Na coleção de “Manuais para a Conferência de Paz” que nos tinham sido distribuídos pelo Foreign Office havia um escrito por Sir Ernest Satow versando sobre “Congressos Internacionais.” Nessa admirável monografia, a maior autoridade viva em questões de prática diplomática sintetizou para nós os métodos e procedimentos adotados em congressos passados e chamou nossa atenção para os erros de organização cometidos. Seu livrinho foi estudado a fundo pelos membros mais moços da Delegação Inglesa, que em seguida os cederam a seus colegas americanos que, por sua vez, também o leram com interesse e respeito. Pode-se perguntar se foram lidos com a mesma aplicação pelos próprios Plenipotenciários. Poderia ter sido útil, por exemplo, se os que dirigiam a política inglesa, antes de deixar Londres, tivessem lido aquelas passagens incisivas em que Sir Ernest Satow frisa a necessidade de (a) uma prévia concordância a respeito dos objetivos em vista e (b) um programa definido e inflexível.
“Um Congresso ou Conferência,”escreveu Sir Ernst Satow, “é em geral precedido pela conclusão de preliminares de paz entre as partes beligerantes (...) Começar um congresso ou uma conferência sem tais preparativos é um caminho perigoso, pois pode vir a provocar divisões entre aliados de um ou outro lado (...) É de se esperar um programa bem definido de assuntos a serem discutidos entre os plenipotenciários. Deve haver absoluta concordância com este programa, e, se for apresentada alguma proposta para introduzir outras questões, ela precisa ser cuidadosamente avaliada antes de ser aceita.”
“A experiência demonstra que, a fim de assegurar o êxito de um Congresso ou Conferência, deve haver prévia concordância em torno das bases em que se fundamentará o evento, e quanto maior a clareza com que os pontos principais dessa base forem definidos, maior a probabilidade de um acordo geral. Na história, quando Congressos fracassam em chegar a um resultado definido, a falha geralmente se deve à má preparação do terreno.”
M André Tardieu, em seu livro The Truth about the Peace Treaty, reconhece que a falha na coordenação de alguma base preparatória para a política a ser seguida está na raiz dos métodos incertos adotados nas fases iniciais da Conferência, dos atrasos que se seguiram e dos apressados acertos de março e abril. Ele sustenta que essa omissão se deveu a dois fatores. Alega, em primeiro lugar, que foi difícil manter uma frente unida quanto aos objetivos da guerra e que esta dificuldade teria sido seriamente agravada se fosse inserida uma discussão sobre a eventual política final de paz numa negociação tão delicada, envolvendo interesses e orgulho nacionais. De certa forma, este argumento faz sentido.
Em segundo lugar, ele diz que, depois do armistício, chegou a haver uma tentativa de coordenação durante a visita de M Clemenceau a Londres, em 2 e 3 de dezembro de 1918. Esta afirmação é falaz. As discussões em Londres abordaram apenas quatro pontos, nenhum deles contribuindo em dose digna de nota para aperfeiçoar o funcionamento da Conferência em vista. Houve concordância em que fosse imediatamente organizado um Comitê para avaliar a capacidade de pagamento pela Alemanha. Também foi acertado que o ex-Kaiser devia ser julgado por um tribunal internacional, e que os representantes dos Domínios britânicos deviam estar presentes à conferência sempre que se discutissem seus interesses específicos. Concordou-se ainda que um Comitê seria encarregado do exame da questão de suprimentos e ajuda.
Por conseguinte, não se pode dizer que as conversas em Londres, em 2 e 3 de dezembro, em algum momento trataram do estabelecimento de “base ou de bases” para o funcionamento do Congresso que se aproximava.
Poder-se-ia alegar, com razão ainda maior, que na verdade essa base fora proporcionada pelos Pontos, Princípios e Detalhes enunciados pelo Presidente Wilson e aceitos por todos os beligerantes como base para a redação dos pormenores do texto. Realmente era essa a impressão que tínhamos na ocasião. Mas era correta? Temo que não.
Do ângulo da técnica diplomática, é importante examinar o quanto esses princípios realmente se constituíram em base para a negociação entre as diversas partes envolvidas. Esse exame aponta uma anomalia muito séria. Enquanto em teoria essas bases eram aceitas como o “pacto de contrahendo” para uma negociação entre dois grupos de beligerantes, não eram (mesmo quando acrescentamos a interpretação do coronel House) acatadas sem reservas como base consensual de negociação entre as Potências Aliadas e Associadas. M Clemenceau, por exemplo, desde o começo alimentava no íntimo certas preocupações com relação à “segurança” da França. Tais inquietações, na medida em que implicavam alguma separação da Renânia da Alemanha, alguma proibição à autodeterminação da Áustria, alguma intenção de obter pelo menos os recursos econômicos da bacia do Sarre – ficavam em franca oposição aos princípios que, no pertinente a nossos antigos inimigos e também aos Estados Unidos, ele aceitara com entusiasmo.
