os que tentarem voltar atrás perecerão no deserto. Mas a questão é se você se contentará em ser um dos instrumentos que serão descartados quando tiverem cumprido Sua vontade: um que, tendo executado a sentença em outros, estará ele próprio reservado para ser julgado… Ou você estará entre aqueles que receberão a herança? Pois é tudo verdade, sabia? São os santos que herdarão a Terra. Aqui na Inglaterra, talvez dentro dos próximos doze meses. Os santos, e mais ninguém. Você não sabe, então, que julgaremos anjos? – Depois, baixando de repente a voz, Straik acrescentou: – A verdadeira ressurreição está agora mesmo ocorrendo. A verdadeira vida eterna. Aqui neste mundo. Você vai ver.
– Ouça – disse Mark –, já são quase dez e vinte. Não deveríamos nos encaminhar para o Comitê?
Straik deu meia-volta com ele em silêncio. Em parte para evitar mais conversa da mesma natureza e em parte porque realmente queria saber a verdade, Mark acabou fazendo a pergunta.
– Aconteceu uma coisa muito irritante. Perdi minha carteira. Não havia muito dinheiro nela… só umas três libras. Mas havia cartas e outras coisas, e é uma amolação. Eu deveria falar com alguém sobre isso?
– Você poderia falar com o administrador – disse Straik.
O Comitê ficou reunido por cerca de duas horas, e o vice-diretor presidiu a reunião. Seu método de conduzir os procedimentos era vagaroso e atento; e, para Mark, com sua experiência em Bracton para orientá-lo, logo ficou óbvio que o verdadeiro trabalho do Inec devia ocorrer em algum outro lugar. De fato, isso era o que ele tinha imaginado; e ele era sensato demais para supor que, naquele estágio inicial, fosse se encontrar no Círculo Mais Fechado ou o que quer que fosse que em Belbury correspondia ao Elemento Progressista em Bracton. Mas ele tinha esperança de que não ficaria marcando passo em comitês fantasmas por muito tempo. Naquela manhã, o assunto consistia sobretudo nos detalhes da obra que já tinha começado em Edgestow. Aparentemente o Inec obtivera algum tipo de vitória que lhe deu o direito de demolir a igrejinha normanda na esquina.
– As objeções de costume foram, naturalmente, arquivadas – disse Wither. Mark, que não se interessava por arquitetura nem conhecia a outra margem do Wynd tão bem quanto sua mulher, deixou sua atenção divagar. Foi somente no final da reunião que Wither abordou um tema muito mais sensacional. Ele acreditava que a maioria dos ali presentes já tinha ouvido (“Por que os presidentes de reuniões sempre começavam falando desse jeito?”, pensou Mark) a notícia muito consternadora que, mesmo assim, era seu dever comunicar-lhes em caráter semioficial. Naturalmente, ele estava se referindo ao assassinato de William Hingest. Até onde Mark pôde descobrir, a partir da narrativa tortuosa e cheia de alusões do presidente da reunião, Bill Nevasca tinha sido encontrado com a cabeça afundada por algum instrumento grosseiro, caído perto do carro em Potter’s Lane por volta das quatro da manhã daquele dia. Ele já estava morto havia horas. O senhor Wither ousou sugerir que talvez fosse um prazer melancólico para o Comitê saber que a polícia do Inec já estava na cena do crime antes das cinco, e que nem as autoridade locais nem a Scotland Yard estavam fazendo nenhuma restrição à sua total colaboração. Wither comentava que, se a ocasião fosse mais adequada, ele teria considerado bem-vinda uma moção favorável a alguma expressão da gratidão que todos deveriam sentir pela senhorita Hardcastle e possivelmente de congratulações a ela pela perfeita interação entre suas próprias forças e as do Estado. Essa era uma característica extremamente gratificante do triste episódio e, sugeriu ele, um bom prenúncio para o futuro. Com isso, um aplauso decorosamente discreto fez a volta da mesa. O senhor Wither passou então a falar mais extensamente sobre o morto. Todos tinham lamentado profundamente a decisão do senhor Hingest de se retirar do Inec, apesar de compreender plenamente seus motivos. Todos acreditavam que aquele rompimento oficial não afetaria de modo algum as relações cordiais que existiam entre o falecido e quase todos – ele achava que até mesmo podia dizer todos sem exceção – os seus ex-colegas do Instituto. O obituário (na bela expressão de Raleigh) era um instrumento que se adequava bem aos talentos do vice-diretor, e ele falou muito. E concluiu sugerindo que todos deveriam se postar em silêncio durante um minuto em sinal de respeito pela memória de William Hingest.
