9
– Foi o pior sonho que tive até agora – disse Jane, na manhã do dia seguinte. Ela estava sentada na Sala Azul, com o diretor e Grace Ironwood.
– É – disse o diretor. – O seu talvez seja o posto mais difícil até a luta começar de verdade.
– Sonhei que estava num quarto escuro – disse Jane – com cheiros esquisitos e uma espécie de zumbido baixo. Então, a luz foi acesa, mas não muita luz; e por um bom tempo não me dei conta daquilo que eu estava contemplando. E quando consegui entender… eu teria acordado, se não tivesse feito um enorme esforço para não acordar. Achei que vi um rosto, flutuando diante de mim. Um rosto, não uma cabeça, se vocês entendem o que quero dizer. Ou seja, havia uma barba, nariz e olhos… no mínimo, não se podiam ver os olhos porque o rosto estava com óculos escuros, mas parecia que não havia nada acima dos olhos. Não de início. Mas, à medida que me acostumei com a luz, tive um choque horrível. Achei que o rosto era uma máscara amarrada sobre algum tipo de balão. Só que não era exatamente isso. Talvez parecesse um pouco com um homem usando algum tipo de turbante… Estou contando isso terrivelmente mal. Na verdade era uma cabeça (o resto de uma cabeça) da qual tinha sido removida a parte superior do crânio e então… então… como se alguma coisa ali dentro tivesse fervido e transbordado. Uma enorme massa que saía volumosa do que restava do crânio. Enrolada em algum tipo de material sintético, mas muito fino. Dava para ver que a coisa tremia. Mesmo apavorada, eu me lembro de pensar “Ah, matem a criatura, matem-na. Acabem com essa dor.” Mas foi só por um segundo, porque achei que a coisa era real, mesmo. Ela parecia verde, e a boca estava escancarada e totalmente seca. Percebam que fiquei muito tempo olhando para aquilo, antes que qualquer outra coisa acontecesse. E logo eu vi que ela não estava exatamente flutuando. Estava fixada em algum tipo de console, prateleira ou pedestal… não sei bem o quê, e havia coisas penduradas nela. No pescoço, quer dizer. É, ela tinha pescoço e uma espécie de gola em volta, mas nada abaixo da gola, nem ombros, nem corpo. Só essas coisas penduradas. No sonho, achei que fosse algum tipo de novo homem que tivesse somente cabeça e vísceras. Achei que todos aqueles tubos fossem suas entranhas. Mas com o tempo, não sei bem como, vi que eram artificiais. Pequenas ampolas e tubos de borracha, bem como umas coisinhas de metal. Eu não conseguia entender. Todos os tubos entravam na parede. E então, por fim, aconteceu alguma coisa.
– Você está bem, Jane, não está? – disse a senhorita Ironwood.
– Estou, sim – disse Jane –, na medida do possível. É só que não se tem vontade de contar isso. Bem, muito de repente, como quando se dá partida num motor, saiu daquela boca uma baforada de ar, com um som áspero, duro e seco. E daí veio mais uma, e a coisa se acomodou numa espécie de ritmo, puf, puf, puf, como uma imitação de respiração. E então aconteceu uma coisa horrenda: a boca começou a babar. Sei que parece bobagem, mas de certo modo senti pena da criatura porque ela não tinha mãos e não podia limpar a boca. Parece um detalhe pequeno, em comparação com todo o resto, mas foi assim que me senti. Depois ela começou a movimentar a boca e até a lamber os lábios. Era como alguém preparando uma máquina para entrar em funcionamento. Vê-la fazendo aquilo exatamente como se estivesse viva, e ao mesmo tempo babando sobre a barba que estava toda dura e com aparência de morta… Então três pessoas entraram no local, todas vestidas de branco, com máscaras no rosto, andando com cuidado como gatos no alto de um muro. Um era um homem gordo e enorme, outro era magricela e ossudo. O terceiro… – a esta altura Jane fez uma pausa involuntária. – O terceiro… acho que era Mark… quer dizer, meu marido.
– Você não tem certeza? – perguntou o diretor.
– Tenho – disse Jane. – Era Mark. Reconheci seu jeito de andar. E reconheci os sapatos que estava usando. E sua voz. Era Mark.
– Que pena – disse o diretor.
– E então – disse Jane –, eles três deram a volta e se postaram diante da Cabeça. Fizeram uma reverência para ela. Não dava para dizer se ela estava olhando para eles, por causa dos óculos escuros. Ela continuou com aqueles bufos ritmados. E então ela falou.
– Em inglês? – disse Grace Ironwood.
– Não, em francês.
– O que ela disse?
– Bem, meu francês não foi bom o suficiente para acompanhar o que foi dito. A Cabeça falava de um modo estranho. Aos trancos, como um homem que está sem fôlego. Sem expressão adequada. E é claro que ela não podia se virar para lá e para cá, como uma pessoa de verdade faz.
O diretor falou novamente.
– Você entendeu alguma coisa do que foi dito?
– Não muita coisa. Parecia que o gordo estava lhe apresentando Mark. Ela lhe disse alguma coisa. Então Mark tentou responder. Eu pude acompanhar o que ele disse muito bem: o francês dele não é muito melhor que o meu.
– O que ele disse?
– Ele disse alguma coisa sobre “fazer dentro de alguns dias se fosse possível”.
– Só isso?
– Praticamente. Entendam que Mark não conseguia tolerar aquilo. Eu sabia que ele não seria capaz. Lembro-me de que no sonho eu, estupidamente, queria falar para ele. Eu via que ele ia cair. Acho que tentei gritar para os outros dois “Ele vai cair”. Mas é claro que não consegui. Além disso, ele estava passando mal. E então eles o tiraram da sala.
Todos os três ficaram em silêncio por alguns segundos.
– Foi só isso? – disse a senhorita Ironwood.
– Foi – disse Jane. – Só me lembro disso. E então acordei.
O diretor respirou fundo.
– Bem – disse ele, olhando de relance para a senhorita Ironwood –, cada vez está mais claro. Precisamos convocar uma reunião imediatamente. Todos estão aqui?
– Não. O doutor Dimble precisou ir a Edgestow, à faculdade, para receber alunos. Só vai voltar ao anoitecer.
– Então vamos realizar a reunião depois do jantar. Deixem tudo preparado. – Ele se calou por um momento e em seguida se virou para Jane. – Receio que isso seja muito ruim para você, minha cara – disse ele –, e pior para ele.
– Quer dizer para Mark, senhor? – O diretor fez que sim.
– Sim. Não pense mal dele. Ele está sofrendo. Se formos derrotados, todos nós cairemos com ele. Se vencermos, iremos salvá-lo. Ele não pode estar comprometido demais. – Ele fez uma pausa, sorriu e acrescentou: – Estamos perfeitamente acostumados a problemas com maridos por aqui, sabia? O marido da coitada da Ivy está preso.
– Preso?
– Está, sim, por furto. Mas é boa pessoa. Ele vai voltar a se acertar.
Embora Jane se horrorizasse, até o ponto de sentir náuseas, diante da visão (no sonho) dos verdadeiros colegas e do ambiente de Mark, seu horror tinha apresentado certa imponência e mistério. A súbita equiparação entre sua situação difícil e a de um preso comum fez seu sangue subir às bochechas. Ela nada disse.
– Mais uma coisa – continuou o diretor. – Você não deve me levar a mal se eu a excluir da nossa reunião de hoje à noite.
– É claro que não, senhor – disse Jane, na realidade levando muito a mal essa exclusão.