Também Mr Lloyd George desde o começo alimentou dúvidas que se aplicavam não somente à importância que de público ele atribuía à questão dos direitos marítimos, mas igualmente às inesperadas, mas certamente previstas, dificuldades em assuntos como o custo da guerra e a alocação das colônias alemãs à Austrália e à União da África do Sul.
O Signor Orlando, volto a dizer, a despeito de sua ponderação resmungada, devia saber muito bem que a fronteira no Brenner, para não falar dos enclaves no Adriático, não podia ser – e jamais seria – apresentada como atendimento da pretensão italiana de ter suas fronteiras fixadas segundo o critério da “nacionalidade claramente reconhecida.”
Assim, cada protagonista compareceu à conferência com a nítida (ou que deveria ter sido ‘nítida’) percepção de que seus propósitos não estavam em completa harmonia com as posições que assumiam. Até certo ponto, esta elasticidade de propósitos é inerente a qualquer Congresso internacional. Porém, em Paris, o abismo entre o proclamado e a intenção real dos participantes foi muito largo, dificultando uma “base consensual de acordo.”
Não é minha intenção entrar em considerações éticas ou repartir culpas ou elogios. Tudo que afirmo é que certos fatores atuaram de forma totalmente inevitável. As observações que hoje faço não estão voltadas para o que devia ter acontecido e muito menos para o que não devia ter acontecido. Descrevo o que foi, na verdade, não uma Conferência, mas uma doença muito grave. Trato apenas de registrar sintomas e de marcar um gráfico da febre. A discrepância que assinalei é vital para o meu argumento.
Vou botá-la doutra forma.
A Conferência foi representada, em especial pelos propagandistas americanos do tipo de Mr Ray Stannard Baker, como um conflito entre as “Potências da Luz” (representadas pelo Presidente Wilson) e as “Potências das Trevas” (representadas por Clemenceau). Tal dramatização simplista da questão está longe de ser legítima. No meu entendimento, também é irrelevante o confronto visto por Mr Keynes entre uma paz Cartaginesa e uma paz Wilsoniana. Nada – nem mesmo seus contrastes e confrontos – era nítido em Paris. O acontecimento todo, como observou Mr Balfour, afinal, não passou de um “negócio áspero e confuso.”
Também desencaminha, embora seja bem mais inteligente, o argumento oposto, que vê a Conferência não como um conflito entre dois princípios que se excluíam, mas como um ajuste de complexos pormenores práticos. Reconheço que esta última interpretação realmente descreve bem o funcionamento do mecanismo da conferência. Descreve o que foi a Conferência, e não como ela deveria ter sido ou como queríamos que fosse. Nesse sentido, é mais uma crítica do que uma exposição. Estudiosos que no futuro analisarem essa linha de crítica se satisfarão ponderando que (se forem versados em economia) não farão os mesmos erros que cometemos em 1919. É por esta razão que encaro esse argumento como um registro quase igualmente inútil da ininterrupta interação entre os vetores de esperança e exaustão, de sabedoria e conveniência, de imensas exigências étnicas e minúsculas preocupações pessoais, de conhecimento e ignorância, de justiça e vingança, de poder e covardia, de razão e emoção, de imediato e final, de passado e futuro, de conveniente e desejável, de exequível e impraticável, de popular e técnico – a interação que decorre menos do conflito que do entendimento e da motivação; menos de uma luta do que de um enfado; a interação que, à medida que as semanas se passaram, envolveu a Conferência num manto de fadiga, indisposição, suspeita e desespero.
Permitam-me fornecer, como exemplo dessa crítica, a excelente passagem do volume IV da edição dos Papéis do Coronel House feita pelo Dr Charles Seymour:
“Vários historiadores, especialmente aqueles que escrevem de um ponto de vista americano, têm apresentado a Conferência de Paz como se fosse um conflito nítido entre dois ideais, personificados, por um lado, por Clemenceau e, por outro, por Wilson; um conflito entre o mal do antigo sistema diplomático e a virtude do novo idealismo mundial. Esse quadro atrai os que não compreendem a complexidade da verdade histórica. Na realidade, a Conferência de Paz não foi assim tão simples. Não foi tanto um duelo quanto foi uma melée geral em que os representantes de cada nação brigavam para conseguir apoio a seus métodos particulares de garantir a paz. O objetivo de todos era o mesmo – evitar a repetição dos quatro anos de devastação mundial. Os métodos logicamente eram diferentes, uma vez que cada um enfrentava um conjunto diferente de problemas.
