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As coisas no país continuam piorando. Depois da primeira greve dos caminhoneiros e da entrada dos generais no gabinete, a oposição ameaça com uma greve nacional indefinida, enquanto o desabastecimento de alimentos se agrava e continuam as ocupações de terras e fábricas por parte de camponeses e trabalhadores. O Doutor fica indignado com a política radical adotada por socialistas e integrantes do MIR, mas estes o chamam de reformista e exigem dele medidas drásticas para esmagar o inimigo burguês, como fizeram as revoluções cubana e soviética.

Apesar disso, o Doutor não perde seu senso de humor. Numa noite em que voltava de um jantar, chamou da cozinha o chefe da segurança. No programa de tangos, a orquestra de Juan D’Arienzo interpretava La Cumparsita. Quando o segurança entrou, o Doutor lhe mostrou uma carteira e duas cédulas de identidade, e disse em tom grave:

– Bem, supõe-se que os senhores estão aqui para cuidar de mim, companheiros. E, vejam bem, esses documentos são seus, das pessoas que devem zelar pela vida do presidente revolucionário do Chile. Eu tirei de seus bolsos sem que vocês percebessem. Desse jeito...

Devolveu-os a eles com um sorriso magnânimo, após o que o segurança saiu para o pátio com o rabo entre as pernas. Era uma noite quente, com cheiro de boldo e terra seca, muito diferente das gélidas noites de Moscou, onde pelo menos consegui comprar o urso de pelúcia e uma matrioshka numa loja do centro que o governo sovié­tico abriu especialmente para a nossa delegação.

Quando ficamos a sós na cozinha, o Doutor puxou do seu paletó uma gravata de seda que guardava dobrada.

– O imposto revolucionário que eu cobrei de um amigo – explicou, enquanto a deixava nas minhas mãos. Pegou a garrafa de Chivas Regal e pôs no copo o gelo e sua justa medida de sempre. – Como vão os tangos? O toca-discos está esperando no living.

– Trouxe vários, Doutor.

– Onde estão? Não estou vendo.

– No meu quarto.

– E está esperando o quê? Ou você já estava indo embora?

– Estava esperando o senhor chegar, Doutor. Não se preocupe. Quer ouvir tangos?

Quem sabe isso melhorava seu estado de ânimo, que desde a viagem a Moscou se mostrava instável. Andava inquieto e incomodado, aflito, como quando perdia partidas de xadrez para mim na oficina de Demarchi em Valparaíso. Assim, fui até o alojamento dos seguranças e voltei com vários LPs. Sentamo-nos no living, onde o Doutor jogou o paletó no sofá e começou a examinar as capas.

– Não era este que estava tocando quando cheguei? – perguntou.

– Exatamente, Juan D’Arienzo.

– Ponha alguma coisa orquestrada. Também gosto de tango instrumental.

Escolhi Melodía porteña, na qual D’Arienzo toca com Alberto Echagüe. É uma melodia nostálgica, que me faz ter saudades de Buenos Aires. Uma coisa estranha, porque nunca pus os pés nessa cidade. Mesmo assim, conheço-a de cor por causa dos mapas e cartões-postais que coleciono. Permanecemos sentados nas poltronas, em meio aos quadros de pintura latino-americana, ouvindo em silêncio os acordes. O Doutor deu um gole no uísque, recostou-se em seguida no respaldar do sofá e cruzou as pernas, pensativo. Eu fiquei olhando a gravata nova que ele trouxera e que agora parecia uma cobra dormindo no chão.

– Esses ritmos são bonitos, mas fodem com a alma – comentou o Doutor. – São tristes demais.

– São os tempos, Doutor. Parece que no mundo todo la calle está dura, como dizem em Havana. – Na hora, vieram à minha mente as filas de gente esperando diante dos armazéns e restaurantes da ilha, as casas todas descascadas do Malecón e os gigantescos cartazes de Fidel espalhados por toda parte anunciando um glorioso futuro revolucionário.