Foi o que fizeram – um minuto sem-fim no qual se tornaram audíveis respirações e rangidos estranhos; e por trás da máscara de cada rosto vidrado e de lábios cerrados, pensamentos tímidos, absurdos, sobre isso e sobre aquilo surgiam sorrateiros como aves e camundongos voltam a sair sorrateiros para uma clareira num bosque quando participantes de algum piquenique se foram; e cada um em silêncio se reconfortava dizendo que ele, pelo menos, não estava sendo mórbido nem pensando na morte.
E então houve uma movimentação e um rebuliço, e a reunião se encerrou.
Para Jane, todo o processo de se levantar e cumprir as tarefas da manhã foi mais animado porque ela estava com a senhora Dimble. Mark costumava ajudar, mas, como ele sempre era da opinião – e Jane sentia, mesmo que ele não colocasse em palavras – de que “qualquer coisa está bem”, que Jane criava muito trabalho desnecessário e que os homens podiam cuidar da casa com uma fração das queixas e da trabalheira que as mulheres atribuíam à tarefa, a ajuda do marido era uma das causas mais comuns das brigas entre eles. Já com a senhora Dimble, tudo se ajustava melhor. Era uma bela manhã ensolarada e, quando elas se sentaram para o desjejum na cozinha, Jane também se sentia luminosa. Durante a noite, sua cabeça tinha desenvolvido uma confortável teoria de que o mero fato de ter visto a senhorita Ironwood e de ter posto “tudo para fora” provavelmente pararia de vez com os sonhos. O episódio se encerraria. E agora havia toda a expectativa da possibilidade empolgante do novo emprego de Mark. Ela começou a imaginar cenas.
A senhora Dimble estava louca para saber o que tinha acontecido com Jane em St. Anne’s e quando ela ia voltar lá. A primeira pergunta Jane respondeu com evasivas, e a senhora Dimble era cortês demais para insistir. Quanto à segunda, Jane achava que não voltaria a “importunar” a senhorita Ironwood, ou que não se “preocuparia” mais com os sonhos. Disse que tinha sido “boba”, porém tinha certeza de que agora ficaria bem. Ela olhou de relance para o relógio e se perguntou por que a senhora Maggs ainda não tinha aparecido.
– Minha querida, receio que você tenha perdido Ivy Maggs – disse a senhora Dimble. – Eu não lhe disse que tiraram a casa dela também? Achei que você tinha entendido que ela não viria mais trabalhar para você. Veja bem, não há mais lugar para ela morar em Edgestow.
– Droga! – disse Jane, acrescentando, sem muito interesse na resposta. – E o que ela está fazendo, a senhora sabe?
– Ela foi para St. Anne’s.
– Ela tem amigos lá?
– Ela foi para o Solar, como Cecil e eu vamos.
– A senhora quer dizer que ela tem um emprego lá?
– Bem, sim, suponho que seja um emprego.
A senhora Dimble foi embora por volta das onze horas. Ao que parece, ela também ia para St. Anne’s, mas antes deveria se encontrar com o marido para almoçar em Northumberland. Jane desceu até a cidade com ela para fazer algumas comprinhas, e as duas se separaram no início de Market Street. Foi logo depois disso que Jane deparou com o senhor Curry.
– Já soube da notícia, senhora Studdock? – perguntou Curry. Sua atitude era sempre autoritária, e seu tom vagamente sigiloso; mas naquela manhã isso estava mais acentuado do que de costume.
– Não. O que houve? – disse Jane. Ela considerava o senhor Curry um pateta cheio de si, e Mark um tolo por se deixar impressionar por ele. Mas, assim que Curry começou a falar, o rosto dela demonstrou todo o assombro e consternação que ele poderia ter desejado. Dessa vez não houve o menor fingimento. Ele lhe contou que o senhor Hingest tinha sido assassinado, em alguma hora durante a noite, ou no início da madrugada. O corpo fora encontrado caído ao lado do automóvel, em Potter’s Lane, com graves contusões na cabeça. Na hora, ele estava seguindo de Belbury para Edgestow. Naquele instante Curry estava voltando apressado para a faculdade para conversar com o diretor sobre o assunto. Tinha acabado de sair da delegacia. Via-se que o assassinato já tinha se tornado propriedade de Curry. A questão, em algum sentido indefinível, “estava nas suas mãos”, e era pesada sua responsabilidade. Em outra ocasião, Jane teria achado isso divertido. Ela escapou dele o mais rápido possível e entrou no Blackie’s para tomar um café. Sentia que precisava se sentar.
