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O país está paralisado e transpira ódio por todos os poros. A esquerda mais radical exige instaurar o socialismo e esmagar a burguesia, e marcha pelas ruas gritando “Avançar sem negociar é uma ordem popular”, “Os direitistas no paredão, as direitistas no colchão”, “Ho Chi Minh, lutaremos até o fim”. Os comunistas, em compensação, desfilam pelo centro brandindo faixas que dizem “Não à guerra civil”, enquanto a direita faz o mesmo com slogans como “Allende, vamos, imite Balmaceda”, em alusão ao presidente liberal que tirou a própria vida na guerra civil de 1891.
Nos armazéns, já não se encontram nem carne nem farinha, nem óleo nem pão, nem açúcar nem conservas. A greve dos caminhoneiros, que os jornais de esquerda dizem ser financiada pela CIA, causa impacto no estômago e faz vacilar as convicções democráticas de muita gente. A classe média hesita agora em dar seu apoio ao Doutor, e da desconfiança e da distância em relação a ele passou a rejeitá-lo de modo visceral. Os sindicatos aderiram à greve indefinida. O país é um barco à deriva e sinto que a cada dia estamos mais perto do precipício.
No meio disso tudo, ontem à noite chegou o general Carlos Prats com uma péssima notícia. Veio apresentar ao doutor sua renúncia como ministro do Interior. Isso implica que os três generais leais ao Doutor se retiram do gabinete, deixando o governo sem esse apoio militar que se havia convertido num dique diante da direita golpista. Por outro lado, a Democracia Cristã, partido de centro, dobrou-se de vez à estratégia da direita de derrubar Allende do jeito que for. Segundo o Doutor comentou depois com seus amigos reunidos no living, Prats não suportava mais o gelo que lhe estão dando seus colegas de armas, nem a pressão das esposas destes, que lhe vaiam onde quer que vá, acusando-o de gallina69 por não se opor ao comunismo.
Comunismo? Não acho que o Doutor tenha essa aspiração ou possa construir aqui uma sociedade comunista. A essa altura, sequer é capaz de destruir a democracia burguesa. O certo é que já perdeu o controle do país devido à desobediência civil da direita, à escassez e ao mercado negro, à pressão de Nixon e às exigências da extrema esquerda de aprofundar o processo e armar o povo. Enquanto a oposição de centro e de direita exige intervenção militar, a de extrema esquerda reclama armas para impor o socialismo.
Que a direita queira virar a mesa a essa altura não me surpreende. O que me surpreende, sim, é que sejam os socialistas, os do MAPU e do MIR, que queiram fazer isso, pedindo armas e paredão para derrotar a burguesia. O Doutor acredita que é possível avançar em direção ao socialismo dentro da democracia, pelo menos é o que ele reitera entre amigos e assessores. Mas para isso precisa que a economia se recupere e haja de novo paz social. Também está convencido de que os militares chilenos são constitucionalistas e leais à ordem nacional. Não sou ninguém, sou apenas um simples padeiro, mas já não acredito que a direita e a esquerda radical possam lhe dar trégua. Sinto que os dados foram lançados. Nixon procura liquidá-lo porque tem medo de uma segunda Cuba. Brejnev deixou-o sozinho porque Moscou não está disposta a financiar outra Cuba. E o barbudo caribenho das mãos rosadas dá apoio subterrâneo à extrema esquerda para que triunfe numa guerra civil, pois precisa com urgência de outro país aliado no continente. Em meio a tudo isso está o Doutor.
Toda vez que dona Tencha sai da capital por alguns dias, o Doutor traz para casa Gloria Gaitán, a bela colombiana de 35 anos, filha de Jorge Eliécer Gaitán, o líder colombiano assassinado em Bogotá em 1948. Quando eu entro no living ou na biblioteca para servir alguma coisa aos dois, noto na hora que o Doutor foi cativado por essa mulher. Já o conheço bem, não preciso nem que ele me confesse. Deduzo pelos olhares e pelas palavras carinhosas que dirige a ela, a delicadeza com que a trata e a felicidade que expressa. Está fascinado por seu sorriso amplo de dentes brancos e alinhados, seus cabelos e olhos escuros, sua voz um pouco rouca e sensual. Será que está mesmo apaixonado por ela ou seu entusiasmo é uma tardia resistência amorosa diante da sombra crepuscular que se abate sobre o país? Suspeito que há muito tempo o Doutor sente por dona Tencha principalmente admiração e gratidão. Ela foi a viga-mestra para a construção de sua família, a educação das filhas e a projeção de sua carreira política. Sem ela, o Doutor não seria quem é e não teria chegado a La Moneda. Às vezes penso que ela o ama tanto que até o perdoa por não amá-la. Não sei. Escrevo tudo isso na dor e no silêncio da noite, em minha cabine no pavilhão dos seguranças, dizendo a mim mesmo que não tenho o direito de censurar o Doutor por suas infidelidades, que ele é leal apenas ao seu compromisso político, não aos seus amores. Mas será que não estou eu mesmo olhando no espelho ao falar do Doutor? Será que não acontece por acaso algo parecido comigo e Amanda?
