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Hoje à noite chegou à rua Tomás Moro o general Augusto Pinochet, que está encarregado do Estado Maior. Ou seja, é o segundo homem na cadeia de comando do Exército, que é encabeçado pelo general e ministro do Interior, Carlos Prats. Quando apareceu, eu já estava de saída, tinha terminado o inventário da despensa e já podia voltar para casa. Mas preferi continuar na cozinha porque em casa o ânimo de Amanda andava muito exaltado.
Talvez seja melhor começar este capítulo confessando que, na realidade, não fui embora para bisbilhotar. Fiquei para poder dar uma olhada no general e ouvi-lo falar com o Doutor. Insisto: eu estava pronto para sair, tinha conseguido macarrão e arroz num armazém de San Diego, carne no matadouro Portales de Valparaíso, e umas caixas de vinho na embaixada da Bulgária, país que, na opinião de alguns que jantam às vezes com o Doutor, constitui um modelo para o Chile, embora, se vivem lá como se vive em Havana ou em Moscou, duvido que seja um bom país.
Seja como for, o general chegou às dez da noite na Tomás Moro, quando dona Tencha já havia se recolhido aos seus aposentos depois de jantar fora com uma filha. Um segurança anunciou que o general chegava sem acompanhante, dirigindo um velho Peugeot. Estava de terno azul, camisa branca e gravata vermelha com prendedor, e não de uniforme. Isso acendeu minha curiosidade. O que pretende um general em trajes civis numa reunião sem testemunhas com um presidente revolucionário? Quando entrou na área de espera de audiências, espiei-o através da porta da sala de jantar. Um dos impecáveis e discretos auxiliares que a Marinha colocou à disposição do Doutor ofereceu-lhe assento.
O general é um homem já de certa idade, com olhos claros, bastante cabelo, tem o pescoço curto e é robusto como um estivador, com certeza um daqueles mal-encarados. Não parece general, ou quem sabe eu tenha uma ideia diferente de um militar. Parece mais um empresário ou um shusheta.40 O Doutor o cumprimentou com amabilidade e com um aperto de mão curto e formal, e convidou-o a acompanhá-lo até o living, onde sentaram-se e conversaram, e o auxiliar da Marinha ia lá de vez em quando com uma bandeja de aperitivos. Eu os espiava da sala de audiências. Fingia arrumar as coisas. Ouvi os dois conversando, às vezes em voz alta, de repente de modo mais sigiloso, soltando uma ou outra gargalhada, mantendo prolongados silêncios. Davam a impressão de que se conheciam. Se for assim, é bom, porque o Doutor precisa do apoio dos militares para levar adiante seu programa de governo. Pelo que chega aos meus ouvidos, ele acredita que sejam respeitadores da ordem constitucional e que irão apoiá-lo até o último dia de seu mandato.
Apesar dessa confiança nos militares, a mim, pelo menos, o personagem não convence. Pode ser preconceito, mas me lembra mais o personagem daquela cançãozinha Del orre batallón/ ¿vos sos el capitán,/ vos creés que naciste/ pa ser un sultán? 41 Para começar, não chega nem aos pés do general Prats, que é todo cavalheiro, de olhar tranquilo e amável, quase terno, eu diria, embora isso soe meio afrescalhado vindo de outro homem. Mas esse general non me piace. As pessoas que não parecem o que são ou deveriam ser despertam na hora minha desconfiança. Ou seja, um jogador de futebol deve parecer um jogador de futebol, um maestro deve parecer um maestro, um presidente deve parecer um presidente, e um general deve parecer um general. E esse aí andava como civil, dissimulando o que é, coisa estranha.
Foi embora mais ou menos em uma hora. Não esvaziou o copo de uísque que lhe foi servido, ou melhor, mal encostou nele. Tenho o palpite de que ficou com medo de soltar a língua. Outra razão para desconfiar. O Doutor acompanhou-o até as palmeiras da porta, onde se despediram, e depois o general entrou em seu carro. Senti logo em seguida que a conversa tinha reanimado o Doutor, como se tivessem lhe trazido boas notícias ou perspectivas favoráveis, algo que sem dúvida me alegra, pois nos últimos tempos começam a correr boatos de que está sendo armado um golpe de Estado. A situação política e econômica piorou ainda mais depois de nossa visita a Moscou, de onde voltamos de mãos vazias. Faz pouco tempo que o Doutor confidenciou a um visitante, aqui no living, que a negativa de Brejnev, Gromyko e Kossygin, e de toda a velha guarda do Kremlin, de conceder-lhe um crédito para comprar alimentos no mercado mundial deixou-o deprimido. “Foi um dos momentos mais difíceis de minha vida política”, disse o doutor. Enfim, a falta de alimentos só piora o ânimo das pessoas.