– Veja – disse ele –, MacPhee segue a linha de pensamento de que, se você ouvir coisas sendo comentadas, levará ideias sobre essas coisas para seus sonhos, e isso destruirá o valor denotativo que eles têm. E não é muito fácil refutar o que ele diz. Ele é nosso cético: função muito importante.
– Entendo perfeitamente – disse Jane.
– É claro que isso se aplica – disse o diretor – apenas a coisas que ainda não sabemos. Você não deve ouvir nossos palpites; não deve estar presente quando estivermos tentando decifrar as provas. Mas não guardaremos nenhum segredo de você sobre a história anterior da nossa família. Na realidade, o próprio MacPhee insiste em ser ele quem lhe contará tudo isso. Ele recearia que o relato de Grace, ou o meu, não fossem suficientemente objetivos.
– Entendo.
– Quero que você goste dele, se puder. É um dos meus amigos mais antigos. E ele será praticamente o melhor de nós, se formos derrotados. Você não poderia ter alguém melhor do seu lado, numa batalha perdida. O que ele vai fazer se vencermos, não posso imaginar.
Mark acordou na manhã do dia seguinte com a consciência de que sua cabeça doía toda, mas especialmente na nuca. Ele se lembrava de ter caído – foi assim que machucou a cabeça –, caído naquela outra sala, com Filostrato e Straik… e então, como diz um dos poetas, ele “descobriu na sua mente uma inflamação inchada e deformada, sua memória”. Ah, mas era impossível, não podia ser aceito nem por um instante: tinha sido um pesadelo, devia ser enxotado para longe, desaparecer de uma vez por todas agora que ele estava totalmente acordado. Era um absurdo. Uma vez, em delírio, ele tinha visto a parte dianteira de um cavalo, sozinha, sem o corpo nem as pernas traseiras, atravessando correndo um gramado. Achara ridículo no instante em que a viu, porém não menos horrível por isso. Esse era um absurdo da mesma ordem. Uma Cabeça sem um corpo abaixo dela. Uma Cabeça que podia falar, quando acionavam o ar e a saliva artificial com torneiras na outra sala. Sua própria cabeça começou a latejar tão forte que ele precisou parar de pensar.
No entanto, ele sabia que era verdade. E não conseguia, como eles diziam, “aceitar”. Sentia muita vergonha por isso, pois era seu desejo ser considerado durão. Mas a verdade era que sua dureza era somente da vontade, não dos nervos; e as virtudes que ele quase tinha conseguido banir da sua mente ainda viviam no seu corpo, embora apenas em termos negativos e como fraquezas. Ele aprovava a vivisseção, contudo jamais trabalhara numa sala de dissecação. Ele recomendava que certas classes de pessoas fossem gradualmente eliminadas; mas nunca tinha estado presente quando um pequeno comerciante ia para o asilo ou quando uma velha faminta, com cara de governanta, chegava ao seu último dia, última hora, último minuto no sótão gelado. Ele nada sabia da última meia xícara de chocolate tomada lentamente dez dias antes.
Enquanto isso, ele precisava se levantar. Precisava fazer alguma coisa a respeito de Jane. Parecia que ele teria de trazê-la para Belbury. Sua mente tinha tomado essa decisão por ele em algum momento do qual ele não se lembrava. Ele precisava apanhá-la, para salvar a própria vida. Todas as suas ansiedades quanto a pertencer ao Círculo Mais Fechado ou a conseguir um emprego tinham se reduzido à insignificância. Tratava-se de uma questão de vida ou morte. Eles o matariam se ele os contrariasse. Talvez o decapitassem… ai, meu Deus, se ao menos eles matassem de fato aquele pequeno e monstruoso naco de tortura; aquele naco provido de rosto, que eles mantinham ali, falando no seu suporte de aço. Todos os medos insignificantes em Belbury – pois ele agora sabia que todos, à exceção dos líderes, estavam sempre com medo – eram apenas emanações daquele medo central. Ele precisava apanhar Jane. Não ia lutar contra isso agora.
Deve-se relembrar que, na mente de Mark, praticamente nenhum fiapo de pensamentos nobres, fossem cristãos, fossem pagãos, tinha abrigo seguro. Sua formação não tinha sido nem científica nem clássica – meramente “moderna”. As severidades tanto da abstração como da alta tradição humana passaram por ele sem deixar marca. E ele não dispunha nem da astúcia do camponês, nem da honra do aristocrata para ajudá-lo. Era um dois de paus, com fácil desempenho em provas que não exigiam nenhum conhecimento específico (sempre tinha se saído bem em redações e dissertações gerais), e a primeira insinuação de uma ameaça à sua vida corpórea o estatelou no chão. E sua cabeça doía tanto, e ele estava se sentindo tão mal… Felizmente, ele mantinha uma garrafa de uísque no quarto. Uma dose pura permitiu que fizesse a barba e se vestisse.
Ele se atrasou para o desjejum, mas isso não fez muita diferença porque não conseguiu comer. Tomou algumas xícaras de café preto e foi para o escritório. Ali ele ficou sentado muito tempo, fazendo desenhos no mata-borrão. Agora que havia chegado a hora de escrever a carta para Jane, a tarefa estava se revelando quase impossível. E por que eles queriam Jane? Medos indefinidos se agitavam na sua cabeça. E logo Jane! Eles a levariam ao Cabeça? Quase pela primeira vez na sua vida, um vislumbre de algo semelhante ao amor desinteressado entrou na sua mente. Ele desejou nunca ter se casado com ela; nunca tê-la arrastado para toda aquela organização de horrores que, aparentemente, haveria de ser sua vida.
– Olá, Studdock! – disse uma voz. – Escrevendo para a mulherzinha, hein?
– Droga! – disse Mark. – Você me fez deixar cair minha caneta.
– Trate de apanhá-la, filhinho – disse a senhorita Hardcastle, sentando-se sobre a mesa. Mark obedeceu e então ficou imóvel, sem levantar o olhar para ela. Desde o tempo em que tinha sido perseguido pelos colegas na escola, ele não experimentava o que era odiar e temer alguém com todos os nervos do seu corpo, como agora odiava e temia aquela mulher.
– Tenho más notícias para você, filhinho – disse ela, por fim.
Seu coração teve um sobressalto.
– Seja homem, Studdock – disse a Fada.
– O que é?
Ela não respondeu de imediato, e ele soube que ela o estava examinando, observando como o instrumento reagia ao seu toque.
– Estou preocupada com a mulherzinha, e essa é a pura verdade – disse ela, finalmente.
– O que você está querendo dizer? – perguntou Mark, bruscamente, desta vez olhando para ela. O charuto entre os dentes ainda estava apagado, mas ela tinha chegado ao ponto de apanhar os fósforos.
– Fui procurá-la – disse a senhorita Hardcastle –, tudo por sua causa, também. Achei que Edgestow não era um lugar muito saudável para ela estar no momento.
– Qual é o problema com ela? – gritou Mark.
– Ssh! – fez a senhorita Hardcastle. – Você não quer que todos ouçam.
– Você não pode me dizer qual é o problema?
Ela esperou alguns segundos antes de responder.
– Até que ponto você conhece a família dela, Studdock?
– Conheço muito. O que a família tem que ver com isso?
– Nada… estranho… dos dois lados?
– Diacho, o que você está querendo dizer?
– Não seja grosso, benzinho. Estou fazendo tudo o que posso por você. É só que… bem, achei que ela estava se comportando de um jeito muito esquisito quando a vi.
