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“Oh yes I’m the great pretender

Pretending I’m doing well

My need is such I pretend too much

I’m lonely but no one can tell.”42

The Great Pretender

THE PLATTERS

Foi em Leipzig, cidade da Saxônia, que nasceram as marchas que derrubaram o regime comunista da República Democrática Alemã e o Muro de Berlim. Cheguei à sua gigantesca estação num trem de alta velocidade da Bundesbahn, banhado em lembranças. Eu estivera lá nos anos 1970, depois de meu agitado período de residência no Chile, contatando uma espiã dupla nossa que era oficial da Stasi.43 Ela foi descoberta em 1980 e condenada a prisão perpétua. Salvou-se por pouco da pena capital graças a Markus Wolf, o espião sem rosto, o mítico chefe da HVA da ex-República Democrática Alemã.

Pam Schneider, uma jovem magra e abatida, de cabelo liso e aspecto mediterrâneo, trabalhava para Wolf em Damasco disfarçada de correspondente da revista alemã-oriental Horizont. Dali nos informava de vez em quando sobre as relações de Berlim Oriental com extremistas palestinos e sobre a infiltração no BND, a espionagem alemã ocidental, que mais parecia uma peneira.

Nunca mais soube de Pam, com quem conversei pela última vez na escadaria de pedra que desce até o célebre Auerbachs Keller, enquanto aguardávamos na fila a liberação de alguma mesa. Alertei-a então sobre a existência de um informante e que Markus Wolf, em seu escritório na rua Normannen, devia estar a ponto de descobrir sua traição. Ofereci-lhe uma fuga para Praga, de onde poderia levá-la clandestinamente para o Ocidente através da Hungria, mas ela recusou minha oferta, pois não podia abandonar a família. Uma decisão lamentável. Só foi libertada após a queda do Muro.

Agora, em 1995, exatamente quinze anos depois, volto à sua melancólica e deprimente cidade. Desta vez não o faço disfarçado de empresário canadense interessado em estabelecer contatos comerciais na feira industrial de Leipzig; venho como um homem comum que precisa de informação sobre a própria filha e para sua própria consciência, não para a central em Langley, na Virgínia. Não era uma tarefa fácil. Instalei-me no quarto andar de um hotel situado diante da monumental estação de trem.

Reina na cidade certa prosperidade, após seis anos de democracia e liberdade econômica. Em suas ruas centrais, percebo um crepitar de entusiasmo e um ritmo agitado que são ausentes no socialismo. Vejo gente sorrindo, mulheres com pacotes e sacolas de plástico de lojas de redes internacionais. Celebro o brilho de certas fachadas restauradas, a abundância de produtos nas antigas e espartanas lojas socialistas. O velho Konsum, o maior centro comercial da Leipzig socialista, acabou transformado em uma superloja de renome europeu, e o ar já não cheira mais a carvão de hulha como no passado. Desapareceram finalmente a tristeza e a escassez, mas ainda palpitam a reserva e a melancolia dos anos 1970, ainda primam as fachadas de estuque desgastado e as ruas tortuosas e escuras, cheias de buracos.

Nataniel Bravo, o tocador de charango do grupo folclórico Tiempos de Cambio, aceitou meu convite para ir ao Auerbachs Keller. Combinamos de nos encontrar ali às seis da tarde para o Abendbrot. No telefone, à distância, mostrou-se disposto a conversar, embora em seguida tenha esclarecido que não se lembrava de Victoria. Cheguei pouco antes das seis à Mädler Passage, onde o músico já me esperava apoiado na base da escultura de Fausto e Mefistófeles, com o Neues Deutschland debaixo do braço.

Descemos em silêncio as escadarias até o porão. Como nos velhos tempos, certifiquei-me através dos vidros de que ninguém nos seguia. Mas já não há muito com que se preocupar. A parte oriental da Alemanha é território aliado desde 1990 (escrevo como se ainda trabalhasse para a CIA). Assim, entrei relaxado no local e curti o fato de simplesmente me sentar junto a um pilar sem temer que o inimigo estivesse me espiando. Nataniel é alto e magro, testa alta, cabelo preto e liso, bigode grosso, e suas grandes pálpebras dão-lhe um ar de aflição.

