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“When I am in trouble or out of step
If my balance has been upset
Oh, there is a feeling I cannot accept.”58
I’m not the man I used to be
FINE YOUNG CANNIBALS
Beltrán Lemus me esperava sentado em uma mesa do Café Santos, tomando um espresso. É um sujeito magro, de olhos verdes, barba desalinhada e cabelos pretos, que fala com sotaque caribenho. Vestia-se sem muito capricho naquela capital tão atenta às aparências: calça cinza-chumbo, camisa roxa, tênis sujo. Identifiquei-o porque em cima da mesa descansava o livro combinado: Pisagua. La semilla en la arena, de Volodia Teitelboim.
– Conheço alguém que localizou sua filha nos anos 1970 – disse Beltrán. – Mas primeiro preciso que me conte uma coisa.
– Como quiser. – Fingi naturalidade.
– O senhor é canadense, mas mora nos Estados Unidos, certo?
– Há dez anos.
– O que fazia no Chile em 1973?
– Intuo aonde quer chegar com sua pergunta – sorri. – Mas o senhor está equivocado. Eu na época era de fato um vendedor de equipamentos fotográficos.
– E fotógrafo, também – acrescentou Beltrán, enquanto despejava na xícara o envelopinho de açúcar. – E fotografava o quê?
– A cidade, paisagens, o ambiente político daqueles dias. O mundo todo tinha muito interesse pela revolução chilena.
– E esse trabalho lhe permitia morar no bairro alto e pagar um colégio particular para sua filha?
– Sim.
– Não tinha outras atividades por baixo do pano?
– Se tivesse sido o que o senhor supõe, não estaria aqui solicitando dados sobre minha filha. Uma poderosa instituição estaria me ajudando nisso.
– Como sabe disso? – Beltrán olhou em meus olhos por um segundo, depois pegou um palito de dente e o instalou entre os lábios. Eu aproveitei para pedir um café com leite, que chegou em um minuto.
– São as vantagens de um agente – disse eu, encolhendo os ombros. – É como aparece nos filmes.
– Diga-me outra coisa – acrescentou Beltrán, coçando uma orelha. – De onde o senhor tirou que sua filha era amiga de um sujeito chamado Aníbal?
A pergunta me desconcertou. Lembrei-me da opinião de Lepe Kroll, de que minha investigação invadia um território que alguém – um grupo, uma instituição ou um governo – protegia com muito zelo. Por que o Aníbal que minha filha menciona seria tão especial?
– O nome dele aparece em uma carta que ela me deixou – expliquei. – Nela, minha filha me pede que o localize para entregar-lhe uma coisa. Foi ela quem me passou esse nome. Não faço ideia de quem seja Aníbal. Tenho apenas uma foto, e dizem que ele é uma das pessoas que aparece nela, e só. Não posso acreditar que o que estou fazendo seja algum delito.
– O que o senhor precisa entregar ao Aníbal?
Mexi meu cafezinho com leite, desconfortável. O espaço circular do café se tornou asfixiante para mim. A cidade vibrava maligna lá fora, alimentada por uma curiosidade malsã que atravessava as paredes e se instalava no local. Suponho agora que Beltrán efetivamente mantenha vínculos com o Círculo de Leipzig. Levantei os olhos para ele e disse:
– As cinzas. As cinzas são o que preciso entregar-lhe.
– Que cinzas?
– As de minha filha.
Beltrán baixou o olhar e pousou uma das mãos em cima do livro, pensativo. O palito ia de um canto a outro de seus lábios, como há décadas passeavam os pregos entre os lábios de Demarchi. Uma veia palpitava em sua têmpora direita. Se Beltrán começasse a desconfiar de mim, eu poderia perder o fio que me levaria ao passado de Victoria. Não mencionei o caderno com Lênin na capa por receio de que pedisse para vê-lo.
– Preste bastante atenção ao que vou lhe dizer – anunciou com voz anasalada e aproximou seu rosto do meu. – Uma amiga que se exilou em Weimar, a antiga República Democrática Alemã, vai entrar em contato com você em breve. Se você disse a verdade, ela talvez possa ajudá-lo. Seu nome é Birgit. E não se preocupe, ela também saberá localizá-lo no hotel.
58 Quando estou com problemas ou fora de sintonia / Se meu equilíbrio foi perturbado / Oh, há um sentimento que não posso aceitar. [N. E.]