Inevitavelmente cada nação apresentava uma solução com as cores de seus interesses. De certo modo, isto foi verdadeiro para os Estados Unidos, bem como para a França, a Itália e a Inglaterra. Nós pouco sacrificamos ao anunciar que não tomaríamos nenhum território (que não queríamos), nem receberíamos reparações (que não podíamos cobrar). Nosso interesse repousava inteiramente em assegurar um regime de tranquilidade mundial. Nossa posição geográfica era tal que podíamos advogar o desarmamento e a arbitragem em total segurança. O idealismo de Wilson coincidia com uma saudável Realpolitik.
Mas os métodos americanos não se ajustavam tão bem aos problemas peculiares de nações europeias, dominados como eram por fatores históricos e geográficos. Segundo o programa americano, nós particularmente abríamos mão de coisas quase sem valor, mas pedíamos aos países europeus que desistissem do que lhes parecia essencial à sua segurança. Podíamos insistir em que a prevenção mais adequada contra a guerra repousava no desarmamento e na reconciliação. Os franceses retrucariam que ingleses e americanos, protegidos pelo canal e pelo Atlântico, podiam argumentar dessa forma, mas a França fora invadida vezes demais para não insistir em garantias melhores que promessas escritas. Podíamos insistir que era bom negócio cancelar indenizações alemãs como débito ruim. Os europeus respondiam: “Então vamos nós, os atacados, ficar com todo o ônus e deixar o agressor escapar incólume? Não até que esgotemos todas as possibilidades de fazê-los pagar.”
Mesmo depois de concordarem com a sensatez das propostas americanas, os líderes aliados se mantiveram cautelosos em aceitá-las, diante da força da opinião pública. Clemenceau foi considerado traidor por ter se recusado a destruir a Alemanha. Se tivesse cedido na questão da ocupação da Renânia, teria sido derrubado do poder e substituído por um premier mais inflexível. Lloyd George reconheceu que a avaliação pública da capacidade da Alemanha para pagar era absurda, mas não se preocupou em dizer isso ao eleitorado. Orlando teria aceitado com satisfação uma solução de meio-termo para a questão do Adriático, mas as forças políticas na Itália não permitiram que o fizesse. Os primeiros-ministros estavam longe de exercer um poder supremo. Ao estimularem o sentimento popular durante a guerra, medida ortodoxa em tempos de beligerância, tinham criado um Frankenstein que agora os desamparava. Podiam se ajustar, se tivessem condições para tal, mas ceder não lhes era permitido.”
O conceito de Mr Stannard Baker, a teoria do Dr Charles Seymour, cada um representa um extremo da interpretação da dualidade de intenções com que os principais negociadores chegaram a Paris. O primeiro defende que os propósitos do velho e do novo mundo não eram meramente diferentes, eram na verdade antagônicos. O último tende a explicar que esses propósitos, embora diferentes em grau, em sua natureza não eram realmente distintos. Prefiro a linha de pensamento do Dr Charles Seymour ao enfoque emocional adotado por Mr Stannard Baker. Todavia, não posso deixar de admitir que, das duas concepções, a de Mr Baker é a que mais se aproxima da verdade. Em outras palavras, o fracasso da Conferência de Paris em manter vivos os ideais defendidos desde sua abertura só pode ser compreendido se partirmos da concepção popular, embora não totalmente imprecisa, de que realmente existia um conflito de princípios; de que esse conflito nunca foi enfrentado diretamente, mas, ao contrário, foi contornado por meio de todos os subterfúgios possíveis; e de que a existência dessa divergência, constante mas nunca ostensiva, obrigou os dirigentes mundiais a “tecer” (citando Mr Keynes), “aquela rede de sofismas e exegeses jesuíticas que no fim revestiria de insinceridade a linguagem e a substância de todo o Tratado.”
Pode-se questionar se a divergência inicial de propósitos era totalmente inevitável e se poderia ser classificada na categoria “infelicidades” do capítulo anterior e, portanto, não ser transferida para o presente capítulo dos “erros.” Concordo plenamente que em grande parte um conflito de intenções foi inevitável. Os EUA, eternamente protegidos pelo Atlântico, queriam satisfazer sua retidão e, ao mesmo tempo, se livrar da responsabilidade. Estavam na posição muito ingrata de impedir outros povos de fazer o que desejavam, eles próprios sem disposição para fazer alguma coisa. A França, vitoriosa em circunstâncias que, sabia muito bem, nunca seriam tão favoráveis novamente, estava firme e decidida a fazer uso desse limitado espaço para respirar a fim de criar para si mesma uma zona de proteção contra o dia em que o perigo alemão voltasse a se manifestar ameaçadoramente a leste. A Inglaterra, abalada e empobrecida, queria reabastecer seus cofres arruinados e conservar as relações com seus Domínios em uma base de cooperação amigável. O Japão e a Itália estavam francamente a fim da pilhagem. Os Estados Menores só pensavam em aumentar seus territórios e recursos à custa de seus inimigos derrotados.