Mark lembrava-se bem da conversa que tinha tido com a mulher na manhã em que viera para Belbury. Uma nova pontada de medo o fisgou. Será que aquela mulher detestável podia estar falando a verdade?
– O que ela disse? – perguntou ele.
– Se ela tiver qualquer problema no que diz respeito a esse aspecto – disse a Fada –, aceite meu conselho, Studdock, e traga-a para cá imediatamente. Aqui ela receberá o tratamento correto.
– Você ainda não me contou o que ela disse ou fez.
– Eu não gostaria que ninguém ligado a mim fosse jogado no hospício de Edgestow. Especialmente agora que estamos obtendo nossos poderes de emergência. Eles vão usar os pacientes comuns para fazer experiências, sabia? Ao passo que, se você simplesmente assinar este formulário, eu dou uma corrida lá depois do almoço, e ela estará aqui já ao anoitecer.
Mark jogou a caneta sobre a escrivaninha.
– Não vou fazer nada disso. Principalmente porque você não me passou a menor noção do que está errado com ela.
– É o que venho tentando fazer, mas você não me deixa. Ela não parava de falar em alguém que tinha arrombado seu apartamento, ou que a tinha encontrado na estação (não deu para descobrir qual das duas opções) e a tinha queimado com charutos. Então, por extrema infelicidade, ela percebeu meu charuto; e, se dá para acreditar, ela me identificou com esse perseguidor imaginário. É claro que depois disso não pude fazer mais nada de bom.
– Preciso ir à minha casa imediatamente – disse Mark, levantando-se.
– Ei… epa! Você não pode fazer isso – disse a Fada, também se levantando.
– Não posso ir à minha casa? É o que tenho de fazer, se tudo isso for verdade.
– Não seja tolo, queridinho – disse a senhorita Hardcastle. – Confie em mim! Sei do que estou falando. Você já está numa posição danada de perigosa. Vai praticamente se destruir, caso se ausente agora sem permissão. Mande-me no seu lugar. Assine o documento. É a forma racional de agir.
– Mas um instante atrás você disse que Jane não conseguia suportá-la por nada neste mundo.
– Ah, isso não faria nenhuma diferença. É claro que seria mais fácil se ela não tivesse adquirido essa aversão por mim. Veja bem, Studdock, você não acha que a mulherzinha possa estar com ciúme, acha?
– Ciúme? De você? – disse Mark, com uma repugnância incontrolável.
– Aonde você está indo? – perguntou a Fada, com rispidez.
– Falar com o VD e depois vou à minha casa.
– Pare. Você não vai fazer isso a menos que queira me tornar sua inimiga para sempre… e permita-me lhe dizer que você não está em condições de arrumar muitos inimigos a mais.
– Ora, vá para o inferno – disse Mark.
– Volte aqui, Studdock – gritou a Fada. – Espere! Não seja um completo idiota. – Mas Mark já estava no saguão. Por enquanto, tudo parecia ter se tornado claro. Ele teria uma palavrinha com Wither, não para pedir licença, e sim para avisar que precisava ir imediatamente para sua casa, porque sua mulher estava doente, correndo perigo; ele sairia da sala antes que Wither pudesse responder… e depois partiria. O futuro mais adiante era vago, porém isso parecia não ter importância. Ele pôs o casaco e o chapéu, subiu correndo a escada e bateu à porta do escritório do vice-diretor.
Não houve resposta. Mark então percebeu que a porta não estava totalmente fechada. Ele se arriscou a empurrá-la mais um pouco e viu o vice-diretor sentado ali dentro, de costas para a porta.
– Com licença – disse Mark. – Eu poderia falar alguns minutos com o senhor? – Não houve resposta. – Com licença, senhor – disse Mark, com a voz mais alta, mas o vulto nem falou nem se mexeu. Com alguma hesitação, Mark entrou na sala e deu a volta até o outro lado da escrivaninha; no entanto, quando se virou para olhar para Wither, ele prendeu a respiração, pois achou que estava olhando para o rosto de um cadáver. Daí a um instante, reconheceu seu erro. No silêncio da sala, ele podia ouvir a respiração do homem. Ele nem mesmo estava dormindo, já que seus olhos estavam abertos. Não estava inconsciente, porque seus olhos pousaram momentaneamente em Mark e depois se desviaram. – Peço desculpas, senhor – começou Mark e parou. O vice-diretor não estava escutando. Ele estava tão longe de escutar, que Mark sentiu uma dúvida louca se ele estava realmente ali, se a alma do vice-diretor não estava flutuando ao longe, espalhando-se e dissipando-se como um gás, através de mundos amorfos e sem luz, terras devastadas e quartos de despejo do universo. O que aqueles olhos pálidos, aquosos, transmitiam era, em certo sentido, o infinito: o que não tem forma e o interminável. A sala estava fria e em silêncio. Não havia relógio, e o fogo tinha se apagado. Era impossível falar com um rosto como aquele. Contudo, também parecia impossível sair do recinto, uma vez que o homem o tinha visto. Mark sentiu medo; era tudo tão diferente de qualquer experiência por que ele já tivesse passado.
Quando por fim o senhor Wither falou, seus olhos não estavam fixos em Mark, mas em algum ponto remoto para além dele, para além da janela, talvez no céu.
– Sei de quem se trata – disse Wither. – Seu nome é Studdock. O que o senhor pretende entrando aqui? Teria sido melhor se tivesse ficado lá fora. Vá embora.
Foi nesse momento que a coragem de Mark irrompeu. Todos os medos que vinham se acumulando lentamente ao longo dos últimos dias se uniram numa determinação fixa; e, alguns segundos depois, ele estava descendo a escada de três em três degraus. E então estava atravessando o saguão. E então estava fora da casa, descendo pela entrada de carros. Mais uma vez, seu percurso imediato parecia perfeitamente claro para ele. Do outro lado da entrada havia um grosso cinturão de árvores, cortado por um caminho gramado. Esse caminho em meia hora o levaria a Courthampton, de onde ele poderia pegar um ônibus rural até Edgestow. Quanto ao futuro, ele não pensava. Somente duas coisas tinham importância: em primeiro lugar, sair daquela casa; e, em segundo, voltar para Jane. Estava sendo devorado por um anseio por Jane, que era físico sem ser absolutamente sensual, como se o alívio e a firmeza moral fluíssem do corpo dela, como se a pele dela fosse limpar toda a imundície que parecia estar suspensa em torno dele. A ideia de que ela pudesse estar louca tinha desaparecido da sua mente. E ele ainda era jovem o suficiente para descrer da desgraça. Ele não conseguia se livrar totalmente da crença de que, se ao menos tentasse escapar, a rede de algum modo se romperia, o céu se desanuviaria, e tudo terminaria com Jane e Mark tomando chá juntos, como se nada daquilo tivesse acontecido.
Ele já estava fora do terreno. Estava atravessando a estrada. Tinha entrado no cinturão de árvores. De repente, parou. Estava acontecendo uma coisa impossível. Havia um vulto diante dele no caminho: um vulto alto, muito alto, ligeiramente encurvado, que perambulava e cantarolava uma melodia lúgubre – o vice-diretor em pessoa. E num instante toda aquela intrepidez precária sumiu do ânimo de Mark. Ele deu meia-volta. Parou na estrada. Aquela lhe pareceu a pior dor que ele jamais tinha sentido. E então, cansado, tão cansado que sentia as lágrimas fracas encherem seus olhos, ele voltou para Belbury a passos muito lentos.