– Sim, no mundo todo a situação está difícil, mas também não é para se matar por causa disso – comentou o Doutor. – Você já viu como voltei de Moscou: de mãos abanando. Os russos não se dignaram a me emprestar um copeque sequer para importar os alimentos que a revolução precisa. Ficaram lá só citando poemas de Neruda e discursos de Lênin, e fazendo declarações de solidariedade e amizade, o que não enche a barriga dos trabalhadores. Esse Leonid é um leão insensível. Enquanto eu falava, ele se convertia numa efígie, impassível. O bundão só assentia com aquela sua cabeçona de moai e aqueles escovões que ele tem como sobrancelhas. Filho da puta, ficou a noite inteira com aquele sorriso congelado, as pálpebras entreabertas para não me olhar direto nos olhos e me dizer a verdade: que eles estão cagando montes para o nosso processo, que com os companheiros cubanos eles já têm o suficiente, que não estão aí para desferir golpes no imperialismo nesse canto do planeta.

– Sinto muito, Doutor.

– E se o país vier abaixo e a direita e o imperialismo se impuserem aqui, irão aproveitar até a última lasca de nossa tragédia.

– Do que o senhor está falando?

– Estou dizendo que a revolução mundial precisa de triunfos e derrotas, hinos de combate e marchas fúnebres, heróis e mártires. Receio que o leão e seu pessoal já nos tenham reservado um lugar, Rufino.

– Realmente sinto muito, Doutor.

– Deixe estar. Em vinte anos, ninguém mais irá lembrar dele nem da frota de medalhas fuleiras que ele gruda no peito em cada cerimônia.

– Não sei como ele consegue andar ereto com tanto peso, Doutor.

– Fico imaginando a barulheira de lata velha que deve acompanhá-lo quando volta a seu dormitório – disse, fazendo girar os cubos de gelo no copo. – Com aliados como Brejnev e os que tenho aqui no Chile, não preciso de inimigos, Rufino. Enfim, do que é que eu falava mesmo?

– Que os tangos o deprimem, doutor.

– É verdade. Coloque alguma coisa de Julio Sosa.

– O senhor manda.

– Mas tome cuidado com a agulha. Se você quebrar, a Tencha o põe no olho da rua, porque ela prefere a dona Mercedes. Coitada, é boa, a Mercedes – soltou um suspiro –, mas a artrite fodeu com as mãos e os joelhos dela. Além disso, com ela não posso conversar como faço com você, nem soltar palavrões. Ela tem os ouvidos virgens, e acho que outras coisas também.

Entre os LPs que o Doutor deixou espalhados pelo chão, encontrei o que procurava. Coloquei Uno, numa interpretação de Julio Sosa. Era uma daquelas noites estranhas, sem bombas nem sirenes, nas quais os militantes dos dois lados pareciam ter assinado uma trégua. Dona Tencha dormia em seus aposentos do segundo andar. Reinava a calma em toda a cidade. Por isso, o piano e a orquestra começaram a ressoar tão nítidos como se estivessem na própria sala. O Doutor ouvia com a cabeça recostada no respaldar, olhando para o teto liso.

– Foi esse que eu pedi a Goyeneche para cantar – exclamou o Doutor, sobrepondo-se à voz teatral de Sosa.

– A letra é de Enrique Santos Discépolo – disse eu –, a música de Mariano Mores.

Uno busca lleno de esperanzas

el camino que los sueños

prometieron a sus ansias...

– Realista, essa letra – comentou o Doutor, comovido –, porque as pessoas procuram cheias de esperança o caminho dos sonhos, e sabem que a luta é cruel e é longa, mas mesmo assim lutam e se exaurem pela fé que as obstina. Pura política, companheiro...

Si yo tuviera el corazón,

¡el mismo que perdí!

Si olvidara a la que ayer

lo destrozó... y pudiera amarte...

me abrazaría a tu ilusión

para llorar tu amor..

– Que música incrível – acrescentou o Doutor, depois de cantarolar o estribilho. – E quando a ouço e vejo o arrebatamento com que você a escuta, penso aqui comigo que você, como o Werther de Goethe, também sofre por amor.

– Eu? Não, Doutor – repliquei, firme. – Eu vivo feliz com minha mulher.