Tais intenções podem ter sido lamentáveis. O ponto é que eram de todo inevitáveis. Se M Clemenceau abandonasse seu esforço em ganhar a Renânia e o Sarre; se insistisse para que poloneses, tchecos e romenos reduzissem suas reivindicações contra a Alemanha, a Áustria e a Hungria a limites estritamente compatíveis com os Quatorze Pontos; se não tivesse tomado providências para o desarmamento desproporcional da Alemanha por um período que pelo menos permitisse aos novos aliados da França consolidarem seu poder e sua independência; se M Clemenceau fizesse ou deixasse de fazer alguma dessas coisas, em poucos dias seria alijado do poder, e seu lugar seria ocupado por um estadista mais sintonizado com o clima que dominava a França.
Se Mr Lloyd George tivesse repudiado abertamente suas promessas eleitorais; se tivesse cedido ao Presidente Wilson em assuntos como as pensões de guerra e a frota comercial alemã; se, sobretudo, entrasse abertamente em choque com a Austrália e a África do Sul sobre a repartição das colônias alemãs; se tivesse agido contra o Japão opondo-se a sua reivindicação de Shantung; se também tivesse de enfrentar uma Câmara dos Comuns hostil, teria sido substituído por um estadista de visões mais nitidamente revanchistas.
Se o Marquês Sauionji, ou o Signor Orlando, ou M Bratianu, ou M Kramarsh, ou M Pasic, ou M Paderewsky, ou M Venizelos insistissem numa interpretação wilsoniana das exigências dos respectivos eleitorados, imediatamente teriam sido forçados a renunciar, e seus postos logo seriam ocupados por representantes mais em sintonia com os sentimentos nacionais de seus povos.
Este fator essencial não pode ser mencionado com muita frequência. Os plenipotenciários das Potências Vitoriosas em Paris representavam uma opinião pública bem informada e até mesmo esclarecida. Para eles, era totalmente impossível contradizer flagrantemente essa opinião. Era totalmente impossível, naqueles primeiros meses de 1919, esboçar um tratado com base numa transposição literal dos Quatorze Pontos. Como já salientei, esta foi a infelicidade fundamental. Mas não há nenhuma razão importante para que essa infelicidade pudesse ter sido tratada de forma a também transformá-la em erro. O erro fundamental da Conferência foi ninguém possuir visão e coragem para lidar com as infelicidades desde o início.
A questão deveria ter sido posta, em dezembro de 1918, nos seguintes termos: “Estamos na iminência de nos reunir em Paris para elaborar o Tratado de Paz. Assumimos o compromisso de que os termos desse tratado estarão de acordo com os quatorze pontos. Sucede, porém, que a opinião pública não nos permitirá cumprir esse compromisso. Portanto, devemos adiar o Tratado Final até que a opinião pública mostre mais sanidade. Nossa tarefa imediata é, portanto, montar condições de uma Paz Preliminar que nos permita desmobilizar, levantar o bloqueio e eventualmente negociar com nossos ex-inimigos um tratado de acordo com as condições de sua rendição.”
Sei muito bem que tal decisão teria sido extremamente impopular e, na prática, muito difícil de ser adotada. Convém salientar que Mr Lloyd George tomou providências (na prática, mas não ostensivamente) para que se adotasse essa alternativa do adiamento. Tendo deixado a cargo da comissão de reparações a fixação de quanto a Alemanha seria realmente capaz de pagar, tanto satisfazia a opinião interna naquele instante quanto assegurava que a questão das reparações pudesse ser tratada mais adiante pelos técnicos em circunstâncias mais razoáveis e, dessa forma, sem violar o tratado estabelecido. Recebeu muito pouco reconhecimento por esta sábia iniciativa. Mas não foi só isso. Os principais estadistas em Paris, sem excluir o Presidente Wilson, estavam vividamente cientes de que o Tratado em elaboração demandaria uma revisão mais adiante, quando a histeria da guerra estivesse abrandada. Tomaram providências visando a essa revisão. Inseriram na Convenção da Liga das Nações um artigo mui pouco lembrado e muitas vezes esquecido. Ei-lo:
artigo XIX
“A assembleia pode, de tempos em tempos, recomendar a reconsideração pelos Membros da Liga, de tratados tornados inaplicáveis e a consideração de condições internacionais cuja permanência possa pôr em perigo a paz mundial.”
