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“De mis páginas vividas

siempre guardo un gran recuerdo;

mi emoción no las olvida,

pasa el tiempo y más me acuerdo.”4

Tres amigos

DOMINGO ENRIQUE CADÍCAMO e ROSENDO LUNA

Foi numa manhã de temperatura agradável de 1972 que o presidente chegou ao meu bairro em Santiago. Saímos todos para recebê-lo com bandeiras vermelhas e verdes, tambores e pratos e uma grande algazarra. Veio numa comitiva de Fiats azuis rebaixados, de pneus grossos, que levantaram poeira à sua chegada, rugiram como carros de corrida e arrancaram gritos das crianças e alegres latidos dos cachorros do lugar.

O presidente saiu do assento traseiro de um carro vestindo um paletó de couro e um colete preto de gola alta, e os vizinhos gritavam em coro seu nome e se atiravam em cima dele para tocá-lo, para apertar-lhe a mão ou para pedir alguma coisa, em meio a seus seguranças empertigados, de terno, gravata e óculos de sol, que tentavam impedir que as pessoas o espremessem demais.

Não me esquecerei dessa manhã. O calor, minha emoção, o céu limpo, a felicidade que tomou conta do bairro inteiro. Lembro-me de cada um dos detalhes, o perfume da terra seca, o suor das pessoas, a música na rua; e como tenho medo de esquecê-los um dia, anoto-os neste caderno escolar com o rosto de Vladimir Illich Lênin na capa, impresso na União Soviética. Eles distribuem esses cadernos nas escolas públicas, por causa da escassez de papel que enfrentamos. Este aqui, por exemplo, quem me deu foi um vizinho, em troca de seis empanadas de carne que fiz no meu forno. Fiquei olhando da porta da padaria aquelas boas-vindas ao presidente. Eu estava de avental, boné e alpargatas, o rosto maquiado pela farinha, e, portanto, não me atrevi a chegar perto dele.

Foi então que o presidente se virou e começou a avançar na direção contrária à da plataforma do caminhão, onde um grupo folclórico vestindo ponchos pretos cantava e onde ele faria um discurso sobre a necessidade de que os operários mantivessem a produção nas empresas da área social. Foi andando, distribuindo apertos de mão e palavras de incentivo, com as costas eretas e a cabeça erguida, enquanto as pessoas o saudavam e as crianças e os cachorros andavam em zigue-zague entre os adultos.

– Como vai a produção de pão, companheiro? – perguntou-me o presidente, aproximando-se, atraído, quem sabe, pelo resplendor do meu uniforme branco de padeiro e pelo aroma de pão quente que vinha do forno. Apertou minha mão e me abraçou, e sua fina jaqueta de couro ficou impregnada de farinha.

– Estou aqui, pondo pão no forno para o meio-dia, se bem que não sei se vai ter pão para o jantar – disse eu, enquanto com as mãos tentava tirar o pó branco de suas lapelas, com uns tapinhas que os seguranças acompanharam de sobrancelhas erguidas.

– Mas então o que é que os companheiros vão comer às onze? – perguntou ele, sério.

– Pois chazinho puro, presidente. E só. Se é que ainda sobrou algum chá nos armazéns.

– E pão?

– Mas como, se não tem farinha, presidente? O senhor quer que eu amasse o quê? – repliquei, com franqueza, mas sem lhe faltar com o respeito, ao mesmo tempo em que um dos seguranças me dava uma discreta cotovelada.

– Temos de combater o mercado negro, companheiro – disse o presidente. – É por aí que o inimigo pode acabar conosco.

E foi então que me atrevi a perguntar:

– O senhor já não se lembra de mim, presidente?

Afastando o segurança que se interpunha entre nós, ele cravou seu olhar de olhos pequenos e espertos nos meus. Pude ver claramente suas pupilas cor de café mergulhadas no fundo das grossas lentes de seus óculos escuros.

– Como você se chama? – me perguntou entre os vivas e empurrões das pessoas, bem no momento em que uma velha lhe passava uma empanada frita e um acordeonista cego lhe entregava uma carta.

Eu disse meu nome, mas ele não teve reação. Pior: fiquei com a impressão de que estava interessado apenas em retomar a marcha e chegar na plataforma do caminhão, onde a apresentação de charangos, tambores e quenas já estava terminando. Foi então que acrescentei:

– Não se lembra do Juan Demarchi?

– O sapateiro anarquista? – perguntou o presidente, surpreso.

– Ele mesmo.

– Claro que me lembro – retrucou o presidente em voz alta, agitando uma mão no ar enquanto a massa o afastava de mim. – Foi meu professor na juventude. Tinha uma oficina no cerro5 da Cor­dillera de Valparaíso.

– Eu sou o Cachafaz – gritei a plenos pulmões e com orgulho. – Não se lembra de mim?

Agora o presidente era um náufrago à deriva, porque a maré de gente o arrastava para o palco improvisado. Eu continuei aferrado à árvore que faz sombra em meu pequeno estabelecimento. Só muito mais tarde, quando estava empilhando lenha para a fornada seguinte, um sujeito de óculos de sol, terno e gravata, chegou ao balcão perguntando pelo Cachafaz.

– Às suas ordens – disse eu, sacudindo a farinha das mãos.

– Eu trago um recado do presidente – anunciou o homem, sem se alterar. Senti que meu coração saltava pela boca. – Ele estará esperando o senhor na próxima segunda-feira, às seis da tarde, no palácio de La Moneda.

4 Das páginas que vivi / sempre guardo grandes lembranças / minha canção não as esquece / passa o tempo e mais me recordo. [N. E.]

5 Em espanhol, cerro é “morro, monte”. Em Valparaíso, cidade litorânea de relevo acidentado, muitos dos seus bairros ou áreas são identificados por sua localização em algum de seus cerros – como ocorre, por exemplo, no Rio de Janeiro, com os morros da Rocinha, do Estácio, de Santa Marta, entre outros, que são também indicativos de bairros. Mantivemos cerro por fazer parte do nome próprio do lugar. [N. T.]