– Quer dizer que sua filha estudou no Chile nos anos setenta – disse. A rigor, estava apenas repetindo o que eu lhe contara por telefone desde Santiago.

Expliquei-lhe minha situação – omitindo, obviamente, a parte essencial. Ele acariciava o queixo enquanto me ouvia.

– E o que o senhor fazia no Chile na época? – perguntou, com um palito de dentes entre os lábios.

Disse que era comerciante.

– Dos Estados Unidos?

– Canadá.

– Achei que fosse norte-americano.

– Se o senhor imagina que fui agente da CIA, está equivocado. Fui vendedor de câmeras e acessórios fotográficos.

– No Chile de Allende?

– Pois é.

– Interessante. Eu militava nas Juventudes Comunistas na época – afirmou com orgulho, depois de termos pedido eisbein com knödel e rotkohl. – Cantava Bandera Roja e lia Así se templó el acero, de Ostrovski. Portanto, estávamos em trincheiras opostas.

Como esquerdista fiel, ele traçava de imediato a linha divisória entre sua pessoa e a minha. Tentei imaginar sua vida de exilado profissional naquela parte da Alemanha, que havia sido, mas já não era mais comunista, naquele país tão distante de sua pátria em termos de democracia. Nada mais difícil para um exilado político do que admitir que já não existem as condições que o forçaram ao exílio, e que agora pode voltar ao país que o expulsou. Abordar com tato a vida privada do interlocutor, neste caso a de um exilado, é um recurso frutífero, que a CIA, sagaz, sempre sugere empregar. Nada debilita mais a alma do outro, nada o convida tanto à confidência como deixá-lo estender-se sobre as vicissitudes de sua própria vida cotidiana. De resto, que exilado não se sente abandonado e órfão de compaixão? Que exilado não precisa que ouçam o que tem a dizer e que o compreendam, que lhe passem uma mão amável na cabeça?

– Essas trincheiras já não contam mais, senhor Bravo – disse eu. – São o passado, o lixo da História. Entendo que os acontecimentos de 1989 foram dolorosos para o senhor. Para mim, confesso-lhe com franqueza, foram surpreendentes e decepcionantes. Sabe por quê? Porque acabou o tempo em que o mundo estava dividido em dois campos que lutavam por ideais opostos, um calcado no individualismo e na iniciativa privada, o outro nas massas e na produção coletiva. Agora vivemos uma etapa em que não existem nem a paixão nem a epopeia nem as bandeiras. Ninguém sabe mais pelo que luta.

Nataniel pousou os olhos sobre o Neues Deutschland, o jornal do falecido Partido Comunista, para se esquivar dos meus. Agora era um jornal reduzido a um par de páginas, renovado, quase socialdemocrata, não o antigo órgão oficial do partido e do governo comunistas, que a História havia-se encarregado de lançar à lixeira.

Podia imaginar seu naufrágio: após a derrubada de Allende, fugira do regime militar procurando refúgio em sua utopia tornada realidade atrás do Muro de Berlim. Ali cantou em festivais contra Pinochet e a favor do socialismo, cantou as grandes alamedas que um dia iriam se abrir de novo, os direitos humanos e o retorno à democracia. Ali, sua pele morena, seus grossos bigodes mexicanos e sua sofrida biografia o ajudaram a derreter o coraçãozinho das mocinhas alemãs e ficaram à disposição do aparato cultural socialista, até que no dia 9 de novembro de 1989 o sistema desmoronou como um castelo de cartas. Pode haver algo mais doloroso e frustrante para um autêntico comunista do que ter visto como o povo esmagava seu sistema supostamente popular e democrático?

Agora, no capitalismo, com certeza Nataniel pagava um aluguel bem mais alto por seu apartamento. Já tinha sido despojado de seu privilégio de artista oficial do governo da cidade de Leipzig e procurava trabalho entre milhares de alemães que haviam ficado desempregados por culpa da privatização das antigas e ineficientes empresas de “propriedade do povo”.