O cínico, ao ler este artigo nos dias atuais, ao refletir sobre como a regra da “unanimidade” no passado bloqueou, em Genebra, todas as iniciativas audaciosas como esta, pode sorrir amargamente e condenar esse artigo simplesmente como mais uma daquelas teias de “exegeses jesuíticas” com que a Conferência de Paris envolveu o fracasso do Tratado que produziu. Não estou certo de que seria histórica ou presentemente correto desprezar o artigo XIX de forma tão radical. Pelo ângulo histórico, pelo ângulo de como as decisões terminaram tomadas em Paris, o artigo foi extremamente importante. Pelo fim de fevereiro, abandonávamos qualquer esperança de celebrar uma paz wilsoniana naquele ano angustiado de 1919. É impossível estimar quantas decisões foram acatadas, a frequência com que obstruções foram retiradas e erros foram tolerados à sombra do abençoado artigo XIX. “Bem,” podíamos ser levados a pensar, “essa decisão parece insensata e injusta. Mas é melhor aceitá-la do que atrasar o Tratado por mais alguns dias. Total, sua falta de visão logo será visível mesmo para os que hoje a defendem. Quando chegar esse dia, podemos recorrer ao artigo XIX.” Estou convencido de que, na verdade, em sua consciência, o Presidente Wilson justificava todos os seus recuos com o pensamento de que “o Covenant corrigirá.”
Ainda hoje em dia, o artigo XIX tem e terá sua aplicabilidade. Mesmo os que não acreditam mais que a Assembleia da Liga sempre será desejosa e capaz impor seu ponto de vista às Grandes Potências, devem concordar que é conveniente dispor desse artigo como instrumento de revisão do Tratado quando essa revisão for aceita pelas próprias Potências interessadas. Seria conveniente, pelo menos, contar com o mecanismo oferecido por esse artigo a fim de rever certas disposições do Tratado de Versalhes, sem afetar a validade do conjunto. Reciprocamente, o artigo proporciona argumento útil para contrapor às alegações dos que afirmam que o Tratado é uma unidade integral e que nenhuma parte pode ser atacada sem destruir toda sua estrutura.
Chego a ver que uma certa dualidade de propósitos era inerente à Conferência de 1918-1919. Vejo mesmo que reconhecer essa dualidade na época teria sido difícil e até mesmo odioso. Chego a admitir que Mr Lloyd George e Mr Wilson na verdade viam na Comissão de Reparações, assim como no artigo XIX, uma via de escape para suas infelicidades. Porém, embora vendo essas coisas, permaneço com o dedo acusador em riste. Apontando para isso. Apontando para o fato inegável de que eles não enfrentaram desde o início esta dualidade essencial de propósitos. A consequência foi a mistura de improviso com acomodação.
Pelo infeliz colapso entre essas duas banquetas de apoio, os americanos são menos culpados do que as Potências Associadas. Estas tinham se comprometido antecipadamente a aceitar os princípios proclamados por Wilson. Aqueles, desde os primeiros dias da conferência, ficaram enfraquecidos por acontecimentos internos. “A Delegação americana,” assinala o coronel House, “não está em posição de atuar plenamente. As eleições de novembro passado nos Estados Unidos constituíram um restringente à livre atuação de nossos delegados.” Lembrado seja, é verdade, que durante todo o desenrolar da Conferência o Presidente Wilson e sua equipe não puderam contar com o apoio do congresso nem da opinião pública em seu país. Quando eclodiu a crise essencial em Paris, Mr Wilson só poderia ter triunfado tirando do poder Mr Lloyd George e M Clemenceau. Teria o apoio de seu próprio país em tal intransigência? Certamente não. Foi a percepção de que o Presidente na verdade não possuia poder político – distinto do poder físico – para levar adiante as conclusões lógicas de sua própria política o que destruiu sua autoridade em Paris e permitiu que outros estadistas extraíssem dele concessões que ele profundamente desaprovava.
Qual foi a alavanca que lhes permitiu deslocar aquele homem cimentado de sua posição inicial? Foi a seguinte. Eles sabiam que, em fevereiro de 1919, o Presidente Wilson não representava a América. Sabiam também que ele preferia morrer (e morreu afinal) a admitir esse fato. Sabiam que sua crença na democracia era a convicção mais profundamente enraizada em sua alma sensível. Também sabiam que – para os propósitos imediatos, bem distintos dos derradeiros – democracia era uma burla. Sabiam que Mr Wilson jamais encararia o fato de que o seu próprio povo americano o abandonara. Sabiam que, para disfarçar o fato a si mesmo, se submeteria a qualquer humilhação. Sabiam que a única maneira de lidar com Mr Wilson era ameaçar desmascará-lo, recuando em seguida. A vaidade e o egoísmo de Mr Wilson devem, é óbvio, ser reconhecidos, mas não passavam de fiapos de palha na correnteza profunda de sua fé. Foi sua fé que eles exploraram. Sua fé no Povo e em Deus. Sabiam que para ele seria insuportável reconhecer que nenhuma destas duas ilusões desempenhava qualquer papel na Conferência de Paz. O Presidente Wilson não foi destruído por seus defeitos, mas por suas virtudes.