– Mas eu tenho um palpite que você sofre e que é por isso que gosta de tangos – insistiu, acomodando-se no sofá, colocando os pés em cima dele, olhando pra mim com a cabeça inclinada, convencido do que dizia.

– Não é assim, Doutor.

– Você está realmente apaixonado por Amanda?

Aqui descrevo as coisas tal como aconteceram, ou melhor, tal como me lembro que aconteceram. Não minto, nem acrescento nada de minha própria lavra, ou pelo menos tento não fazer isso. O certo é que, com essa pergunta marota, o Doutor quis tocar o fundo de minha alma. Nunca lhe falei de Gricel, meu primeiro amor, aquela moça com cara de menina, pele morena e cabelão preto, denso, que perdi há muito tempo. Só contei da Amanda. E é impossível que ele conheça meus pensamentos mais secretos. Será que meu gosto por tangos me deixa nu diante dos outros?

Mas ele não pode chegar aqui e ficar arrotando sabedoria sobre o amor, quando eu, pelo fato de passar dias em sua casa, já o vi sair à noite disfarçando sua aparência com um cachecol e um chapéu de aba larga, num carro velho, acompanhado apenas por um motorista da segurança. Vai a reuniões que duram até a manhã seguinte e que dificilmente devem versar sobre política. Mas fui contratado para fazer serviços para o Doutor, não para ficar xeretando sua vida privada, que diz respeito apenas a ele e à sua mulher.

– Claro que gosto da Amanda – afirmei.

– Não perguntei se você gosta dela, mas se você está apaixonado por ela – disse ele, brincando com o copo. – São coisas diferentes.

– Eu sei. Todos temos nossos sofrimentos de amor – admiti.

O Doutor se levantou e voltou da cozinha com um copo cheio de água e outro vazio. Ofereceu-me um Chivas Regal, o que aceitei feliz da vida porque meu bolso só dá para vinho de três tostões e pisco barato, e nunca tinha experimentado a bebida de ricaços e fazendeiros. Fiquei animado e sorvi um longo gole, que tinha gosto amadeirado e meu deu ânimo para continuar falando com o Doutor.

– Você me contou que o Discépolo era político – continuou ele, mudando de assunto.

– Quer ouvir?

Levantei o braço da vitrola justo quando El Varón del Tango começava a cantar En esta tarde gris.

– Deixe, deixe – ordenou o Doutor e, limpando a garganta, parou junto ao janelão do living para ouvir a letra e olhar para onde devia estar a piscina.

¡Qué ganas de llorar

en esta tarde gris!

En su repiquetear

la lluvia habla de ti.

Remordimiento de saber

que, por mi culpa, nunca,

vida, nunca te veré.

Andou lentamente de uma ponta da sala até a outra como se estivesse medindo o espaço, e de repente virou-se carregado de uma energia surpreendente e ensaiou alguns passos de tango que – não tenho como não registrar aqui – foram um perfeito fracasso. É um bom político, mas um péssimo dançarino. Depois ficou em pé, quieto, ouvindo.

Ven,

triste me decías,

que en esta soledad

no puede más el alma mía...

Ven,

y, apiádate de mi dolor,

que estoy cansado de llorar,

de sufrir y esperar

y de hablar siempre a solas

con mi corazón.

– Ponha o Discépolo, acho melhor – disse após um tempo, no meio do living. – Mas coloque o Cambalache, pois desde que voltei de Moscou estou vendo o mundo do jeito que esse tango descreve...

– O senhor voltou de lá como eu do armazém quando ia buscar farinha, Doutor.

Virou-se para me lançar um olhar sério. Depois passou uma das mãos pelo cabelo e ajeitou os óculos.

– Você voltava de mãos vazias para sua casa, mas eu voltava para um país com nove milhões de habitantes sem comida – afirmou, grave. – Enfim, ponha o Discépolo. Deixe-o cantando e pode ir descansar. Amanhã ainda estaremos no poder...

Que el mundo fue y será una porquería

ya lo sé

¡En el quinientos seis

y en el dos mil tambíén!

Que siempre ha habido chorros

maquiavelos y estafaos

contentos y amargaos

valores y dublés...