– Disse que sua filha se chamava Victoria? – perguntou, quando dávamos colheradas em nossa soljanka, a mesma sopa russa que eu pedira décadas atrás, quando alertei Pam.

– E que estudava no Departamento de Antropologia e Arqueologia, na Universidade do Chile, em Santiago – acrescentei. Depois menti: – Um professor de sobrenome Berenguer me contou que o senhor foi namorado de minha filha.

– Não é verdade – retrucou, sério, o charanguista, enquanto partia uma fatia de pão de centeio.

– Não foi namorado dela? – simulei estar surpreso, mas confiei em que ele, sem querer, me conduziria à pista que eu precisava. – Ele me disse que o namorado dela era o charanguista. E o senhor tocava charango no grupo, não é isso?

– Ainda toco charango. De vez em quando. Mas não fui namorado de sua filha.

– Ah, não? Minha esperança era que o senhor tivesse sido.

– Era só amigo dela – esclareceu Nataniel. – Mas conheci seu namorado.

Senti-me reconfortado por sua afirmação.

– E quem era o namorado dela? – perguntei, controlando minha impaciência.

– Um rapaz que às vezes nos acompanhava. Um sujeito versátil, que tocava instrumentos, pintava e fazia artesanato inspirado em motivos mapuches.

– É algum desses aqui?

Peguei a foto onde apareciam Victoria e seus três acompanhantes e mostrei a ele.

– É algum desses? – insisti.

Acariciou o rosto com a palma da mão.

– É este aqui – apontou para o rapaz que está num canto da foto. Um sujeito magro, de pele bronzeada e olhos grandes. O cabelo ondulado lhe cai sobre a testa, dando-lhe um ar brincalhão, alegre, mas ao mesmo tempo confiante.

– Qual era o nome dele?

– Não me lembro.

– Como não se lembra? Era seu amigo...

– Amigo é modo de dizer... Simón. Chama-se Simón.

– Simón do quê?

– Simón Valladares.

– Tem certeza de que era ele o namorado de Victoria? – perguntei. Achei que mentia. Senti a impaciência corroer meu estômago. Teria adorado espremer-lhe a verdade gota a gota para cumprir a promessa que fiz um dia à minha filha. – Não minta para mim. Tudo isso é um sofrimento que não desejaria a ninguém. Tem certeza?

– Absoluta. Era ele o namorado de sua filha – respondeu, baixando a cabeça.

– Não era um tal de Héctor?

– Já lhe disse o nome.

– Ou talvez Aníbal? – perguntei, lembrando-me do segundo nome de Héctor.

Tive a impressão de que suas feições ficaram tensas.

– O nome dele é o que eu lhe disse – reiterou.

– E era o namorado de minha filha...

Enquanto retiravam nossos pratos, atravessou-me com seus olhos escuros e depois optou pelo sarcasmo:

– Geralmente supõe-se que o próprio pai deva saber essas coisas melhor do que um amigo da filha.

– Não tive tempo para me dedicar a ela, Nataniel. Se você teve filhos naquela época, deve ter acontecido a mesma coisa com você. Ninguém tinha tempo para a família. Tudo se reduzia à política...

Incomodava-me que o cúmplice de um regime desaparecido me faltasse com o respeito. Guardei a foto no bolso da camisa com uma sensação de fracasso e achando que Nataniel escondia alguma coisa importante. Meu sexto sentido nunca me enganou.

– Se o próprio pai não sabe... – balbuciou Nataniel entredentes.

– Não zombe. Estou pedindo sua ajuda, não uma lição de moral. Ambos estamos maduros para essas coisas. Você sabe que ninguém nunca dedica aos seus o tempo que gostaria de dedicar.

– Talvez no exílio eu não tenha dedicado tempo suficiente aos meus filhos – admitiu enquanto passava a mão no cabelo. – Mas nunca me vi obrigado a perguntar ao inimigo a respeito deles...

42 Oh, sim, eu sou o grande fingidor / Fingindo estar bem / Minha carência é tal que finjo demais / Sou um solitário, mas ninguém o diria. [N. E.]

43 Serviço de inteligência e polícia secreta da antiga República Democrática Alemã (Alemanha Oriental).[N. E.]