O senhor MacPhee tinha um quartinho no térreo do Solar, que ele chamava de seu escritório e no qual ele não admitia a presença de nenhuma mulher, a não ser conduzida por ele mesmo. E, naquele apartamento bem organizado, porém empoeirado, ele estava sentado com Jane Studdock pouco antes do jantar naquela noite, depois de tê-la convidado para vir ali para lhe dar o que ele chamava de “um esboço sucinto e objetivo da situação”.
– Eu deveria esclarecer desde o início, senhora Studdock – disse ele –, que conheço o diretor há muitos e muitos anos; e que pela maior parte da sua vida ele foi filólogo. Eu mesmo não tenho certeza de que a filologia possa ser considerada uma ciência exata, mas menciono o fato como um testemunho da sua capacidade intelectual em geral. E, para não prejulgar nenhuma questão, não direi, como diria numa conversa normal, que ele sempre foi um homem do que se poderia chamar de pendor imaginativo. Originalmente, ele se chamava Ransom.
– Não o Ransom de Dialeto e semântica? – perguntou Jane.
– Sim. Ele mesmo – disse MacPhee. – Bem, há cerca de seis anos… tenho todas as datas num livrinho ali, mas no momento isso não nos interessa… ocorreu seu primeiro desaparecimento. Ele sumiu, sem deixar vestígios, por cerca de nove meses. Achei que era muito provável que tivesse se afogado numa banheira ou algo semelhante. E aí, um dia, não é que ele aparece novamente nos seus aposentos em Cambridge, adoece e fica internado no hospital por mais três meses? E ele se recusava a dizer onde tinha estado, a não ser em particular para alguns amigos.
– E daí? – disse Jane, ansiosa.
– Ele disse – respondeu MacPhee, pegando sua caixa de rapé e pondo enorme ênfase na palavra disse –, ele disse que tinha ido ao planeta Marte.
– Quer dizer que ele disse isso… enquanto estava doente?
– Não, não. Ele ainda diz a mesma coisa. Entenda como quiser. Essa é a história dele.
– Eu acredito – disse Jane.
MacPhee escolheu uma pitada de rapé com tanto cuidado, como se aquelas partículas específicas fossem diferentes de todas as outras na caixa, e falou antes de levá-las às narinas.
– Estou lhe contando os fatos – completou ele. – Ele nos disse que tinha ido a Marte, sequestrado pelo professor Weston e pelo senhor Devine: lorde Feverstone, como é conhecido agora. E, de acordo com seu relato, escapou deles, em Marte, entenda bem, e esteve perambulando por lá sozinho por um tempo. Sozinho.
– É desabitado, suponho.
– Não temos nenhuma comprovação quanto a isso, a não ser a história dele. A senhora sem dúvida tem conhecimento, senhora Studdock, de que um homem em total solidão, mesmo nesta nossa terra, um explorador, por exemplo, entra em estados extraordinários de consciência. Já me disseram que um homem poderia chegar a se esquecer da própria identidade.
– Quer dizer que ele poderia ter imaginado coisas em Marte que não estavam lá?
– Não estou fazendo nenhum comentário – disse MacPhee. – Estou apenas registrando. Segundo o relato dele, há todos os tipos de criatura andando por lá. Pode ser que seja por isso que ele transformou a casa numa espécie de coleção de animais, porém isso não tem importância. Mas ele também diz que conheceu lá um tipo de criatura que nos interessa especialmente neste momento. Ele os chamou de eldila.
– Uma espécie de animal, é isso o que quer dizer?
– Senhora Studdock, já tentou alguma vez definir a palavra “animal”?
– Não que eu me lembre. O que eu quis dizer foi, esses seres eram… bem… inteligentes? Eles falavam?
– Sim. Eles falavam. Além disso, eram inteligentes, o que nem sempre é a mesma coisa.
– De fato, esses eram os marcianos?
– É exatamente isso o que não eram, segundo o relato dele. Estavam em Marte, mas aquele não era seu lugar. Ele diz que se trata de criaturas que vivem no espaço vazio.
– Mas não há ar.
– Estou lhe transmitindo a história dele. Ele diz que esses seres não respiram. Diz também que eles não se reproduzem e não morrem. No entanto a senhora há de notar que, mesmo supondo que o resto da história esteja correto, essa última afirmação não poderia ser baseada em observações.
– E como é que eles são?
– O que estou lhe dizendo é como ele os descreveu.
– Quer dizer, qual é a aparência deles?
– Não estou exatamente preparado para responder a essa pergunta – disse MacPhee.
– Eles são extremamente imensos? – perguntou Jane quase involuntariamente.
MacPhee assoou o nariz e continuou.
– A questão, senhora Studdock é a seguinte: o doutor Ransom afirma ter recebido visitas repetidas desses seres desde que voltou para a Terra. Isso é o que tenho a dizer sobre seu primeiro desaparecimento. Depois veio o segundo. Ele esteve ausente por mais de um ano, e dessa vez disse que tinha estado no planeta Vênus… levado para lá por esses eldila.
– Vênus também é habitado por eles?
– Perdoe-me observar que esse comentário demonstra que a senhora não captou bem o que estou lhe dizendo. Esses seres não são de modo algum planetários. Supondo que existam, é preciso concebê-los como flutuando pela imensidão dos céus, se bem que possam pousar num planeta aqui e ali, como um pássaro pousa numa árvore, entende? Alguns, diz ele, estão vinculados em termos mais ou menos permanentes a planetas específicos, mas não são nativos desses planetas. São um tipo de coisa totalmente diferente.
Houve alguns segundos de silêncio, e então Jane fez uma pergunta.
– Imagino que sejam mais ou menos amistosos?
– Essa é sem dúvida a ideia do diretor sobre os seres, com uma importante exceção.
– E qual é essa?
– Os eldila que há muitos séculos se concentram no nosso próprio planeta. Parece que não tivemos absolutamente nenhuma sorte ao escolher nosso complemento particular de parasitas. E isso, senhora Studdock, me traz ao ponto principal.
Jane esperou. Era extraordinário como MacPhee quase neutralizava a estranheza do que estava lhe contando.
– Em poucas palavras – disse ele –, esta casa é dominada pelos seres de que estou falando ou por uma mera ilusão. É por conselhos que ele acredita ter recebido dos eldila que o diretor descobriu a conspiração contra a espécie humana; e ainda por cima é por meio de instruções dos eldila que ele está conduzindo a campanha… caso se possa chamar isso de “conduzir”! Pode ter lhe ocorrido a pergunta, senhora Studdock, de como qualquer homem sensato acha que vamos derrotar uma poderosa conspiração, parados aqui cultivando legumes de inverno e treinando ursos de circo. É uma questão que levantei em mais de uma ocasião. A resposta é sempre a mesma: estamos aguardando ordens.
– Dos eldila? Foi a eles que ele se referiu quando falou dos seus Mestres?
– Duvido que seja, embora ele não use essa palavra quando fala comigo.
– Mas, senhor MacPhee, eu não entendo. Achei que o senhor disse que os do nosso planeta eram hostis.
– Essa é uma dúvida muito boa – disse MacPhee –, mas não é com os nossos próprios que o diretor afirma estar em comunicação. É com seus amigos do espaço cósmico. Nossa tripulação, os eldila terrestres, estão por trás de toda a conspiração. A senhora deve nos imaginar, senhora Studdock, como habitantes de um mundo em que as classes criminosas dos eldila estabeleceram sua sede. E o que está acontecendo agora, se a visão do diretor estiver correta, é que a parentela respeitável deles está visitando este planeta para limpar o lugar.
