15

“I am sailing, I am sailing,

home again, ‘cross the sea.

I am sailing, stormy waters,

to be near you, to be free.”18

Sailing

SMOKIE

Keka. Eu nunca chegara a vê-la. Mas ela se lembrava de mim como se tivéssemos sido amigos um quarto de século atrás, quando Victoria frequentava o Nido de Águilas. Era gorda, olhos verdes, cabelo grisalho, tinha as mãos malcuidadas e seu olhar penetrante intimidava. Enquanto almoçava com as duas mulheres no restaurante Agua, na zona oeste de Santiago, intuí que Margot já a pusera a par de nossa relação de amantes e que era por isso que ela se lembrava bem de mim.

– Então vocês se conhecem desde a época do Nido de Águilas? – perguntei, tentando dizer alguma amenidade enquanto nos serviam umas taças de pisco sour.

– Nos conhecemos há muito tempo – afirmou Keka antes de acender um cigarro, e naquele instante percebi que tinha dentes pequenos e amarelados.

– E você não vai acreditar – acrescentou Margot –, somos as únicas mães chilenas da classe de nossas filhas. As outras eram estrangeiras e obviamente foram embora do país.

– Mas vocês têm contato com algumas delas?

Responderam que tinham um contato distante e, em seguida, Margot levantou sua taça anunciando que brindava pela memória de minha mulher e de minha filha, e por meu retorno à cidade onde eu havia passado anos inesquecíveis. Foi isso mesmo o que ela disse e o transcrevo literalmente. Bebemos em silêncio. O pisco sour estava no ponto, ideal para aquele dia quente de verão na zona central. Mudei rápido de assunto para não continuar falando da morte.

– Pode contar com toda minha ajuda em sua busca – disse Keka depois de algum tempo, afastando com os dedos um pedacinho de tabaco picado que lhe ficara entre os lábios.

Pedimos a mesma coisa: de entrada, locos,19 corvina grelhada de prato principal, e não foi nada difícil escolher um sauvignon blanc Montes Alpha. No estacionamento em frente ao janelão do restaurante, o destaque eram os automóveis último tipo, Mercedes, BMW e Cadillac, alguns com motorista de paletó e gravata, como se a visão dos carros pudesse estimular o apetite. Depois de saborear as lâminas de loco, Margot me pediu que lhes mostrasse a foto de minha filha com seus colegas. Keka, segurando a foto em uma das mãos e o cigarro na outra, estudou-a por alguns instantes e disse, em meio a uma espiral de fumaça:

– Sua filha é a que está aqui no canto.

– Ela mesma – respondi.

– Lembro-me direitinho da Victoria, embora minha filha estivesse duas séries à frente dela – afirmou Margot. – Sua filha era uma moça especial. Apesar de gringa, tocava violão, no inverno usava um gorrinho boliviano de alpaca e, se não me engano, acabou indo estudar Sociologia na Universidade do Chile.

– Arqueologia.

– Era filha de um cara que a gente achava que fosse da CIA, mas não tinha nada de uma gringa típica.

Soltei uma gargalhada.

– Da CIA? – repeti. – Passei anos muito difíceis tentando vender câmeras fotográficas num país que caía aos pedaços. O que me salvou foram as fotos que os jornais dos Estados Unidos e da Europa compravam. E agradeço por terem me atribuído uma ocupação tão apaixonante.

Mantive o sorriso por alguns segundos, admitindo no íntimo que aquele era o derradeiro destino de quem se dedica ao que me dediquei: negar seu verdadeiro trabalho ao longo da vida, fingir que viveu uma existência monótona, insignificante e triste, alheia aos vaivéns e golpes de adrenalina da espionagem. Nessas circunstâncias, o melhor é se fazer passar por um cara inepto e inseguro, meio sem jeito para os assuntos práticos da vida cotidiana.

– Vamos lá, essa sua história nunca colou – retrucou Keka. – Os agentes da CIA nunca admitem que são da CIA. Além disso, apesar de você ter chegado como canadense, acabou indo morar nos Estados Unidos.

– Isso foi depois – assenti. – Eu me instalei em Minnesota, onde meu negócio de câmeras deu certo, e então fui ficando ali e me naturalizei.

Continuei sorrindo – não por causa de meu antigo trabalho de espião, mas por algo mais profundo e emocionante: ficava agora evidente para mim que, junto com minha mulher, havíamos conseguido fazer de Victoria uma moça autêntica, honesta e útil à sociedade. Sempre nos preocupou que a natureza de minha profissão, que se alimenta do engano e da simulação, contagiasse nossa filha.

– Victoria era muito especial – insistiu Keka. – Mas eu quero lhe dizer mais uma coisa: nenhum dos jovens que aparecem nessa foto era do Nido de Águilas.

– É, Margot também acha isso – confirmei.

– Tenho certeza. – Keka afastou o prato. – Não reconheço nenhum deles como alunos daquela época. E minha memória é muito boa. De quando é essa foto?

No verso não havia nenhuma anotação. Era simplesmente uma foto de jovens, desfocada, em preto e branco. Eles sorriam para a lente, enfiados em suas jaquetas com capuz, num dia de inverno, na frente de uma casa de dois andares com uma grade alta, pela qual se enroscam folhas e flores de bico-de-papagaio, uma casa que poderia estar em praticamente qualquer cidade do Chile.

– Não tenho ideia de quando pode ser a foto – expliquei. Keka apagou o cigarro e voltou a atenção para a corvina que agora chegava à mesa. – Mas gostaria muito de saber quem são esses que estão com ela.

– Por quê? – perguntou Keka.

– Mas você não ouviu o que eu disse? – reclamou irritada minha ex-amante. – David está tentando reconstruir a vida de sua filha em Santiago.

– Isso mesmo – intervim, delicadamente.

– Desculpe, mas vocês não moravam na mesma casa? – inquiriu Keka.

– Claro, e éramos uma família feliz – disse eu, jogando uma indireta para minha ex-amante. – Mas hoje preciso saber mais coisas da vida de Victoria. Preciso investigar mais sobre esses assuntos e detalhes que geralmente não são abordados nas famílias, porque se supõe que depois haverá tempo para isso... enfim, coisas que já não posso mais perguntar à minha filha.

– Não sei se entendo bem – retrucou Keka, balançando a cabeça, antes de provar seu sauvignon blanc –, mas vou insistir numa coisa, David Kurtz.

– Sim?

– Os rostos desses jovens não são de alunos do Nido de Águilas.

18 Estou navegando, estou navegando / de volta para casa através do mar / Estou navegando, entre águas tempestuosas / para estar com você e ser livre. [N. E.]

19 Locos são moluscos do Pacífico, uma fina iguaria muito apreciada no Chile e cuja grande procura levou a coibir sua coleta indiscriminada. [N. T.]