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“Yo adivino el parpadeo
de las luces que a lo lejos
van marcando mi retorno.
Son las mismas que alumbraron
con sus pálidos reflejos
hondas horas de dolor.”20
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ALFREDO LE PERA e CARLOS GARDEL
Parecia um pêndulo. Indo e voltando atrás da mesa de seu amplo escritório. Vestia jaqueta preta de couro e uma malha de gola alta branca, e senti que estava tenso pelo discurso que tinha de fazer numa fábrica tomada pelos operários – que exigiam a expropriação, embora ele pedisse a devolução aos seus legítimos donos. Há duas semanas, o general Carlos Prats integra o gabinete como vice-presidente, o que permite ao Doutor sufocar a greve dos caminhoneiros, que agravou a falta de alimentos no país até um nível inexplicável.
– Esses jovens do MIR não entendem nada – afirmou, agitando as páginas do discurso na mão. Estávamos sozinhos em seu escritório, com assessores entrando e saindo, trazendo novos documentos, perguntando-lhe coisas ao ouvido e afastando-se depois, sigilosos. – São uns filhinhos de papai que acham que ocupando fábricas e fazendas, armando-se e gargarejando frases do Che Guevara e do Fidel se faz uma revolução.
Tanto faz. Na cidade, o diabo está solto. Na Alameda, todos os dias grupos do governo e da oposição se enfrentam a pedradas, enquanto os carabineros usam caminhões com jatos de água e bombas de gás lacrimogêneo para dispersar os manifestantes, que respondem com coquetéis molotov, pedradas e palavras de ordem. O país segue rumo ao desfiladeiro. As filas são cada vez maiores diante dos armazéns e supermercados. Os micro-ônibus quase não circulam mais e os táxis cobram uma fortuna para levar você dois quarteirões adiante. A inflação desembestou e racionaram a gasolina. Como se isso fosse pouco, um comando militar desocupou uma fábrica ocupada atirando em simpatizantes do governo popular. Numa foto do jornal esquerdista Puro Chile, aparece um cidadão com um cartaz que diz: “Este governo pode ser uma merda, mas é o meu”.
Há boatos de que logo haverá também uma greve nacional do comércio e dos profissionais liberais, e uma nova greve, desta vez com duração indefinida e “até as últimas consequências”, organizada pelos transportadores de carga e de passageiros do país inteiro. Se essa greve for deflagrada, o fornecimento de alimentos irá sofrer um colapso total e o país cairá de joelhos como um homem mortalmente ferido.
– E você aí? – perguntou o Doutor quando levantou a vista dos documentos que tinha em cima da mesa. Olhou-me de cima a baixo, acho que irritado, com o queixo levantado, como um professor chamando a atenção de seu aluno. – Qual é o problema agora?
– Minha padaria acabou, Doutor – confessei. – Conto isso com dor no coração. Fechei na semana passada. Não se encontra farinha em lugar nenhum, nem sal, nem manteiga. Agora quebrei de vez, sem insumos e sem trabalho.
– Mas você não foi até os armazéns do Estado procurar farinha, como eu sugeri?
– Fiz isso, Doutor.
– E aí? – Inclinou-se sobre a mesa e começou a rubricar papéis depois de examiná-los rapidamente.
– Me disseram que não era para eu ter muita esperança.
– Como assim, não ter muita esperança? – Continuava assinando.
– Sim, porque há 347 padarias na minha frente esperando a mesma coisa, há meses. Com sorte, eles poderiam me entregar uns dois sacos em dezembro.
– Dezembro já está logo aí, dobrando a esquina.
– É que o pão é uma coisa diária, Doutor.
– Mas está logo aí, dobrando a esquina. Além do mais, em dezembro eu vou a Moscou, e o senhor sabe, companheiro, a União Soviética é o principal produtor de trigo do planeta. Vamos voltar com a mala cheia de trigo e fermento e sal e todos os seus famosos insumos. Teremos pão até para jogar fora.
– Mas é muito tempo.
– Como assim, muito tempo?
– Eu tenho o mau hábito de comer todo dia, Doutor. Igual à minha mulher.
O Doutor ficou em pé e começou a passear com as mãos enfiadas nos bolsos da calça. Talvez tivesse me ouvido, ou quem sabe estivesse simplesmente pensando em outro assunto, algum problema mais grave que aquele que eu lhe contava. Mas não quero confundir as coisas, não quero incluir aqui, nessa descrição do diálogo, minhas modestas especulações. Neste caderno me limito, de maneira simples e direta, a lembrar nossos diálogos tal como aconteceram, sem colocar uma ponta de minha própria lavra.
– Preciso que o senhor me dê uma mão, Doutor – animei-me a dizer.
Então ele parou no meio da sala e me olhou surpreso, com ar sóbrio. Seus olhos pareciam amêndoas por trás dos óculos grossos de armação preta. Sua cabeleira brilhava como num anúncio de Glostora.21
– A que o senhor se refere, companheiro? – perguntou, sério, renunciando de novo a me tratar por você.
– Quero saber se o senhor não tem uma boquinha aí pra mim, Doutor.
– Aqui, no La Moneda?
– Sei fazer pão, cozinhar, administrar, limpar, lustrar sapatos – afirmei com meus olhos postos em seus mocassins cor de café com fivelas douradas. – Lembre-se de que sou padeiro e que fui cozinheiro de um barco baleeiro, onde, sem contar com nada, o sujeito precisa dar um jeito de fazer tudo.
Ele cruzou os braços e inclinou a cabeça de lado, pensativo. Pigarreou, mas manteve-se quieto durante alguns instantes, como uma estátua. Depois foi até a mesa e sentou na cadeira.
– O último companheiro que eu contratei aqui ficou encarregado da bomba d’água do palácio – acrescentou. – Uma bomba d’água de um poço que nem água tem. E acho que o companheiro nem se deu conta disso ainda... A coisa vai mal!
– O senhor me desculpe, Doutor, mas, a julgar pelo pó e pela sujeira que eu vejo nessas salas, acho que seria uma boa ideia eu dar uma limpadinha. Ainda tem muita coisa a fazer por aqui, Doutor...
– É o pó da História, Cachafaz. Esse não vai embora nunca.
– Isso é o senhor que acha, Doutor. Em poucos dias, posso deixar o La Moneda novinho, como se fosse o senhor que o tivesse construído.
Ele sorriu sem separar os lábios.
– Você é o companheiro de juventude mais cabeça dura que tenho – comentou, olhando de relance a poeira do escritório. – Deixe-me pensar um pouco mais no assunto. Estamos no meio de problemas infernais, então é melhor você vir me ver daqui a algumas semanas. Até lá, devo ter alguma ideia. O companheiro presidente nunca deixa um amigo na mão.