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“Imagine all the people sharing all the world
You may say
I’m a dreamer, but I’m not the only one.”77
Imagine
JOHN LENNON
– Nunca mais soubemos nada do Rufino – disse Amanda. – Naquele dia, ele largou o forno que estava reconstruindo e foi com sua Ford até o centro. Não me disse que ia ao La Moneda. Ficamos sabendo disso mais trade, pelas fotos no jornal. Rufino aparecia entre os prisioneiros deitados de bruços diante do palácio, junto à porta da Morandé. Estava ferido. Dizem que o levaram até um centro de tortura. Nunca mais soubemos nada dele, nem da caminhonete.
A terra começou a tremer e pela janela do living-sala de jantar chegava até nós uma onda de barulho surdo. Lembrei-me dos tanques diante do La Moneda no último dia de vida do Doutor e de Rufino. Fomos olhar pela janela. Uma escavadeira começava a terraplanagem no terreno baldio da frente. Logo deitariam os alicerces de outro edifício e o bairro mudaria de rosto e ninguém mais se lembraria daqueles que sofreram e sonharam naquelas quadras.
– Não soubemos mais nada dele até a metade do ano, quando veio um funcionário do governo democrático para nos dizer que o haviam encontrado.
– Foi encontrado, então?
– Só um ossinho. Num cemitério clandestino no deserto de Atacama – afirmou a anciã, chorando. – Por um exame de DNA, feito nos Estados Unidos, ficamos sabendo que era Rufino. Foi tudo o que encontramos dele. Um ossinho. Pelo menos nos serviu para dar-lhe um enterro cristão no cemitério de Valparaíso. Com certeza, Rufino está agora ao lado de Nosso Senhor, porque foi um homem bom, justo e valente como poucos.
– E agora a senhora recuperou também seu caderno – disse eu, tentando consolá-la, lembrando que eu havia contribuído para isso, que não só acreditara que o Doutor era um filho da puta, como dizia Nixon, mas também pusera em prática a ordem de Kissinger de destruir aquela economia para foder com o mandato do Doutor em La Moneda. E agora aparecia diante de meus olhos a primeira de sabe-se lá quantas vítimas que de uma forma ou de outra eu ajudara a liquidar.
Depois de enxugar as lágrimas com um lenço, Amanda continuou folheando o caderno. Pensei em minha vida febril daqueles anos, no quanto me parecia distante agora a verde planície de Minnesota, nos dias em que deixara de lado minha mulher e minha filha porque me dedicava à tarefa de impedir o avanço do comunismo no continente americano. Pensei também que seria melhor que Amanda não lesse o caderno. Havia ali afirmações de Rufino que ela não deveria conhecer.
– A senhora não vai conseguir entender a letra – aleguei.
Fechou o caderno docilmente, como se intuísse que estava explorando profundidades arriscadas, e o devolveu a mim com suavidade. Depois enxugou as lágrimas de novo. Lá fora, a escavadeira continuava seu trabalho e tive receio de que atravessasse a vilinha e derrubasse a casa e o que restava da padaria Las Delicias.
– Pelo menos do Rufino temos seu túmulo e seu diário – murmurou Amanda logo depois, com amargura. – Porque de Héctor não me restou nada.
– Héctor? – Um arrepio percorreu minhas costas.
– Meu filho. Héctor, que foi escultor e pintor, e morava em Valparaíso. Está vendo esse busto de Neruda em cima da lareira? Foi ele quem fez, em madeira de cerejeira.
Contemplei atônito aquela representação do poeta. Ali estavam seu nariz e suas orelhas grandes, as maçãs do rosto volumosas, os olhos de réptil triste e sua boina grega, um pouco inclinada sobre a testa. Cheguei perto para apalpar aquela figura, não para tocar o rosto do Nobel, mas para tocar com a ponta dos dedos a obra executada pelas mãos que, décadas atrás, acariciaram minha filha.
– O que aconteceu com Héctor? – perguntei, pegando da parede o chapéu de Gardel, cuja fita mostrava manchas de suor. A escavadeira afastou-se com seu bramido, permitindo que emergisse agora, pura, a voz de um cantor que bem poderia ser Julio Sosa.
77 Imagine todas as pessoas compartilhando o mundo todo / Você pode dizer / Que sou um sonhador, mas não sou o único. [N. E.]