Para ela, a morte de Hingest em si não significava nada. Encontrara-se com ele apenas uma vez e acatara a opinião de Mark de que era um velho desagradável e bastante esnobe. No entanto, a certeza de que, no seu sonho, ela mesma tinha testemunhado um assassinato verdadeiro destroçou de uma vez todo o falso consolo com que iniciara a manhã. Ocorreu-lhe com uma clareza repugnante que o caso dos seus sonhos, longe de estar encerrado, estava apenas começando. A vidinha clara e estreita que ela tinha se proposto viver estava sendo irremediavelmente invadida. De todos os lados abriam-se janelas que davam para paisagens imensas, escuras, e ela não tinha forças para fechá-las. Achou que enlouqueceria se enfrentasse a situação sozinha. A alternativa era recorrer novamente à senhorita Ironwood. Mas isso parecia não ser mais do que uma forma de se embrenhar mais em toda aquela escuridão. Aquele Solar em St. Anne’s, aquele “tipo de companhia” estavam envolvidos naquilo. Ela não queria ser aliciada. Era injusto. Não que ela tivesse pedido muito da vida. Tudo o que queria era ser deixada em paz. E a história era ridícula! O tipo de coisa que, de acordo com todas as autoridades que até então ela aceitara, na realidade não poderia acontecer.
Cosser – o homem sardento com um fiapo de bigode preto – abordou Mark quando ele estava saindo da reunião do Comitê.
– Você e eu temos um trabalho a fazer – disse ele. – Precisamos preparar um relatório sobre Cure Hardy.
Mark sentiu grande alívio ao ouvir falar de um trabalho. Mas retraiu-se um pouco, por não ter gostado muito de Cosser quando o conhecera, no dia anterior.
– Isso quer dizer – respondeu ele – que vou mesmo entrar para o departamento de Steele?
– Isso mesmo – disse Cosser.
– O motivo para eu perguntar – disse Mark – é que nem ele nem você pareceram muito animados com minha entrada. Não quero me impor a ninguém, sabe? Não preciso ficar no Inec de modo algum se for para isso.
– Bem, não vamos começar a falar nisso aqui – disse Cosser. – Suba comigo.
Eles estavam conversando no saguão, e Mark percebeu Wither se aproximando, pensativo.
– Não seria melhor falar com ele e esclarecer toda essa história? – sugeriu ele. Mas, depois de chegar a uns três metros dos dois homens, o vice-diretor mudou de direção. Ele estava cantarolando baixinho e parecia tão imerso em si mesmo que Mark considerou o momento inadequado para uma entrevista. Cosser, apesar de não dizer nada, pareceu ter a mesma ideia, e Mark subiu com ele para um escritório no terceiro andar.
– Trata-se do lugarejo de Cure Hardy – disse Cosser, quando eles se sentaram. – Veja só, toda aquela área do Bosque de Bragdon vai ser pouco mais que um charco quando eles começarem a trabalhar. Por que cargas-d’água quisemos ir para lá, eu não sei. Seja como for, o plano mais recente é desviar o Wynd: represar totalmente o velho canal que atravessa Edgestow. Olhe. Aqui fica Shillingbridge, uns quinze quilômetros ao norte da cidade. É ali que o curso será desviado para seguir por um canal artificial… aqui, a leste, onde está a linha azul, para voltar ao leito antigo aqui embaixo.
– Dificilmente a universidade vai concordar com isso – disse Mark. – O que seria de Edgestow sem o rio?
– A universidade está totalmente nas nossas mãos – disse Cosser. – Com isso você não precisa se preocupar. Seja como for, não é sua função. A questão é que o novo Wynd deverá passar direto através de Cure Hardy. Agora dê uma olhada nas curvas de nível. Cure Hardy fica nesse valezinho estreito. Hein? Ah, você já esteve lá, não esteve? Isso facilita tudo. Eu mesmo não conheço esta região. Bem, a ideia é fechar o vale na extremidade sul e fazer ali um grande lago. Vocês vão precisar de uma nova fonte para abastecimento de água agora que Edgestow vai se tornar a segunda cidade do país.
– Mas o que acontece com Cure Hardy?
– Essa é mais uma vantagem. Vamos construir um novo lugarejo-modelo, a ser chamado de Jules Hardy ou Wither Hardy, a uns seis quilômetros de distância. Mais para este lado, junto da ferrovia.
– Ouça o que lhe digo, essa história vai feder. Cure Hardy é famosa. É um ponto pitoresco. Há os asilos do século XVI para indigentes, uma igreja normanda e tudo o mais.
