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Com um ronco asmático, minha escangalhada caminhonete Ford cruzou a noite em direção ao litoral. A meio caminho entre os últimos bairros da capital e as primeiras casas dos cerros litorâneos, pouco antes de chegar a Curacaví, fomos interceptados por uma patrulha militar. Estou no volante, pois com meus óculos velhos enxergo melhor que o Doutor na escuridão.

– Documentos – exigiu um soldado, iluminando-me com sua lanterna. Outros soldados rodearam a caminhonete e deram uma olhada na caçamba vazia. Vestiam uniforme de combate, com fuzil Mauser e o rosto borrado de graxa.

Depois de examinar meus documentos e os da caminhonete, o soldado ordenou que descêssemos do veículo para revistar embaixo do assento. Procuravam armas.

– E isso aí é o quê? – perguntou, com meu caderno na mão. Deu uma olhada, suspeito que nem identificou o líder da revolução de outubro na capa, e folheou as páginas.

– Esse é um diário de minha vida – respondi, meio constrangido.

– Diário de vida? – perguntou, sorrindo. – Seu? Como os diários que as menininhas escrevem?

– Nunca vi um diário escrito por meninas.

– Ah, não? E o que você conta aqui?

– A minha vida de padeiro.

– Padeiro?

– Sim. Padeiro durante a vida toda. Com muita honra.

– Se o seu pão é que nem sua letra, Deus me livre deles.

Os soldados riram e eu guardei o caderno de novo na caixa de ferramentas da caminhonete. O Doutor mantinha-se junto à porta aberta do veículo com as mãos no paletó. Vi-o firme, altivo e ereto como um poste de luz. A alguns metros de distância, no escuro, atrás de um muro erguido com sacos de areia, o lume de cigarros acesos e os reflexos de capacetes salpicavam a noite.

– Belo chapéu – comentou o soldado, dirigindo-se ao Doutor.

– Um Carlos Gardel legítimo – afirmou o Doutor, todo prestativo.

– E o senhor faz o quê?

– Sou cantor de tangos. Justamente agora estou indo para uma apresentação em Valparaíso.

– E onde o senhor vai cantar essa noite?

O Doutor lançou-me um olhar urgente. Lembrei-me de que ele desconhece a vida noturna atual de Valparaíso. Meu coração bateu com mais força. A garganta ficou apertada.

– E onde poderia ser? – respondeu ele, devagar. – No único lugar possível de Valparaíso: o Uno.

– O Uno?

– É o melhor, o número um – intervim eu. – É o Cinzano.

– Quer dizer então que o cavalheiro é amante dos tangos – disse o soldado, com os documentos na mão e uma centelha de entusiasmo no olhar. – Amante dos tangos... Como o meu pai. Ele também foi cantor, mas no porto de Talcahuano. Os palcos de Valparaíso já são de outro nível. Tome – disse, devolvendo os documentos. – Podem ir.