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O Doutor aceitou meu plano com um misto de curiosidade e insegurança. No escritório, em frente a seu quarto, tingi de preto seus bigodes com o rímel de dona Tencha, e depois emprestei-lhe meus óculos de armação redonda, com lentes mais finas que os dele, meu casaco de lã preta e o chapéu a la Gardel.

– Os seguranças vão confundi-lo comigo – disse-lhe, enquanto ele se olhava surpreso no espelho de corpo inteiro que fica grudado na porta do guarda-roupa do seu dormitório.

– E você acha que os companheiros do GAP são tão palermas que não vão perceber que há dois Rufinos saindo na caminhonete esta noite? – perguntou.

– Para lhe ser franco, os da guarita nunca reparam muito em quem sai. Preocupam-se mais em ver quem entra.

– E eles têm razão. Aliás, essa foi uma instrução minha.

– Como vê, os seguranças obedecem suas instruções – disse, enquanto assentava bem os velhos óculos de reserva que trago sempre sob o assento da caminhonete.

– E aonde iremos? – perguntou o Doutor.

– Se não se incomodar, para Valparaíso. Para a cidade onde o senhor nasceu, onde nos conhecemos e aprendemos com Demarchi.

– Mas para que lugar, especificamente?

– Para a rua onde ficava a oficina de Demarchi, Doutor. O que acha?

– Por que não? – retrucou, esboçando um sorriso incrédulo. – E depois?

– Depois vamos a algum lugar onde toquem tangos.

– E se me reconhecerem? – perguntou, olhando-se de perfil no espelho. Ajeitou meus óculos no nariz e inclinou a aba do chapéu em cima do rosto.

– O senhor acha que, com a bagunça que reina no país, alguém será capaz de imaginar que o presidente vai chegar vestido de Carlos Gardel a uma casa de tangos de Valparaíso?

– Exatamente por isso.

– Esqueça. Ali, além disso, todo mundo está meio chapado e a iluminação é pobre. Nunca vão reconhecê-lo, Doutor.

Andou decidido até o jardim traseiro, subiu na caminhonete Ford e aproximou o veículo do casarão, afastando-se das cabinas dos seguranças que haviam sido construídas na quadra de tênis. Parou diante da cozinha, esperou que eu saísse. Um segurança vigiava a distância, sentado numa cadeira, mas na realidade eu sabia que dormitava como sempre. Sei disso, pois essa é a hora em que costumo ir embora.

Chegamos à guarita do portão e o guarda deu boa-noite ao Doutor, sem perceber que não era eu quem estava guiando.

Uma vez lá fora, sentindo-nos felizes e livres, pegamos o rumo da Estação Mapocho. Eram onze da noite. A cidade repousava tranquila, pelo menos o bairro alto. Mais abaixo, vimos filas e fogueiras diante de armazéns e açougues, pichações nas paredes anunciando “Jacarta vem aí”,60 e brigadas de operários com capacetes vigiando empresas expropriadas, de cujas janelas pendiam faixas com palavras de ordem revolucionárias.

O Doutor estacionou a caminhonete numa das laterais do Mercado Central, que estava fechado, é claro, e caminhamos em direção a La Piojera. Atravessando um corredor, desembocamos num longo balcão no qual havia jarros com Borgonha. O lugar estava lotado de gente animada. Uns casais dançavam cueca61 ao ritmo de um trio de violão, percussão e acordeão. Sentamo-nos num canto.

– Peça para mim um pipeño62 com arrollado de huaso e batatinhas fritas – ordenou-me o Doutor com o chapéu ainda enfiado.

– Não temos pipeño – respondeu o garçom.

– Como não têm? – reclamou o Doutor.

– Pois não temos, cavalheiro. Não está chegando do sul por causa da greve dos caminhoneiros. Temos cerveja, mas só vendemos duas garrafas por cabeça – disse o atendente.

Comemos arrollado e tomamos cerveja assistindo ao baile.

– Este local foi inaugurado em 1896. Talvez isso interesse ao cavalheiro que, pela pinta, parece ser argentino – explicou o garçom quando nos trouxe a conta.

– E o nome, vem de onde? – perguntou o Doutor, percorrendo com o olhar aquele espaço com ar de taberna rural.

– Foi uma contribuição do presidente Arturo Alessandri, trazido aqui por uns amigos em 1922 para que se refrescasse com chicha.63 Não gostou nada do lugar. Perguntou por que o tinham trazido a uma piojera...64 e então o nome ficou.

– Quer dizer que foi um presidente quem batizou este bar – comentou o Doutor, levando à boca o último pedaço de arrollado.

– Isso mesmo, cavalheiro. No início, era apenas um lugar popular. Mas agora vem aqui todo tipo de gente, tanto gente do povo como bem-nascidos, o senhor sabe.

– E aqui também se discute política? – indagou o Doutor.

– Claro que sim, cavalheiro. Aqui respeitamos todas a opiniões. E nossa clientela é de todas as classes, o senhor sabe, vai dos bacanas aos esculhambados, recebemos todos, pobres e ricos. Além disso, já recebemos aqui vários presidentes: Alessandri, Juan Antonio Ríos e Eduardo Frei, por exemplo.

– E o atual? – perguntei.

– Ainda não apareceu por aqui. Seria bom, para ele oxigenar um pouco a cabeça. Tanta política não faz bem. Com a escassez que há, aqui não conseguiriam nem crucificar o Cristo. Quando tem prego, não tem madeira, quando tem madeira, falta pano de linho, e quando tem pano de linho não tem prego...

– Quer dizer que aqui as pessoas discutem pouco sobre política... – insistiu o Doutor.

– Aqui o pessoal está em outra, cavalheiro. Para quem está aqui, dá na mesma quem é culpado do que está acontecendo. O que as pessoas sempre querem, o senhor sabe, é que haja ordem e trabalho, que alguém corte o bolo, como se diz em bom chileno.

– Bem, é melhor irmos – propôs o Doutor, quando o garçom já havia se afastado. Alguns casais continuavam dançando cueca na maior animação, outros batiam palmas sentados às mesas, e no palco um alegre gordo com pandeiro se juntara agora ao trio.

– Que tal ir a outro lugar? Ou prefere voltar à Tomás Moro? – perguntei.

– Não me prometeu que íamos até Valparaíso, companheiro? – perguntou o Doutor. Pela primeira vez em muitos dias, senti que ele estava animado. Quando foi pagar, percebeu que havia esquecido a carteira no casarão.

Eu é quem tive que pagar e ainda por cima acrescentar a generosa gorjeta que o Doutor me indicou.

60 Alusão à grande matança de seguidores do presidente Sukarno da Indonésia, desencadeada após sua deposição. Estima-se que de 1965 a 1967 foram assassinadas entre 500 mil e 1 milhão de pessoas. [N. T.]

61 Cueca é uma dança tradicional chilena, uma das mais populares no país. [N. T.]

62 Pipeño é um vinho tinto feito de uvas comuns, diferente dos vinhos produzidos com uvas selecionadas, e originalmente vendido em barris ou pipas. [N. T.]

63 Chicha é uma bebida fermentada de milho, tradicionalmente produzida pelos povos indígenas andinos, desde o Império Inca. [N. T.]

64 Piojera (“piolheira”) é como se costumava chamar no Chile qualquer lugar marca­­da­­men­te insalubre, passível de abrigar piolhos. [N. T.]