– Exatamente. É aí que entramos você e eu. Nós precisamos escrever um relatório sobre Cure Hardy. Vamos sair e dar uma olhada por lá amanhã, mas podemos escrever a maior parte do relatório hoje. Deve ser bastante fácil. Se é um local pitoresco, pode apostar que é insalubre. Esse é o primeiro ponto a ressaltar. Depois precisamos colher alguns fatos acerca da população. Creio que você vai descobrir que ela é composta quase inteiramente dos elementos mais indesejáveis: os que vivem de pequenas rendas e os trabalhadores rurais.
– Quanto aos que vivem de pequenas rendas serem um elemento nocivo, concordo – disse Mark. – Suponho que, no que diz respeito ao trabalhador rural, seja mais controvertido.
– O Instituto não aprova esse tipo. Trata-se de um elemento recalcitrante numa comunidade planejada, e ele é sempre retrógrado. Não nos interessamos pela agricultura inglesa. Então, tudo o que temos a fazer é comprovar alguns fatos. Sob outros aspectos, o relatório se escreve sozinho.
Mark ficou em silêncio por um instante ou dois.
– É bastante fácil – disse ele. – Mas antes de pôr a mão na massa, eu gostaria de ter uma noção um pouco mais clara da minha posição. Eu não deveria ver Steele? Não me agrada a ideia de começar a trabalhar neste departamento se ele não me quiser.
– Eu não faria isso – disse Cosser.
– Por que não?
– Bem, por um lado, Steele não poderá impedi-lo se o VD o apoiar, como ele parece estar fazendo no momento. Por outro lado, Steele é um homem bastante perigoso. Se você cumprir suas tarefas discretamente, ele até pode acabar se acostumando com você; mas, se você for vê-lo, a conversa poderia levar a um confronto. E ainda tem mais uma coisa. – Cosser parou de falar, coçou o nariz, pensativo, e prosseguiu. – Cá entre nós, creio que as coisas neste departamento não irão continuar indefinidamente como estão agora.
A excelente formação que Mark tinha tido em Bracton permitiu que ele compreendesse a frase. Cosser tinha esperança de conseguir que Steele saísse de uma vez do departamento. Ele acreditou enxergar a situação como um todo. Steele era perigoso enquanto permanecesse no cargo, mas talvez não permanecesse nele.
– Ontem eu tive a impressão – disse Mark – de que você e Steele se davam bastante bem.
– O melhor aqui – disse Cosser – é nunca brigar com ninguém. Eu detesto brigas. Posso me dar com qualquer um, desde que o trabalho seja feito.
– É claro – disse Mark. – Por sinal, se formos amanhã a Cure Hardy, eu bem que podia dar uma corrida até Edgestow para passar a noite em casa.
Para Mark muita coisa dependia da resposta a essa pergunta. Ele poderia descobrir se realmente estava sob as ordens de Cosser. Se ele dissesse “Você não pode fazer isso”, pelo menos Mark saberia a quantas andava. Se Cosser dissesse que não havia como liberá-lo, isso seria ainda melhor. Ou poderia responder ainda que era melhor consultar o VD. Isso também o teria deixado com mais certeza da sua posição. Mas Cosser apenas fez “Ah”, deixando Mark na dúvida se era necessário ter permissão para se ausentar, ou se ele ainda não estava suficientemente instalado no Instituto para sua ausência ter a menor importância. E então os dois começaram a trabalhar no relatório.
Gastaram nisso o resto do dia, tanto que Cosser e ele chegaram para jantar atrasados e sem se trocar. Isso provocou em Mark uma sensação extremamente agradável. E ele gostou também da refeição. Embora estivesse entre estranhos, nos primeiros cinco minutos já tinha a impressão de que conhecia todo mundo e já participava naturalmente da conversa. Estava aprendendo a conversar com eles sobre os assuntos profissionais.
– Que manhã agradável! – disse Mark para si mesmo na manhã do dia seguinte quando o carro deixou a estrada principal em Duke’s Eaton e começou a descer pelo caminho pequeno e irregular que entrava no longo vale onde ficava Cure Hardy. Em geral, Mark não era muito sensível à beleza, mas Jane e seu amor por ela já o tinham despertado um pouco para esse aspecto. Talvez o sol da manhã de inverno o tivesse afetado ainda mais porque ele nunca aprendera a vê-lo como algo de beleza especial; e, portanto, ele atuava nos seus sentidos sem interferência. A terra e o céu davam a impressão de terem sido recém-lavados. Os campos pardos chegavam a parecer apetitosos, e os cobertos de capim realçavam as curvas dos pequenos montes como o pelo bem tosado realça as formas de um cavalo.