– Quer dizer que os outros eldila de lá do espaço vêm aqui, a esta casa?
– É o que o diretor pensa.
– Mas o senhor deve saber se é verdade ou não.
– Como?
– O senhor já os viu?
– Essa não é uma questão a ser respondida com um sim ou um não. Já vi muita coisa nesta vida que não estava lá ou que não era o que estava dando a impressão de ser: arco-íris, reflexos e pores do sol, para não mencionar sonhos. E existe também a heterossugestão. Não negarei que observei nesta casa uma classe de fenômenos que ainda não pude explicar plenamente. Mas eles nunca ocorreram em um momento em que eu tivesse um caderno à mão ou qualquer equipamento para verificação.
– E ver não é acreditar?
– Pode ser… para crianças ou animais – disse MacPhee.
– Mas não para pessoas sensatas, é isso o que quer dizer?
– Meu tio, o doutor Duncanson – disse MacPhee, – cujo nome pode lhe ser familiar… foi moderador da Assembleia Geral no exílio, na Escócia… Ele costumava dizer: “Mostre-me na palavra de Deus.” E então ele batia na Bíblia enorme em cima da mesa. Era um jeito de calar as pessoas que o procuravam com baboseiras sobre experiências religiosas. E, levando em conta suas premissas, ele estava totalmente certo. Eu não sigo as ideias dele, senhora Studdock, entenda bem, mas trabalho segundo os mesmos princípios. Se qualquer coisa quiser que Andrew MacPhee acredite na sua existência, agradecerei se ela se apresentar à plena luz do dia, na presença de um número suficiente de testemunhas e se não se intimidar caso saquemos uma câmera ou um termômetro.
MacPhee contemplava a caixa de rapé, pensativo.
– Quer dizer que o senhor viu alguma coisa?
– Sim. Mas devemos manter a mente aberta. Poderia ser uma alucinação. Poderia ser ilusionismo…
– Por parte do diretor? – perguntou Jane, com raiva. O senhor MacPhee recorreu mais uma vez à sua caixa de rapé. – O senhor realmente espera que eu acredite que o diretor é esse tipo de pessoa? Um charlatão?
– Eu gostaria – disse MacPhee – que a senhora encontrasse um modo de examinar a questão sem o emprego constante de termos como “acreditar”. Obviamente, o ilusionismo é uma das hipóteses que qualquer investigador imparcial deveria levar em conta. O fato de ser uma hipótese especialmente incompatível com as emoções desse ou daquele investigador não vem ao caso. A menos que, talvez, seja uma razão a mais para ressaltar a hipótese em questão, simplesmente porque existe um forte perigo psicológico de negligenciá-la.
– Existe uma coisa que se chama lealdade – disse Jane. MacPhee, que estava fechando cuidadosamente a caixa de rapé, de repente olhou para ela cheio de radicalismo no olhar.
– Existe, senhora – disse ele. – À medida que for ficando mais velha, a senhora aprenderá que ela é uma virtude importante demais para ser desperdiçada em personalidades individuais.
Nesse momento, houve uma batida à porta.
– Pode entrar – disse MacPhee, e Camilla entrou.
– Já terminou com Jane, senhor MacPhee? – disse ela. – Ela prometeu sair comigo para respirar ar puro antes do jantar.
– Ai, ar puro, uma ova – disse MacPhee, com um gesto de desespero. – Muito bem, senhoras, muito bem. Saiam para o jardim. Duvido que estejam fazendo alguma coisa mais objetiva do lado do inimigo. Nesse ritmo, eles terão o país inteiro sob seu controle, antes que façamos um movimento.
– Quem dera o senhor lesse o poema que estou lendo – disse Camilla. – Pois ele diz num verso exatamente como me sinto acerca dessa espera: Tolo, tudo se encontra numa paixão de paciência, a lei do meu senhor.
– De onde é isso? – perguntou Jane.
– Taliessin através de Logres.
– É provável que o senhor MacPhee não aprove poeta algum, com exceção de Burns.
– Burns! – disse MacPhee, com profundo desdém, abrindo a gaveta da escrivaninha com uma força enorme e apresentando um formidável maço de folhas de papel. – Se vão ao jardim, senhoras, não deixem que eu as atrase.
– Ele estava lhe contando? – perguntou Camilla, enquanto as duas moças seguiam juntas pelo corredor. Levada por um tipo de impulso que era raro para sua experiência, Jane segurou a mão da amiga, ao responder que sim. Ambas estavam repletas de alguma paixão, mas que paixão elas não sabiam. Chegaram à porta da frente e, quando a abriram, seus olhos depararam com uma visão que, embora natural, parecia naquele momento apocalíptica.
O dia inteiro o vento tinha soprado, e elas se descobriram olhando para um céu quase limpo. O frio era intenso; as estrelas, severas e luminosas. Muito acima dos últimos farrapos de nuvens velozes, pairava a lua, com todo o seu aspecto selvagem: não a lua voluptuosa de milhares de canções de amor do sul; mas a caçadora, a virgem indomável, a ponta de lança da loucura. Se aquele satélite frio tivesse exatamente naquela hora se unido ao nosso planeta pela primeira vez, dificilmente ele poderia ter se parecido mais com um presságio. O ardor se insinuou pelo sangue de Jane.
– Esse senhor MacPhee… – disse Jane, enquanto elas subiam pela encosta íngreme até o topo do jardim.
– Eu sei – disse Camilla. E então: – Você acreditou?
– Claro que sim.
– Como o senhor MacPhee explica a idade do diretor?
– Quer dizer o fato de ele parecer… ou ser… tão jovem… se dá para chamar de jovem?
– Sim. É assim que ficam as pessoas que voltam dos astros. Ou pelo menos de Perelandra. O Paraíso ainda está acontecendo por lá. Faça que ele lhe fale sobre isso algum dia. Ele nunca mais vai envelhecer nem um ano, nem um mês.
– Ele vai morrer?
– Ele será levado daqui, creio eu. De volta para o Espaço Sideral. Aconteceu com uma pessoa ou duas, talvez umas seis, desde o início dos tempos.
– Camilla!
– Sim?
– O que… o que ele é?
– É um homem, minha cara. E é o Líder Supremo de Logres. Esta casa, todos nós aqui, o senhor Bultitude e Pinch, somos tudo o que sobrou de Logres: todo o resto tornou-se meramente Grã-Bretanha. Prossiga. Vamos direto até o topo. Como o vento está forte! Eles talvez venham hoje à noite.
Naquela noite, Jane lavou a louça, sob o olhar atento do Barão Corvo, a gralha, enquanto os outros se reuniam na Sala Azul.
– Bem – disse Ransom, quando Grace Ironwood terminou a leitura das suas anotações. – Esse é o sonho, e tudo nele parece ser objetivo.
– Objetivo? – disse Dimble. – Não estou entendendo. O senhor não quer dizer que eles realmente poderiam ter uma coisa dessas?
– O que você acha, MacPhee? – perguntou Ransom.
– Ah, sim, é possível – disse MacPhee. – Vejam que se trata de um velho experimento com cabeças de animais. Eles costumam fazer isso em laboratórios. Você decapita um gato, digamos, e descarta o corpo. Vai conseguir manter a cabeça funcionando um pouco se lhe fornecer sangue à pressão correta.
– Imagina! – disse Ivy Maggs.
– Quer dizer, mantê-la viva? – perguntou Dimble.
– Viva é um termo ambíguo. Podem-se manter todas as funções. É o que popularmente se chamaria de viva. Mas uma cabeça humana, e a consciência… não sei o que aconteceria caso se tentasse isso.