Mas o que tem tudo isso a ver com os Erros – claramente distintos das Infelicidades – cometidos durante a Conferência de Paz de Paris? Tem muito a ver. É difícil resistir à impressão de que os estadistas europeus sabiam muito bem que o Presidente, devido à teocracia mística que o caracterizava, estava numa posição falsa. É difícil resistir à impressão de que eles queriam ganhar tempo até que a falsidade dessa posição viesse à tona. É difícil resistir à impressão de desejarem que o Presidente “absorvesse a atmosfera de guerra” antes de ditar as disposições para a paz. É difícil resistir à impressão de que retardaram deliberadamente o enfrentamento com o Presidente até que ele perdesse sua frente.
Da parte deles, essa decisão não foi tão perversa quanto foi tola. Deviam ter concluído que não havia meio-termo entre uma paz Wilsoniana e uma paz Cartaginesa. Deviam ter concluído que qualquer delas seria melhor do que um meio-termo hipócrita. Diante dessas conclusões, deviam ter organizado toda a Conferência sobre uma base maior de realidade.
Permitam-me exemplificar essa irrealidade – o charco de imprecisões sobre o qual repousou toda a estrutura da Conferência – citando dois fenômenos curiosos. O primeiro é o fato de que, até o último momento, os Plenipotenciários não sabiam se a Paz que negociavam era preliminar ou final, se era imposta ou negociada. O segundo foi a ausência, na verdade a rejeição, de qualquer programa definido. Esses dois erros parecerão inexplicáveis aos que, no futuro, estudarem a questão. Mas de fato aconteceram.
Seria de pressupor que, por mais ansiosos que os estadistas europeus estivessem por retardar as decisões essenciais até que Mr Wilson se familiarizasse com a atmosfera menos límpida do Velho Mundo, havia dois pontos vitais de procedimentos sobre os quais deveriam ser claros e unidos desde o começo.
O primeiro é se o Tratado devia ser preliminar ou final. O segundo é se devia ser imposto ou negociado, ou, em outras palavras, se, no último instante, o inimigo seria autorizado a comparecer e a se pronunciar na Conferência, ou se seria impedido de participar das discussões do início ao fim.
É estranho mas indiscutível o fato de nenhum destes dois importantes pontos relacionados com o mecanismo de funcionamento tivesse sido discutido e resolvido nas fases iniciais da Conferência. Durante janeiro, fevereiro e a primeira metade de março – portanto um período de mais de dez semanas – os dirigentes mundiais ignoraram totalmente se o Tratado que discutiam devia ser imposto ou negociado. Parece realmente estranho que esta consideração essencial não fosse analisada desde o começo e decidida de imediato. Mas a verdade é que o problema foi mantido na gaveta durante todo aquele período como algo muito doloroso para se levantar imediatamente, como questão que se resolveria por si mesma.
A ideia original sem dúvida era haver um Tratado preliminar, cujos termos seriam acertados antecipadamente entre as Potências vitoriosas. Este tratado, que seria imposto ao inimigo derrotado, conteria unicamente os termos do desarmamento terrestre e naval, assim como as linhas principais do futuro acordo territorial. Todos os demais pormenores seriam definidos em um “Congresso” subsequente no qual o inimigo teria representação e ocasião para apresentar contrapropostas.
Mais tarde foi sugerida a elaboração pela Conferência de um “Ato Geral” englobando os pontos fundamentais de todos os Tratados de Paz com os quatro países inimigos. Já em março de 1919 o Presidente Wilson continuava indeciso se desejava um Tratado Preliminar ou Final. Mr Lansing e os juristas lhe asseguraram que mesmo um tratado preliminar teria que ser ratificado pelo Senado, deixando-o temeroso de que os senadores se apegassem a essa prerrogativa de ratificação para recusar a subsequente Convenção da Liga. “Diante desta declaração,” salienta Mr Lansing, “o Presidente ficou visivelmente muito perturbado.” Durante o afastamento de Mr Wilson, que viajou para os Estados Unidos, foi levantada a ideia de um tratado preliminar ser redigido e assinado sob a forma de um “Armistício Final.” Em 22 de fevereiro ficou decidido que os itens principais de tal Armistício deviam ser elaborados antes do regresso do Presidente, e os assessores militar e naval do Conselho foram instruídos a prepará-los imediatamente. Mas quando essas cláusulas foram finalmente redigidas e aprovadas, o Presidente já regressara a Paris. Foi quando se constatou que os tópicos territoriais e alguns outros, durante esse período, tinham progredido a ponto de, com pequenos acertos adicionais, também poderem ser incluídos no Tratado de Paz. A teoria toda de uma Paz Preliminar foi, como por acaso, abandonada.