O céu parecia estar ainda mais distante do que de costume, mas também mais límpido, tanto que as longas raias esguias de nuvens (de uma cor escura de ardósia em contraste com o azul lavado) apresentavam um contorno nítido, como se tivesse sido recortado em papelão. Cada pequeno bosque estava negro e eriçado como uma escova de cabelo; e, quando o carro parou em Cure Hardy, o silêncio que se seguiu ao desligar do motor estava repleto do barulho de gralhas que pareciam gritar “Acordem! Acordem!”.
– Barulheira danada que essas aves fazem – disse Cosser. – Trouxe seu mapa? Agora… – Ele mergulhou direto no trabalho.
Eles caminharam pelo lugarejo por cerca de duas horas e viram com os próprios olhos todos os abusos e anacronismos que iriam destruir. Viram o trabalhador recalcitrante e retrógrado, e ouviram suas opiniões sobre o clima. Conheceram o pobre sustentado perdulariamente, na pessoa de um velho que arrastava os pés para atravessar o pátio do asilo de indigentes para encher uma chaleira, bem como a idosa que vivia de rendas (para piorar a situação, ela estava com um cachorro gordo e velho) numa conversa séria com o carteiro. Mark teve a impressão de que estava de férias, pois só durante as férias é que perambulava por um lugarejo inglês. Por esse motivo, sentia prazer. Não lhe escapou que o rosto do trabalhador retrógrado era bem mais interessante que o de Cosser, e que sua voz era muito mais agradável ao ouvido. A semelhança entre a idosa que vivia de rendas e tia Gilly – quando tinha pensado nela pela última vez? Deus do céu, como isso trazia de volta o passado – fez que entendesse como era possível gostar daquele tipo de pessoa. Nada disso influenciava suas convicções sociológicas. Mesmo que não tivesse nenhum compromisso com Belbury e fosse totalmente desprovido de ambição, isso não poderia ter acontecido, pois sua formação tivera o curioso efeito de tornar mais reais as coisas que ele lia e escrevia do que as coisas que ele via. Estatísticas sobre trabalhadores agrícolas eram a substância; qualquer cavador de valas, lavrador ou peão era a sombra. Embora nunca tivesse percebido por si mesmo, Mark tinha enorme relutância, nos seus trabalhos, em usar palavras como “homem” ou “mulher”. Ele preferia escrever sobre “grupos vocacionais”, “elementos”, “classes” e “populações”. Pois, a seu modo, com a mesma firmeza de qualquer místico, ele acreditava na realidade superior das coisas que não são vistas.
E, no entanto, ele não conseguia deixar de gostar bastante daquele lugarejo.
Quando, à uma hora, ele persuadiu Cosser a entrar no Dois Sinos, chegou até a dizer isso. Os dois haviam levado sanduíches, mas Mark achou que gostaria de tomar uma cerveja. No interior do Dois Sinos, estava muito quente e escuro, porque a janela era pequena. Dois trabalhadores (sem dúvida recalcitrantes e retrógrados) estavam sentados com canecos de cerâmica junto dos cotovelos, mastigando sanduíches muito grossos, e um terceiro estava em pé junto do balcão, conversando com o estalajadeiro.
– Cerveja para mim, não, obrigado – disse Cosser –, e não vamos querer perder muito tempo aqui. O que você estava dizendo?
– Eu estava dizendo que, numa bela manhã, há algo de encantador num lugar como este, apesar de todos os seus óbvios absurdos.
– É, é mesmo uma bela manhã. Faz uma diferença de verdade para a saúde da gente, um pouco de sol.
– Eu estava pensando no lugar.
– Você está se referindo a isto aqui? – disse Cosser, relanceando o olhar pela sala. – Eu teria imaginado que esse era exatamente o tipo de coisa de que queríamos nos livrar. Sem sol, sem ventilação. Eu mesmo não vejo muita graça em beber (li o Relatório Miller), mas, se as pessoas precisam ter seus estimulantes, eu gostaria de vê-los administrados de um modo mais higiênico.
– Não sei se os estimulantes são realmente o caso – disse Mark, olhando para a cerveja. Toda a cena estava fazendo que se lembrasse de bebidas e conversas de muito tempo atrás: de risos e discussões nos tempos de faculdade. De algum modo, naquela época era mais fácil fazer amigos. Ele se perguntou o que teria acontecido com toda aquela turma… Carey, Wadsden e Denniston, que quase tinha conseguido sua própria bolsa de pesquisa.
– Não sei, tenho certeza – disse Cosser, em resposta ao seu último comentário. – A nutrição não é minha matéria. Você vai precisar perguntar a Stock sobre isso.