– Já foi tentado – disse a senhorita Ironwood. – Um alemão tentou antes da Primeira Guerra. Com a cabeça de um criminoso.
– É um fato verdadeiro? – perguntou MacPhee, com enorme interesse. – E você sabe qual foi o resultado obtido?
– Não deu certo. A cabeça simplesmente se decompôs normalmente.
– Não aguento mais isso, não aguento – disse Ivy Maggs, levantando-se e saindo abruptamente da sala.
– Então essa abominação imunda – disse o doutor Dimble – é real, não apenas um sonho. – Seu rosto estava branco, e sua expressão tensa. O rosto da sua mulher, por outro lado, não demonstrava nada mais que a repugnância controlada com a qual uma senhora da velha escola escuta qualquer detalhe repulsivo, quando sua menção se torna inevitável.
– Não temos provas disso – disse MacPhee. – Estou apenas expondo fatos. O que a moça sonhou é possível.
– E essa história de turbante – perguntou Denniston –, esse tipo de inchaço no alto da cabeça?
– Vocês veem o que poderia ser – disse o diretor.
– Não tenho certeza se vejo, senhor – disse Dimble.
– Supondo que o sonho seja verídico – disse MacPhee –, dá para imaginar o que poderia ser. Uma vez que eles a tivessem mantido viva, a primeira coisa que meninos como eles fariam seria aumentar o cérebro. Eles tentariam todos os tipos de estimulante. E então, talvez, abrissem de leve o topo do crânio para simplesmente, bem, simplesmente deixar transbordar um pouco, como se poderia dizer. Essa é a ideia, não duvido. Uma hipertrofia cerebral induzida artificialmente para sustentar um poder sobre-humano de ideação.
– Existe alguma probabilidade – perguntou o diretor – de que uma hipertrofia dessas aumente o poder do pensamento?
– Esse me parece o ponto fraco – disse a senhorita Ironwood. – Eu teria considerado igualmente provável que produzisse insanidade, ou absolutamente nada. Mas poderia ter o efeito contrário.
Houve um silêncio pensativo.
– Então, o que estamos enfrentando – disse Dimble – é o cérebro de um criminoso, inchado até proporções super-humanas e experimentando um modo de consciência que não podemos imaginar, mas que é presumivelmente uma consciência de agonia e ódio.
– Não podemos afirmar – disse a senhorita Ironwood – que haja muita dor de verdade. Alguma na região do pescoço, talvez, de início.
– O que nos interessa muito mais imediatamente – disse MacPhee – é determinar que conclusões podemos extrair dessas atividades com a cabeça de Alcasan, e que medidas práticas deveriam ser tomadas por nós… sempre e simplesmente como uma hipótese de trabalho, partindo do pressuposto de que o sonho seja verídico.
– De cara, ele já nos diz uma coisa – disse Denniston.
– E o que diz? – perguntou MacPhee.
– Que o movimento do inimigo é internacional. Para conseguir essa cabeça, eles deviam estar em perfeita harmonia no mínimo com uma força policial estrangeira.
MacPhee esfregou as mãos.
– Meu caro – disse ele –, você tem tudo para ser um pensador lógico. Mas a dedução não é assim tão certa. O suborno poderia ser uma explicação, sem uma integração verdadeira.
– No longo prazo ela nos diz algo ainda mais importante – disse o diretor. – Se essa técnica for realmente bem-sucedida, significa que o pessoal de Belbury, até onde interessa, descobriu um meio de tornar-se imortal. – Houve um instante de silêncio, e então ele prosseguiu: – É o início daquilo que na verdade é uma nova espécie: as Cabeças Escolhidas que nunca morrem. Ela será chamada de novo passo na evolução. E, de agora em diante, todas as criaturas que você e eu chamamos de humanas ou serão meros candidatos à admissão à nova espécie ou serão seus escravos… talvez seu alimento.
– O surgimento dos Homens Sem Corpo! – disse Dimble.
– Muito provável, muito provável – disse MacPhee, oferecendo a caixa de rapé para o último a falar. Ela foi recusada, e ele pegou deliberadamente uma pitada antes de continuar. – Mas de nada adianta aplicar as forças da retórica para nos deixar apavorados; nem arrancar nossa própria cabeça dos ombros só porque algumas outras pessoas tiveram os ombros tirados de debaixo da sua cabeça. Sou mais a Cabeça do Diretor, a sua, doutor Dimble, e a minha própria, contra a desse rapaz, quer os miolos estejam saindo borbulhando, quer não. Desde que as usemos. Seria um prazer ouvir que medidas práticas são sugeridas do nosso lado.
Com essas palavras, ele bateu delicadamente com as juntas dos dedos no joelho e olhou fixo para o diretor.
– É – disse MacPhee – uma questão que me atrevi a apresentar antes.
Uma súbita transformação, como o pulo de uma chama das brasas, passou pelo rosto de Grace Ironwood.
– Será que não se pode confiar em que o diretor apresente seu próprio plano no momento que lhe for conveniente, senhor MacPhee? – disse ela, feroz.
– Pelo mesmo raciocínio, doutora – disse ele –, será que não se pode confiar no conselho para ouvir o plano do diretor?
– O que está querendo dizer, MacPhee? – perguntou Dimble.
– Senhor diretor – disse MacPhee –, queira perdoar minha franqueza. Seus inimigos já se muniram dessa Cabeça. Eles se apoderaram de Edgestow e estão a caminho de sustar as leis da Inglaterra. E ainda assim você nos diz que não chegou a hora de nos mexermos. Se tivesse acatado meu conselho seis meses atrás, a esta altura nós já estaríamos com uma organização nos quatro cantos da ilha e talvez um partido na Câmara dos Comuns. Sei bem o que vai dizer… que esses não são os métodos corretos. E pode ser que não sejam. Mas, se você não pode aceitar nosso conselho nem nos dar nada para fazer, para que estamos todos nós sentados aqui? Você já levou seriamente em consideração a ideia de nos despachar e reunir outros companheiros com quem possa trabalhar?
– Dissolver a Companhia, é isso? – perguntou Dimble.
– Sim, isso mesmo – disse MacPhee.
O diretor olhou para eles, com um sorriso.
– Mas – disse ele –, eu não tenho poder para dissolvê-la.
– Nesse caso – disse MacPhee –, devo lhe perguntar que autoridade você tinha para formá-la.
– Eu nunca a formei – disse o diretor. Então, depois de passar o olhar por todos, ele acrescentou: – Há algum estranho equívoco aqui! Vocês todos tinham a impressão de que eu os tinha selecionado? Tinham? – repetiu ele, quando ninguém respondeu.
– Bem – disse Dimble –, no que me diz respeito, eu tenho plena consciência de que a coisa aconteceu mais ou menos de modo inconsciente… até mesmo por acaso. Não houve nenhum momento em que você tivesse me convidado para participar de um movimento definido, ou qualquer coisa dessa natureza. É por isso que sempre me considerei uma espécie de agregado. Eu supunha que os outros estivessem numa posição mais formal.
– O senhor sabe por que Camilla e eu estamos aqui – disse Denniston. – Sem dúvida, nós não pretendíamos nem prevíamos de que forma nossos serviços seriam empregados.
Grace Ironwood olhou com uma expressão tensa no rosto, que tinha ficado bastante pálido.
– Você quer…? – começou ela. O diretor pôs a mão no seu braço.
– Não – disse ele. – Não. Não é preciso que todas essas histórias sejam contadas.