E isso é delicado. Extremamente delicado, como diria o Doutor. Em meu bairro, as pessoas andam frustradas com o desabastecimento e a inflação. O que ontem custava dez, na semana seguinte custa cem, e isso apenas se a pessoa tiver a sorte de encontrar o que procura. E, como se fosse pouco, os senhores da oposição andam denunciando nos jornais, nas rádios e na televisão que avançamos em direção a um desastre econômico e à instauração de uma ditadura comunista. Enfim, talvez a visita do general seja um sinal auspicioso, uma mostra de que os militares continuam apoiando o Doutor, quem sabe. Em todo caso, fiquei com a impressão de que o Doutor confia em Pinochet, e, para dizer a verdade, ele poucas vezes se engana em seu faro político.
– Não está ouvindo tangos esta noite? – me perguntou ao chegar à cozinha. Percebi nele um olhar satisfeito e otimista, como se tivesse obtido um triunfo. Os auxiliares da Marinha já haviam se retirado e eu estava para ir embora com meu frango da semana.
– Não, Doutor. Não é bom que suas visitas ouçam ruído na cozinha – respondi.
– O que achou do general? – perguntou o Doutor enquanto tirava da geladeira uma garrafa de leite com suco de laranja que dona Mercedes preparara ao meio-dia. Despejou o suco num copo e bebeu com gosto. – Não deveria tomar cítricos à noite, um suquinho de goiaba ou de manga cairia muito melhor.
– Quer saber a verdade, Doutor?
– Diga a verdade, homem. É para isso que estamos aqui.
– Não fui com a cara dele, Doutor – disse eu ali da porta, com as chaves da caminhonete na mão.
– Por que não? – descansou seu copo vazio em cima da mesa, junto ao rádio.
Expliquei-lhe minha teoria sobre as pessoas que não parecem o que são.
– E eu? Pareço o que sou?
– O senhor, sim, Doutor.
– Mas vou lhe dizer: não gosto mais de parecer um presidente, Rufino. Quero ser e parecer um presidente de novo tipo, um revolucionário, ativo, incansável, comprometido com seu povo. Não quero me ver como os presidentes tradicionais, a menos que seja como Balmaceda, esse sim tinha os culhões bem postos – afirmou, enfatizando suas palavras com um movimento de cabeça erguida no meio da cozinha, o peito inchado, olhando-me de lado como costumam fazer os melros.
– Reparou nas mãos do general? – perguntei.
– O que têm as mãos dele?
– Veja as minhas. – Mostrei-as. – São grossas, morenas e tenho os dedos até machucados. Olhe os calos nas bordas das palmas e a cicatriz no pulso. São as mãos de um antigo sapateiro e peão de navio baleeiro, hoje padeiro em função das coisas da política. Viu as mãos do general?
O Doutor ficou me olhando sério, com uma mão enterrada no bolso de sua calça escura. Senti que me escutava com os olhos apertados atrás das lentes dos óculos: o queixo levantado, aspirando o ar pelo nariz, apertando os lábios. Seu bigode me pareceu mais grisalho do que nunca.
– O que têm as mãos do general? – perguntou.
– Não têm nada.
– E então?
– Aí está problema.
– Como assim?
– Lembra-se das mãos do Demarchi?
– Mais ou menos.
– Como eram?
– Eram mãos com rugas profundas, manchadas de tinta, os dedos com manchas roxas.
– Mãos de sapateiro, ou não? Sim ou não? Não está percebendo? – perguntei, levantando o tom da voz. – Ele não precisava ficar explicando o que era. Qualquer um sabia, era só olhar. As mãos dele cantavam isso aos céus.
– E daí?
– Daí que as mãos desse general, ao contrário, são lisas e pálidas. Ele cuida demais delas. Com certeza deve passar creme Nivea todas as noites. E as unhas, então, compridas e limpas? Brilham como hallullas que acabaram de sair do forno. Esse general não tem mãos de soldado, Doutor. Não percebe? Por isso desconfio dele.