– O que estou pensando realmente – disse Mark – não é neste bar, mas no lugarejo inteiro. É claro que você está com toda a razão: esse tipo de coisa tem de acabar. Mas tinha seu lado agradável. Vamos precisar ter cuidado para que, não importa o que venhamos a construir no lugar, realmente consiga ser melhor sob todos os aspectos, não apenas na eficiência.
– Ah, a arquitetura e tudo o mais – disse Cosser. – Bem, essa não é minha especialidade, sabe? É mais para alguém como Wither. Você já terminou?
De imediato ocorreu a Mark que aquele homenzinho era um tremendo dum chato, e no mesmo instante ele sentiu total repugnância pelo Inec. Mas ele se lembrou de que não podia esperar estar no grupo interessante logo de cara. Haveria coisas melhores mais para a frente. Em todo caso, Mark não tinha eliminado a possibilidade de voltar atrás. Talvez desistisse da história toda e voltasse para Bracton dentro de um dia ou dois. Porém não de imediato. Seria sensato ficar ali um pouco para ver como as coisas se desenrolavam.
No caminho de volta, Cosser deixou-o perto da estação de Edgestow; e, enquanto ia a pé para casa, Mark começou a pensar no que diria a Jane acerca de Belbury. Você estaria muito enganado se pensasse que Mark tinha consciência de estar inventando uma mentira. Quase involuntariamente, quando surgiu na cabeça dele a imagem de si mesmo entrando no apartamento, e do rosto questionador de Jane, surgiu também a imaginação da sua própria voz respondendo a ela, descrevendo em detalhes as características importantes de Belbury em frases divertidas, confiantes. Aquele discurso imaginário expulsou da sua mente as verdadeiras experiências pelas quais tinha passado. Aquelas experiências reais de dúvidas e constrangimento aceleraram seu desejo de fazer boa figura aos olhos da mulher. Quase sem perceber, ele decidiu não mencionar o caso de Cure Hardy. Jane gostava de prédios antigos e todo esse tipo de coisa. Resultado: quando Jane, que naquele instante estava abrindo as cortinas, ouviu a porta abrir, olhou para trás e deu-se conta da chegada do marido, o que ela viu foi um Mark bastante animado e alegre. Sim, ele tinha quase certeza de ter conseguido o emprego. O salário não estava totalmente definido, mas ele ia entrar no assunto no dia seguinte. Era um lugar muito engraçado: tudo isso ele explicaria depois. No entanto, já tinha conhecido as pessoas importantes por lá. Wither e a senhorita Hardcastle eram as pessoas que importavam.
– Preciso lhe falar dessa tal Hardcastle – disse ele. – Ela é incrível.
Jane teve de decidir o que contar a Mark muito mais rápido do que ele decidiu o que dizer a ela. E ela resolveu não dizer nada sobre os sonhos ou sobre St. Anne’s. Os homens detestavam as mulheres que tinham qualquer problema, principalmente problemas raros, esquisitos. Foi fácil cumprir sua resolução, pois Mark, envolvido com sua própria história, não lhe fez perguntas. Talvez ela não estivesse totalmente convencida a respeito do que ele dizia. Todos os detalhes eram meio vagos.
Bem cedo na conversa, ela fez uma pergunta com uma voz aguda, assustada (ela não fazia ideia de como aquela voz o desagradava).
– Mark, você não renunciou à bolsa de pesquisa em Bracton?
– Não, é claro que não – disse ele e continuou a falar. Ela escutava somente com metade da atenção. Sabia que ele costumava ter ideias de grandeza, e alguma coisa no seu rosto fez que ela supusesse que durante sua ausência ele teria bebido muito mais do que de costume. E assim, até a hora de dormir, o pássaro macho exibiu sua plumagem, e a fêmea representou seu papel, fez perguntas, riu e simulou mais interesse do que sentia. Ambos eram jovens; e, se nenhum dos dois tinha muito amor pelo outro, cada um ainda estava ansioso por ser admirado.