A expressão severa de MacPhee relaxou num largo sorriso.
– Estou vendo aonde você quer chegar – disse ele. – Todos nós estivemos brincando de cabra-cega, suspeito. Mas peço licença para observar, doutor Ransom, que você exerce um pouco de autoridade, sim. Simplesmente não me lembro de como veio a ser chamado de diretor. Mas, a partir desse título e de mais uma indicação ou duas, qualquer pessoa consideraria seu comportamento mais semelhante ao do líder de uma organização do que ao de um anfitrião numa casa de campo.
– Eu sou o diretor – disse Ransom, sorrindo. – Você acha que eu reivindicaria esse grau de autoridade se a relação entre nós dependesse da sua escolha ou da minha? Vocês nunca me escolheram. Eu nunca os escolhi. Até mesmo os grandes Oyéresu a quem sirvo nunca me escolheram. Entrei no mundo deles pelo que pareceu ser, de início, um acaso. Como vocês vieram a mim… como os próprios animais nesta casa chegaram aqui. Vocês e eu não começamos nem engendramos isso: foi algo que se abateu sobre nós, que nos sugou para dentro, por assim dizer. Trata-se, sem dúvida, de uma organização, mas nós não somos os organizadores. E é por isso que não tenho nenhuma autoridade para dar a nenhum de vocês permissão para deixar minha residência.
Por um tempo fez-se silêncio total na Sala Azul, exceto pelo crepitar do fogo.
– Se não houver mais nada a examinar – disse Grace Ironwood, depois de algum tempo –, talvez fosse melhor deixarmos o diretor repousar.
MacPhee levantou-se e espanou um pouco de rapé dos joelhos, preparando assim uma aventura totalmente inédita para os camundongos, na próxima vez que saíssem em obediência ao assobio do diretor.
– Não tenho a menor intenção – disse ele – de sair desta casa se qualquer um quiser que eu permaneça. Contudo, no que diz respeito à hipótese geral segundo a qual o diretor parece estar atuando e à autoridade muito peculiar que ele reivindica para si, eu por enquanto prefiro não me pronunciar. O senhor diretor sabe muito bem em que sentido eu tenho, e em que sentido não tenho, total confiança na sua pessoa.
O diretor riu.
– Deus me livre – disse ele – de eu alegar saber o que acontece nas duas metades da sua cabeça, MacPhee, muito menos como você faz a conexão entre elas. Porém eu sei (o que é muito mais importante) o tipo de confiança que tenho em você. Mas não quer se sentar? Há muito mais a ser dito.
MacPhee retomou sua cadeira; Grace Ironwood, que estivera sentada muito empertigada, relaxou; e o diretor falou.
– Aprendemos nesta noite – disse ele –, se não o que o verdadeiro poder por trás dos nossos inimigos está fazendo, pelo menos a forma na qual ele se corporificou em Belbury. Sabemos, portanto, alguma coisa sobre um dos ataques que estão prestes a ser lançados contra nossa espécie. Mas estou pensando no outro.
– Sim – disse Camilla, com seriedade. – O outro.
– Querendo dizer…? – perguntou MacPhee.
– Querendo dizer – respondeu Ransom – que, não importa o que seja, está por baixo do Bosque de Bragdon.
– Você ainda está pensando nisso? – disse o homem do Ulster.
Seguiu-se um momento de silêncio.
– Não penso em quase mais nada – disse o diretor. – Já sabíamos que o inimigo queria o bosque. Alguns de nós adivinharam por quê. Agora Jane viu… ou melhor, sentiu… numa visão o que eles estão procurando em Bragdon. Esse pode ser dos dois o perigo maior. Mas o que é certo é que o maior perigo de todos é a junção das forças inimigas. Ele está apostando tudo nisso. Quando o novo poder de Belbury se unir ao velho poder por baixo do Bosque de Bragdon, Logres… na realidade o Homem… estará quase cercado. Para nós tudo gira em torno de impedir essa união. É nesse ponto que precisamos estar dispostos tanto a matar quanto a morrer. No entanto, ainda não podemos atacar. Não podemos entrar em Bragdon e começar a escavar por nossa conta. Deve haver um momento em que eles o encontrarão… em que encontrarão a coisa. Não tenho a menor dúvida de que seremos informados de um modo ou de outro. Até então, precisamos esperar.
– Não acredito numa palavra de toda essa outra história – disse MacPhee.
– Achei – disse a senhorita Ironwood – que não devíamos usar palavras como acreditar. Que devíamos apenas relatar fatos e expor implicações.
– Se vocês dois continuarem a brigar – disse o diretor –, creio que vou forçá-los a se casar um com o outro.
No início, o grande mistério para a Companhia tinha sido o motivo pelo qual o inimigo queria o Bosque de Bragdon. A terra era inadequada e, somente por meio de obras preliminares muito dispendiosas, poderia ser preparada para receber um prédio na escala que eles propunham. Ademais, Edgestow em si não era um lugar obviamente conveniente. Por meio de estudos profundos em colaboração com o doutor Dimble, e apesar do constante ceticismo de MacPhee, o diretor por fim chegara a uma conclusão. Dimble, ele e os Dennistons tinham entre si um conhecimento da Grã-Bretanha arturiana ao qual os estudiosos ortodoxos provavelmente não teriam acesso ainda por alguns séculos. Eles sabiam que Edgestow ficava no que tinha sido o coração da antiga Logres; que o vilarejo de Cure Hardy preservava o nome de Ozana le Coeur Hardi; e que um Merlin histórico tinha um dia trabalhado no que agora era o Bosque de Bragdon.
Exatamente o que ele tinha feito lá, eles não sabiam; mas todos, por vários percursos, chegaram longe demais, fosse para considerar sua arte mera lenda e impostura, fosse para equipará-la precisamente ao que a Renascença chamava de magia. Dimble chegava a sustentar que um bom crítico, por sua sensibilidade apenas, podia detectar a diferença entre os traços que as duas coisas deixaram na literatura. “Que divisor comum existe”, perguntaria ele, “entre ocultistas ritualistas como Fausto, Próspero e Arqui-imago, com seus estudos à meia-noite, seus livros proibidos, seu séquito de elementais ou demônios, e uma figura como Merlin, que parece produzir resultados simplesmente por ser Merlin?” E Ransom concordava. Ele achava que a arte de Merlin era o último resquício de algo mais antigo e diferente… algo trazido para a Europa Ocidental depois da queda de Numinor e que remontava a uma era na qual as relações gerais da mente e da matéria neste planeta eram diferentes daquelas que conhecemos. Era provável que ela apresentasse diferenças profundas em comparação com a magia da Renascença. Era possível que tivesse envolvido menos culpa (embora isso fosse duvidoso): decerto, tinha sido mais eficaz. Pois Paracelso, Agripa e os demais realizaram pouco ou nada. O próprio Bacon – nenhum inimigo da magia a não ser sob esse aspecto – relatou que os magos “não alcançavam a grandeza e a certeza das obras”. Toda a explosão renascentista de artes proibidas parecia ter sido um método de perder a alma em termos singularmente desfavoráveis. Mas a arte mais antiga tinha sido uma proposta diferente.
