62
“Si las copas traen consuelo,
aqui estoy con mi desvelo,
para ahogarlo de una vez.”67
Nostalgias
DOMINGO ENRIQUE CADÍCAMO e AGUSTÍN BARDI
Ontem foi 26 de julho, comemoração do vigésimo aniversário do ataque ao quartel Moncada, em Santiago de Cuba, pelo grupo liderado por Fidel Castro. Dona Tencha está em Havana representando o doutor nas festividades. Não entendo por que celebram tanto. Naquela operação, que fracassou, morreu muita gente e Fidel se entregou sem sofrer um arranhão. Foi a única vez em que o homem da barba e das mãos rosadas, que exige dos seus que lutem até vencer ou morrer, teve a opção de sacrificar-se por sua causa ou render-se. Escolheu a última. Prefiro Arturo Prat,68 os trezentos espartanos do estreito das Termópilas ou El Cid.
Mas não é sobre isso que minha mão trêmula de emoção deseja escrever. São seis da manhã do dia 27 e o frio penetra até nos meus ossos no barracão dos seguranças. A luz do dormitório do Doutor acabou de ser apagada. Aqui a jornada foi longa e triste. Tudo começou quando às nove da noite de ontem, enquanto eu depenava uma galinha caipira para o cozido do dia seguinte, ouvi no rádio que haviam disparado contra o assessor de assuntos navais do Doutor. Segundo um repórter da Rádio Cooperativa, o comandante Araya Peters foi ferido na sacada de sua casa em Providencia, onde surgiu com uma metralhadora de mão depois que uma bomba explodiu em seu jardim. Dispararam nele das sombras da rua. Está agora no Hospital Militar, em estado grave.
O país continua em choque. Sinto isso no ar gélido da madrugada, que daria para cortar como um biscoito wafer. A mesma coisa eu percebi ontem à noite, após ouvir a notícia. Naquela hora, a cidade se recolheu num sinistro silêncio de mausoléu e fechou suas pálpebras para auscultar imóvel seu pulso mais profundo. O Doutor estava jantando na casa que arrumou para Gloria Gaitán na avenida Américo Vespúcio. Eu sabia disso porque fui eu que levei na caminhonete Ford seis cadeiras, uma mesa e talheres de prata para aquele endereço, já que a colombiana, recém-instalada ali, não tinha móveis.
Imagino que de lá o Doutor foi para o hospital com seu amigo e colega Danilo Bartulín. Eu acompanhei os fatos pelo rádio e pela televisão. Não há pista dos homicidas. A esquerda acusa a Patria y Libertad do atentado, a direita põe a culpa em Bruno, chefe da segurança, que naquela noite estava a serviço do Doutor.
O comboio de Fiats 125 azuis parou cantando pneus na rotatória do jardim quando já eram mais de duas da manhã. O Doutor vinha com o rosto congestionado e a camisa manchada de sangue. Havia participado da intervenção cirúrgica que tentou salvar a vida do comandante, mas foi tudo em vão. Os ferimentos foram letais, comentou Bruno na cozinha enquanto informava alguém por telefone.
Servi ao Doutor um uísque com cubos de gelo. Nem olhou para mim. Deitou-se no sofá do living com as pernas e os braços estendidos, a vista grudada numa estatueta da Índia, parecendo um boneco caído. Servi outro copo a seu amigo, que também afundou ensimesmado na poltrona e lá ficou por um bom tempo.
– Isso é o que vem chegando – comentou o Doutor muito depois. – São eles. E são capazes de tudo.
– Então teremos de tomar medidas drásticas contra essa gente – disse Bartulín.
– Mas por acaso sabemos quem são? Não, não sabemos – respondeu o Doutor. – Um mandatário democrático não pode privar a liberdade dos cidadãos a partir de conjecturas.
– O general Prats ou o general Pinochet talvez possam averiguar quem fez isso. É algo muito grave. Até os militares agora correm perigo.
– Tudo isso tem um só nome, Danilo: preparar as condições para o caos e um posterior golpe de Estado. Será sangrento. É preciso evitá-lo. Mas eu não posso me render nem trair o programa revolucionário que o povo me encomendou. Não vão me fazer renunciar.
– Por que não troca de camisa e descansa um pouco, Doutor? – perguntou Bartulín depois de algum tempo.
– Só se me metralharem vão poder evitar que eu cumpra o programa popular – continuou o Doutor. – Não tenho medo da morte, Danilo.
Alguns cães uivaram melancólicos lá fora, um veículo fez uma curva e cantou pneu. Depois, o silêncio de novo.
– Acho que dias sinistros nos esperam – anunciou Bartulín. – O sol já vai sair, por que não descansa um pouco, Doutor? Como nunca antes, o país precisa do senhor.
O Doutor balançou a cabeça, colocou o copo de uísque no chão sem tê-lo nem provado e se pôs de pé lentamente. Mancava. Sinto que envelheceu de uma hora para outra. Seu bigode está mais branco do que nunca, uma mecha de cabelo cai por sua testa e as bochechas estão pendendo, flácidas. Do umbral da porta do living, vi como seu olhar procurava refúgio nas crepitantes línguas de fogo da lareira.
– Digam à Payita para convocar o Conselho Superior de Segurança Nacional para esta tarde. Vou me deitar por meia hora – disse o Doutor, antes de ir mancando para o dormitório.
67 Se as bebidas trazem consolo, / aqui estou com minha insônia, / para afogá-la de uma vez. [N. E.]
68 Agustín Arturo Prat Chacón (1848-1879), militar, marinheiro e advogado chileno, tomou parte em vários confrontos navais, na guerra contra a Espanha e na Guerra do Pacífico. É considerado o maior herói naval do país. [N. T.]