Naquela noite o corpo docente de Bracton estava sentado na sala de refeições com o vinho e a sobremesa. O hábito de usar traje a rigor para jantar fora abandonado como medida de economia durante a guerra, e a prática ainda não tinha sido retomada, portanto os paletós esporte e os cardigãs pareciam contrastar com os escuros lambris da época de Jaime I, com a luz de velas e a prataria de muitos períodos diferentes. Feverstone e Curry estavam sentados juntos. Até aquela noite, por cerca de trezentos anos, aquela sala de refeições tinha sido um dos lugares tranquilos e agradáveis da Inglaterra. Ficava em Lady Alice, no térreo abaixo do Soler, e as janelas na extremidade leste davam para o rio e para o Bosque de Bragdon, do outro lado de um pequeno terraço onde o corpo docente tinha o hábito de saborear a sobremesa nas noites de verão. Àquela hora e na estação em que estavam, é claro que as janelas estavam fechadas e protegidas por cortinas. E de lá de fora vinham ruídos que nunca tinham sido ouvidos antes naquela sala: gritos e xingamentos, o barulho de caminhões passando pesados ou mudando de marcha com violência, o chocalhar de correntes, o zunido de perfuradeiras mecânicas, o clangor do ferro, apitos, baques surdos e uma vibração que a tudo invadia. Saeva sonare verbera, tum stridor ferri tractaeque catenae [soam os cruéis açoites, o estridor do ferro e as correntes arrastadas], como Glossop, sentado do outro lado da lareira, tinha comentado com Jewel. É que do lado de fora daquelas janelas, a não mais que trinta metros de distância, na outra margem do Wynd, já estava se realizando a passo acelerado a conversão de um antigo bosque num inferno de lama, barulho, aço e concreto. Alguns membros até mesmo do Elemento Progressista, aqueles cujos aposentos se situavam naquele lado da faculdade, já haviam se queixado. O próprio Curry ficara um pouco surpreso com a forma que seu sonho assumira agora que tinha se tornado realidade, mas ele estava fazendo o possível para enfrentar a situação sem demonstrar constrangimento, e, apesar de sua conversa com Feverstone precisar ser conduzida a plenos pulmões, ele não fez alusão a esse inconveniente.
– Então está decidido – berrou ele – que o jovem Studdock não volta para cá?
– Ah, totalmente – gritou Feverstone. – Ele mandou uma mensagem através de um alto funcionário para me pedir que transmitisse a informação à faculdade.
– Quando ele vai enviar um pedido formal de demissão?
– Não tenho a menor ideia! Como todos esses jovens, ele é muito despreocupado com essas coisas. Por sinal, quanto mais ele demorar, melhor.
– Você quer dizer que o atraso nos dá a oportunidade de dar uma boa olhada por aí?
– Exatamente. Veja bem, nada precisa chegar ao conhecimento da faculdade enquanto ele não escrever. O que se quer é ter toda a questão do sucessor resolvida antes.
– É óbvio. É importantíssimo. Uma vez que se apresente uma questão aberta a toda essa gente que não compreende o campo e não conhece o próprio pensamento, qualquer coisa pode acontecer.
– Exato. É isso o que queremos evitar. A única forma de administrar um lugar como este é apresentar seu candidato, tirar o coelho da cartola, dois minutos depois de anunciar a vaga.
– Precisamos começar a pensar nisso de uma vez.
– O sucessor precisa ser um sociólogo? Quer dizer, a bolsa de pesquisa está vinculada à matéria?
– Ah, de modo algum. É uma daquelas bolsas Paston. Por quê? Você tinha em mente alguma disciplina?
– Faz muito tempo que não temos ninguém em política.
– Hum, é verdade. Ainda existe um preconceito considerável contra a política como disciplina acadêmica. Veja bem, Feverstone, não deveríamos dar um apoio a essa nova disciplina?
– Qual nova disciplina?
– A pragmatometria.
– Ora, ora, engraçado você dizer isso, porque o homem em quem eu estava começando a pensar é um político que também vem se interessando muito pela pragmatometria. Podemos chamá-la de bolsa de pragmatometria social, ou alguma coisa parecida.
– Quem é o homem?
– Laird, de Leicester, Cambridge.
Foi uma reação automática de Curry parecer muito pensativo, se bem que nunca tivesse ouvido falar de Laird.
– Ah, Laird – disse ele. – Só me repasse alguns detalhes da carreira acadêmica dele.
– Bem – disse Feverstone –, como você se lembra, ele não estava bem de saúde por ocasião dos exames finais e saiu-se muito mal. A aplicação de exames em Cambridge está tão horrível hoje em dia que dificilmente essa nota é levada em conta. Todos sabiam que ele foi um dos mais brilhantes do seu ano. Foi presidente de The Sphinxes e editava The Adult [O Adulto]. David Laird, sabe?
– É. Claro. David Laird. Mas ouça o que digo, Dick…
– … Sim?