Essa hesitação entre o conceito de um Tratado Preliminar e um Tratado Final guarda relação direta com o problema da representação inimiga. Até hoje os alemães estão convencidos de que desde o começo era intenção deliberada dos Aliados excluí-los de qualquer parte nas discussões de Paz. Na verdade, esse ponto, como outros de natureza semelhante, ficou girando como um pedacinho de palha nas águas que confluíam à Conferência. Em novembro de 1918, o coronel House reservou cinco lugares no cogitado Congresso para os Representantes da Alemanha. Nessa data e até março era tido como certo por todos que laboravam em Paris, que, tendo os Aliados entrado em acordo entre eles sobre os termos a serem apresentados à Alemanha, o conclave deixaria de ser uma “Conferência” e se transformaria num “Congresso.” Em outras palavras, deveríamos nos voltar para a segunda etapa de nossas tarefas: a discussão sobre os termos do acordo eventual com nossos ex-inimigos e na presença das Potências neutras.
Como pôde esta louvável ideia ter sumido de nossa consciência imediata à medida que as semanas passaram? A história se negará a crer que “nos esquecemos do inimigo” e nos atribuirá motivos e um nível de consciência dos fatos que certamente não tínhamos naquela ocasião. É difícil explicar a exclusão de nossos inimigos da discussão, exceto em condições que parecerão inacreditáveis ou pelo menos forçadas. Mas acredito firmemente que os estágios pelos quais a necessidade de consultar nossos inimigos se diluiu no fundo de nossas mentes são os que comento adiante.
Subconscientemente pensávamos em termos de uma “Conferência de Aliados,” seguida por um “Congresso” com participação de todos os beligerantes e neutros. O primeiro conceito se identificava com a expressão “Tratado Preliminar,” e a segunda tomou a descrição de “Tratado Final.” O “Tratado Preliminar” seria imposto pela força ao inimigo derrotado, e o “Tratado Final” seria uma questão de negociação mundial e aceitação mundial.
À medida que a Conferência progrediu, mais e mais os Comitês técnicos produziram recomendações sob a forma de artigos prontos para serem imediatamente introduzidos num documento final – o conceito de um Tratado Preliminar fundiu-se gradualmente com o de um Tratado Final cobrindo o todo. Sempre se presumira que os artigos essenciais – como os que regulavam o desarmamento alemão e as principais cessões territoriais – fariam parte do Tratado Preliminar e, portanto, não seriam negociados, mas impostos. Também se supunha que os talvez chamados artigos secundários – especialmente as cláusulas econômicas, se não também as financeiras – seriam objeto de discussão. Porém, quando o Tratado Preliminar foi abandonado e substituído pelo Tratado Final, este herdou do anterior a ideia original de imposição versus negociação. E tudo isto aconteceu antes que muitos de nós percebêssemos exatamente o que ocorrera.
Não sustento que deslizamos da negociação para a imposição num acesso de completa inconsciência. Obviamente, houve certos fatores deliberados que nos impeliram para essa decisão. Em primeiro lugar, a insistência do Presidente Wilson para que, de alguma forma, se incluísse o Covenant em qualquer forma de Tratado, atrasou nossas deliberações além do momento em que um Tratado Preliminar era sensato ou necessário. Em segundo lugar, as ausências do Presidente e de Mr Lloyd George, ao lado da tentativa de assassinato de M Clemenceau, geraram, em instante crucial, a suspensão da direção suprema da Conferência e um acúmulo de material que ficou pronto nesse período. Em terceiro lugar, o marechal Foch temia que a conclusão do Tratado Preliminar levasse a uma desmobilização ainda mais rápida por parte da Inglaterra e dos Estados Unidos, após a qual haveria pouca esperança de negociar qualquer paz. E em quarto lugar, os agudos desentendimentos que, naquelas semanas, cresceram entre os próprios Aliados, criaram uma sensação próxima do terror de que a presença de um elemento tão desagregador quanto nossos ex-inimigos nos divididos conselhos da Europa provocasse uma desintegração ainda mais alarmante.
De qualquer modo, permanece o fato de que, ao longo dos estágios iniciais da Conferência, as Potências diretoras jamais deixaram constar se o Tratado em fase de elaboração era um texto final a ser imposto à Alemanha ou uma simples base de um acordo entre os Aliados para uma eventual negociação com a Alemanha num Congresso final. Essa omissão por parte delas foi muito séria e não foi, exceto por Mr Keynes, suficientemente frisada. Muitos parágrafos do Tratado, particularmente nas seções econômicas, na verdade foram inseridos como maximum statements, como para providenciar que, no Congresso Final, houvesse um certo grau de concessão à Alemanha. Esse Congresso nunca se concretizou, e as derradeiras semanas da Conferência voaram por nós como um pesadelo histérico. Aqueles maximum statements permaneceram inalterados e finalmente foram impostos como um ultimato. Se desde o começo se soubesse que nenhuma negociação com o inimigo viria a ocorrer, certamente muitas das cláusulas do tratado, consideradas menos razoáveis, nunca teriam sido introduzidas.