No entanto, se o único atrativo possível de Bragdon estava em sua associação com os últimos vestígios da magia atlante, ele dizia à Companhia mais uma coisa. Dizia-lhes que o Inec, no seu cerne, não se dedicava exclusivamente a formas modernas ou materialistas do poder. Dizia ao diretor que, de fato, havia energia eldílica e conhecimento eldílico por trás dela. Era naturalmente outra questão se os seres humanos que integravam o Inec sabiam das potências sombrias que eram seus verdadeiros organizadores. E, no longo prazo, essa questão talvez não fosse importante. Como o próprio Ransom afirmara mais de uma vez, “Quer eles saibam, quer não, o mesmo tipo de coisa vai acontecer repetidamente. Não se trata de saber como o pessoal de Belbury vai agir (os eldila das trevas se encarregarão disso), mas de como eles encararão seus atos. Eles irão a Bragdon: resta saber se algum deles saberá o verdadeiro motivo pelo qual estão indo lá, ou se todos inventarão alguma teoria fajuta dos solos, do ar ou de tensões etéricas, para explicar a atividade.”
Até certa altura, o diretor tinha suposto que os poderes pelos quais o inimigo ansiava residiam tão somente na localização de Bragdon – pois existe uma crença antiga e disseminada de que o local em si é importante. Mas, com o sonho de Jane sobre a criatura fria, adormecida, ele viu que não era bem assim. Era algo muito mais definido, algo situado por baixo do Bosque de Bragdon, algo a ser descoberto por uma escavação. Tratava-se, de fato, do corpo de Merlin. Enquanto os eldila estavam com ele, o diretor recebeu quase sem assombro o que eles lhe disseram acerca da possibilidade de uma descoberta dessa ordem. Para eles, aquilo não era assombroso. Aos seus olhos, os modos telúricos normais de ser – gerar, nascer, morrer e se decompor –, que devem utilizar a estrutura do pensamento, não eram menos maravilhosos que os inúmeros outros padrões de ser que se apresentavam constantemente a suas mentes que nunca dormem. Para aquelas criaturas sublimes, cuja atividade constrói o que chamamos de Natureza, nada é “natural”. Da sua perspectiva, a arbitrariedade essencial (por assim dizer) de cada criação real é incessantemente visível. Para elas, não há pressupostos básicos: tudo brota, com a beleza intencional de uma brincadeira ou de uma melodia, a partir daquele momento milagroso de autolimitação em que o Infinito, rejeitando uma miríade de possibilidades, lança de si a invenção positiva e selecionada. Não lhes pareceu estranho que um corpo permanecesse indecomposto por mil e quinhentos anos; elas conheciam mundos em que não existia absolutamente nenhuma decomposição. Nem lhes pareceu mais estranho que sua vida individual permanecesse latente todo esse tempo; elas tinham visto inúmeros modos diferentes segundo os quais a alma e a matéria podiam se associar e se separar, se separar sem a perda da influência recíproca, se associar sem uma verdadeira encarnação, se fundir de modo tão completo a ponto de ser uma terceira coisa; ou se unir periodicamente numa união tão curta e tão momentânea quanto o abraço nupcial. Não foi como um assombro na filosofia natural, mas como uma informação em tempos de guerra, que eles trouxeram ao diretor a notícia. Merlin não tinha morrido. Sua vida tinha sido escondida, desviada, retirada do nosso tempo unidimensional, por quinze séculos. Entretanto, sob determinadas condições, ela voltaria ao seu corpo.
Fazia pouco tempo que os eldila tinham lhe contado isso, porque antes não sabiam. Uma das maiores dificuldades de Ransom ao discutir com MacPhee (que constantemente anunciava sua descrença na existência dos eldila) residia no fato de MacPhee partir do pressuposto comum, porém curioso, de que, se existem criaturas mais sábias e mais fortes que o homem, elas devem por conseguinte ser oniscientes e onipotentes. Em vão, Ransom tentava explicar a verdade. Sem dúvida, os seres imensos que agora vinham visitá-lo com tanta frequência tinham poder suficiente para varrer Belbury do mapa da Inglaterra; e a Inglaterra, do globo terrestre; talvez, para acabar com a existência do próprio globo terrestre. Mas nenhum poder desse tipo seria usado. Nem tinham eles nenhuma visão direta que penetrasse na mente dos homens. Foi num lugar diferente, e abordando o conhecimento a partir do outro lado, que eles descobriram o estado de Merlin: não pela inspeção da coisa que jazia por baixo do Bosque de Bragdon, e sim a partir da observação de uma configuração singular, naquele local onde permanecem as coisas que são removidas da rota principal do tempo, por trás das sebes invisíveis, pelos campos inimagináveis adentro. Nem todos os tempos que estão fora do presente estão necessariamente no passado ou no futuro.
Foi isso que manteve o diretor acordado, com o cenho franzido, nas horas frias do início daquela manhã, quando os outros o deixaram. Não havia mais dúvida na sua mente quanto ao motivo que levou o inimigo a comprar Bragdon: para encontrar Merlin. E, se o encontrassem, eles o despertariam. Seria inevitável que o velho druida se unisse aos novos planejadores – o que poderia impedi-lo de fazê-lo? Seria efetuada uma união entre dois tipos de poder, que juntos determinariam o destino do nosso planeta. Sem dúvida, essa tinha sido a vontade dos eldila das trevas havia séculos. As ciências físicas, boas e inocentes em si, já tinham, mesmo na vida de Ransom, começado a ser deturpadas, sutilmente manobradas para certa direção. A desesperança no que dizia respeito a encontrar a verdade objetiva tinha sido infiltrada cada vez mais nos cientistas; uma indiferença para com ela e uma concentração no mero poder resultaram disso. Papo-furado sobre o elã vital e flertes com o pampsiquismo prometiam restaurar a Anima Mundi dos magos. Sonhos com o destino do homem no futuro remoto estavam arrastando da cova rasa e inquieta o antigo sonho do Homem como Deus. As experiências da sala de dissecação e do laboratório de patologia estavam gerando uma convicção de que o sufocamento de todas as repugnâncias profundamente enraizadas era o primeiro ponto essencial para o progresso. E agora, tudo isso tinha chegado ao estágio no qual seus maquinadores sinistros acreditavam que poderiam em segurança começar a exercer pressão para que ele se unisse àquela outra forma mais antiga de poder. Na realidade, eles estavam escolhendo o primeiro momento em que isso poderia ter sido feito. Ele não poderia ter sido feito com cientistas do século XIX. Seu materialismo firme e objetivo teria excluído essa possibilidade do seu pensamento. E, mesmo que tivesse sido possível fazê-los acreditar, a moralidade herdada os teria impedido de sujar as mãos. MacPhee era um sobrevivente dessa tradição. Agora tudo estava diferente. Talvez poucas ou nenhuma das pessoas em Belbury soubessem o que estava acontecendo. Mas, uma vez que acontecesse, seria como fogo na palha. O que eles poderiam considerar inacreditável, se já não acreditavam num universo racional? O que poderiam considerar obsceno demais, se sustentavam que toda a moralidade era apenas um subproduto subjetivo das situações físicas e econômicas dos homens? A hora tinha chegado. Do ponto de vista que é aceito no Inferno, toda a história da nossa Terra levara a este momento. Agora havia por fim uma chance verdadeira para o Homem caído se livrar daquela limitação de seus poderes imposto pela misericórdia, como uma proteção contra os plenos resultados de sua queda. Se essa tentativa fosse bem-sucedida, o Inferno seria por fim encarnado. Homens maus, enquanto ainda no corpo, ainda rastejando sobre este pequeno globo, entrariam naquele estado em que, até então, entravam somente depois da morte, disporiam da diuturnidade e do poder dos espíritos do mal. A natureza, por todo o globo de Telus, se tornaria sua escrava. E para esse domínio não haveria como prever com segurança um fim, antes do próprio final dos tempos.