Enfim, talvez dona Tencha já não sinta nada pelo Doutor. Talvez só lhe tenha apreço, carinho, reconhecimento e admiração. Mas amor, propriamente dito, não mais. Porque assim como nasce, o amor também termina. Dona Tencha, com sua fragilidade de boneca, seu sorriso enigmático e seu estilo doce mas ao mesmo tempo impositivo, deixa terreno livre ao Doutor nesta residência. Que ele convide as mulheres que quiser, desde que não seja de dia e nenhuma delas se atreva a subir ao seu reino instalado no segundo andar do casarão. Talvez nisso consista sua vingança contra Payita e as outras mulheres. Pode ser. Uma coisa fica clara para mim: não é dona Tencha quem morre de ciúmes quando o Doutor se encontra com outras admiradoras, e sim a Payita.
Será que o Doutor se apaixonou pela colombiana? Há algo mais: o Doutor e essa mulher compartilham um segredo que eu também conheço, embora eles ignorem que estou a par disso. Fiquei sabendo do detalhe, e verão como não se trata de um detalhe menor, porque um dia tive a ideia de espiá-los. Não devia ter feito isso, concordo, é um abuso de confiança, mas já fiz e não há como remediar. A curiosidade é minha maior fraqueza. Para ser franco, farejei isso faz tempo, pela doçura com que ela se dirige a ele e pela ternura com que ele envolve a mão dela nas suas. Algo está acontecendo no íntimo de Glória, pensei comigo. Alguma coisa palpita em seu íntimo, que ela transmite sem palavras ao Doutor e que ele de algum modo compreende.
E aconteceu no dormitório do Doutor, naquela cela de monge franciscano cuja janela alta e estreita se abre à cerejeira que já começa a florescer. Eu acabava de passar um pano pela superfície lisa do tabuleiro de xadrez da biblioteca, aquela sala ampla, contígua ao dormitório, que dá para o jardim e para a piscina com o crocodilo embalsamado, e caminhava na ponta dos pés até a coleção de huacos, quando de repente ouvi os dois falando com nitidez.
– Estou esperando um filho seu – disse Gloria. – E isso não pode acontecer.
Sim, ela disse isso. Não sonhei nem estou inventando. Ouvi com todas as letras e por isso deixo o registro escrito neste caderno. Houve então um grande silêncio, um silêncio longo demais, durante o qual não me atrevi a chegar perto do umbral para ver como reagia o Doutor. Só ouvi uns sussurros.
Depois ouvi a voz grave do Doutor pedindo a Gloria que não abortasse, dizendo que aquele filho devia nascer para que sobrevivesse a ele, pois seus dias estavam contados e ele iria morrer em La Moneda, com a faixa tricolor no peito e uma metralhadora na mão.
Estremeci ao ouvir aquilo. Falava da vida e da morte, daquilo que iria nascer a partir do que morreria. Pensei na imensa solidão em que o Doutor chafurda, no fato de eu não ter sabido ser seu amigo de verdade, apenas um padeiro, um cozinheiro, alguém que acabou escrevendo essas anotações sobre seus dias. Ele, ao contrário, passou anos procurando não só o outro grande amor de sua vida, mas também um filho que pudesse levar seu nome e que ele conseguisse criar, educar e formar, garantindo assim a sobrevivência do sobrenome que tanto o orgulha.
– Os mártires não servem para nada – reclamou a voz de Glória. – Olhe para mim, sou a filha de um mártir, de um prócer da minha amada Colômbia, filha de um homem assassinado por suas convicções políticas. Acredita que isso me serviu para alguma coisa na vida? Acha que me serviu para substituir a ausência do homem de carne e osso?
– Mais do que você imagina – ouvi o Doutor dizer.
– Você se engana. Enxerga a vida como um romântico.
– É preferível ser filho de um herói que de alguém que trai ou se rende.
– Não tenho certeza disso.
– No mínimo, você tem boas razões para viver orgulhosa de seu pai.
– Não quero ter boas razões para me sentir orgulhosa de meu pai morto, queria simplesmente ter meu pai vivo. Não quero ter razões para me sentir orgulhosa de você se amanhã você for um mártir.
– Menina, minha menina – retrucou o Doutor, e ouvi um suspiro de aflição. – Você diz isso porque ignora o poder eterno dos grandes ventos que movem a História, o valor inspirador dos mártires para seus países.
– Os mártires não servem para nada. Maldito o país que precisa deles.
– Você tem que voltar para a Colômbia levando meu filho no ventre – ordenou o Doutor. Agora eu conseguia ouvir com mais clareza o que eles diziam, porque sua conversa ia subindo de tom. – Tem que voltar o quanto antes para Bogotá, dar à luz esse filho e ensiná-lo a sentir orgulho de seu avô, de sua mãe e de seu pai. Você precisa ir já. Sua vida corre perigo aqui, Gloria.
– Só vou se você for junto. Do contrário, não vou ter esse filho.
Uma ligação telefônica interrompeu a conversa. Escapuli para a cozinha. Já era mais de meia-noite. O rádio continuava transmitindo tangos.
– Amanhã virá uma visita importante, logo cedo – o Doutor veio me anunciar em seguida, à porta da cozinha. Estava sem paletó, só de camisa, e afrouxara o nó da gravata azul de seda. – Por favor, companheiro Rufino, prepare alguma coisa para a ocasião.
– Pode-se saber quem vem, Doutor? – perguntei.
– Claro que sim – retrucou, desfazendo o nó da gravata. – O general Augusto Pinochet.
69 No espanhol do Chile, gallina tem não só o sentido literal (“galinha”), mas indica também alguém covarde. [N. T.]