– Não me agrada muito essa nota baixa. É claro que, tanto quanto você, não atribuo nenhum valor supersticioso a resultados de exames. Mesmo assim, recentemente fizemos uma ou duas escolhas infelizes. – Ao dizer isso, quase involuntariamente Curry olhou de relance para o outro lado da sala, onde Pelham estava sentado. Pelham, com sua boquinha semelhante a um botão e sua cara de lua. Pelham era um homem confiável; mas até mesmo Curry tinha dificuldade para se lembrar de qualquer coisa que Pelham tivesse feito ou dito.
– É, eu sei – disse Feverstone –, mas mesmo nossas piores escolhas não são tão obtusas quanto as que a faculdade faz quando a deixamos à vontade.
Talvez porque o barulho insuportável tivesse lhe dado nos nervos, Curry sentiu uma dúvida momentânea sobre a “obtusidade” daqueles intrusos. Recentemente tinha jantado em Northumberland e encontrara Telford lá na mesma noite. O contraste entre o Telford alerta e espirituoso que todos em Northumberland pareciam conhecer, a quem todos davam ouvidos, e o Telford “obtuso” na sala de refeições de Bracton o deixara perplexo. Seria possível que os silêncios de todos aqueles “intrusos” na faculdade, suas respostas monossilábicas quando ele lhes dirigia a palavra com ar de superioridade e seus rostos inexpressivos quando ele adotava seu tom confidencial tinham uma explicação que nunca lhe ocorrera? A fantástica sugestão de que ele, Curry, talvez fosse um chato passou por sua cabeça tão velozmente que daí a um segundo ele já a esquecera para sempre. A sugestão muito menos dolorosa de que aqueles tradicionalistas e ratos de biblioteca ousavam menosprezá-lo foi mantida. Feverstone estava gritando novamente para ele.
– Vou a Cambridge na semana que vem – disse ele. – Na realidade, vou dar um jantar. Eu preferia que isso não fosse mencionado aqui, porque pode ser que o primeiro-ministro compareça, e um ou dois representantes dos grandes jornais, assim como Tony Dew. Como? Ah, é claro que você conhece Tony. Aquele moreninho do banco. Laird estará lá. Parece que ele é primo do primeiro-ministro. Eu estava me perguntando se você poderia vir jantar conosco. Sei que David está louco para conhecê-lo. Ouviu falar muito de você por intermédio de algum sujeito que assistia às suas aulas. Não consigo me lembrar do nome.
– Bem, seria muito difícil. Vai depender de quando será o enterro do velho Bill. É claro que eu precisaria estar aqui para o enterro. Houve alguma coisa sobre a investigação no noticiário das seis horas?
– Não ouvi. Mas é claro que isso levanta uma segunda questão. Agora que o Nevasca foi soprar num mundo melhor, temos dois lugares vagos.
– Não estou ouvindo – berrou Curry. – O barulho está mais forte? Ou sou eu que estou ficando surdo?
– Ouça, subdiretor – gritou Brizeacre, do outro lado de Feverstone –, o que seus amigos estão aprontando lá fora?
– Eles não conseguem trabalhar sem gritar? – perguntou outra pessoa.
– Para mim, não está parecendo trabalho de modo algum – disse um terceiro.
– Prestem atenção! – disse Glossop, de repente. – Não estão trabalhando. Ouçam os passos. É mais como um jogo de rúgbi.
– Está piorando a cada instante – disse Raynor.
No momento seguinte, quase todos na sala estavam de pé.
– Que foi isso? – gritou um deles.
– Estão assassinando alguém – disse Glossop. – Só existe um jeito de fazer um som desses sair da garganta de um homem.
– Aonde você está indo? – perguntou Curry.
– Vou ver o que está acontecendo – disse Glossop. – Curry, vá reunir todos os da faculdade que souberem atirar. Alguém ligue para a polícia.
– Se eu fosse você, não sairia – disse Feverstone, que tinha permanecido sentado e estava se servindo de mais um copo de vinho. – Parece que a polícia, ou coisa semelhante, já está lá.
– Como assim?
– Escute. Aí!
– Achei que isso fosse a maldita britadeira.
– Escute!
– Meu Deus… você acha mesmo que é uma metralhadora?
– Cuidado! Cuidado! – disseram umas dez vozes de uma vez, quando se tornou audível um estilhaçamento de vidro, e uma saraivada de pedras caiu no assoalho da sala de refeições. Dali a um instante, alguns professores correram para as janelas para fechar as folhas de madeira. E então todos ficaram parados olhando assustados uns para os outros, em silêncio a não ser pela respiração pesada. Glossop estava com um corte na testa, e no chão estavam os fragmentos daquela famosa janela para o leste na qual Henrieta Maria um dia gravara seu nome com um diamante.