Até este ponto apontei os dois erros fundamentais cometidos pelos responsáveis pela abertura e condução da Conferência de Paz de Paris. Defendi que a falha em reconhecer a dualidade de propósitos deixou a conferência, desde o início, em posição equivocada e, ao fim, levou a excessiva falsidade. Também defendi que a falha em decidir desde o começo se a Paz seria Preliminar ou Final, negociada ou imposta, foi causa de muitas confusões, incompreensões e injustiças posteriores. Os erros menores de organização que retardaram os trabalhos da Conferência serão comentados em capítulos mais adiante, à medida que surgirem. Resta discutir neste capítulo aquele que foi o maior e realmente fundamental erro na organização inicial. Devo apreciar agora essa omissão da Conferência em estabelecer com antecedência seu programa de trabalho.
Já aludi à opinião de Sir Ernest Satow a respeito da necessidade de um programa rígido. Esta exigência se fazia mais premente tratando-se de uma conferência em que os principais dirigentes desde o início se confrontaram com uma dualidade, para não dizer divergência, de propósitos. O observador cínico pode concluir que eles premeditadamente desejavam gastar um mês ou dois para rodear os volteios wilsonianos. Não excluo essa possibilidade, mas detesto ter de admiti-la. Prefiro imaginar que, como acontece com muitas das questões que dependem de nossos governantes, estávamos à mercê dos improvisos.
Os membros do Supremo Conselho de Guerra tinham adquirido o hábito de deixar a iniciativa com os alemães ou com o marechal Foch. Tinham aprendido que a marcha dos acontecimentos, ou talvez a marcha dos alemães, era um fator mais determinante que qualquer dos planos elaborados que foram postos diante deles. Desconfiavam de todos os planos escritos. Não surpreende que, quando os membros do Supremo Conselho de Guerra se transformaram, no breve espaço de dois dias, em Supremo Conselho de Paz, esse hábito de improvisar, essa aversão à iniciativa, esta preferência por considerar eventos que já ocorreram em vez de se preocupar com os que podem ocorrer ou deixar de ocorrer no futuro se transformaram na essência de seu pensamento. Tanta coisa que esperavam nunca aconteceu. Tanta coisa que seus assessores jamais os aconselharam a esperar, aconteceu. Surpreende o fato de terem se atemorizado com o esperado, o aconselhado, o previsto? Não, não surpreende.
Na verdade, os franceses tinham preparado um programa que foi entregue ao Presidente Wilson pelo embaixador francês em Washington, M Jusserand, em 29 de novembro. Apresentava, em primeiro lugar, um elenco de condições preliminares que deveriam ser impostas ao inimigo sem discussão. Em segundo lugar, previa um subsequente Congresso no qual estariam representados tanto os países inimigos quanto os neutros. Propunha, em terceiro lugar, um calendário a ser seguido pelo Conselho Supremo para discutir inicialmente as questões urgentes, deixando as menos urgentes para deliberação posterior. Mais importante que tudo, tratava da revogação imediata de todos os Tratados secretos. Apesar de todas estas propostas serem de todo pertinentes, o programa apresentado por M Jusserand não era um documento feito com tato. Falava da “Federalização” (isto é, desintegração) da Alemanha. Propunha que o destino do Império Otomano fosse decidido exclusivamente pelas Grandes Potências. E se referia em termos realistas demais para serem elogiosos à ideia da Liga das Nações e aos Pontos, Princípios e Detalhamentos de Mr Wilson. “Aqueles princípios do Presidente Wilson” – assim dizia o documento – “que em sua essência não são suficientes para se adotarem como base de um acordo sólido (...) retomarão sua plena força na questão do futuro acordo de direito público, e isso afastará uma das dificuldades que poderiam obstruir os aliados.” “As quatorze proposições” – assim continuava esse documento sincero mas nada conciliatório – “que são princípios de direito público, não podem proporcionar uma base concreta para os trabalhos da Conferência.” Isto pelo menos era inteligente, honesto e franco. Mas não agradou ao Presidente. O programa francês foi parar em seus arquivos menos consultados.
“A grande falha dos líderes políticos,” escreve o coronel House, “foi não terem preparado um programa de trabalho.” M Tardieu, por seu lado, lança o ônus dessa falha no temperamento anglo-saxônico. Atribui a rejeição do programa francês à nossa aversão congênita à precisão lógica do pensamento latino. Pode ser que esteja certo. Acho que está. Mas permanece o fato de tanto Mr Wilson (diante das ásperas definições do memorando de Jusserand) quanto Mr Lloyd George (tendo em vista sua espantosa predileção pelo inesperado), além de ficarem contrariados, terem rejeitado qualquer formulação escrita que fixasse o que, como e quando deviam discutir.
As consequências dessa tendência de ambos foram deploráveis ao extremo.