7
Meio-Termo

Os escritores que se aventuraram a relatos completos da Conferência de Paz de Paris se inclinaram para adoção de uma de três formas de abordagem, tentando deste modo descobrir, em meio a toda aquela rudimentar confusão, alguma indicação de continuidade, algum fio lógico de narrativa. Poucos deles escolheram o método cronológico e procuraram contar a história em termos de tempo. Outros dividiram sua narrativa segundo chaves de assuntos, discutindo cada tema em separado como um problema isolado. E os demais deram um toque dramático a toda negociação na forma de um choque de vontades e, desta forma, conseguiram um relato atraente, mas essencialmente impreciso. Cada um desses três métodos de abordagem encerra uma certa falsificação de valores. O cronológico pode causar uma impressão errônea de continuidade e omitir o componente da sincronização, tanto quanto o das paradas e retomadas. A abordagem fragmentada, embora valiosa para fins de lucidez, ignora o efeito de uma obstrução em uma área sobre uma concessão em outra. O método do “choque de vontades” erra pela supersimplificação, muitas vezes exagerando ao atribuir a Wilson, Lloyd George e Clemenceau posições antagonísticas bem como protagonísticas.

Existe, contudo, um problema bastante central na Conferência de Paz que se manifesta com bastante clareza em todos os três métodos. Trata-se da questão do Adriático ou, em sentido mais amplo, a posição da Itália na Conferência de Paz. É um assunto que se fez praticamente contínuo no tempo, de certo modo se conteve dentro de seus próprios limites e que, sem dúvida, apresentou, em sua forma mais crua, o conflito entre as esperanças do Novo Mundo e os desejos do Velho. Proponho, neste capítulo, abordar a questão italiana como um todo isolado, assinalando a influência corrosiva que teve sobre a base moral e diplomática da Conferência de Paris. Oferece um exemplo apropriado e relativamente simples do tipo de complexidade em que se envolveu a Conferência. O mesmo tipo de dificuldade (o conflito entre o egoísmo intensivo de um membro de uma coalizão e o egoísmo extensivo de outros membros) sem dúvida pode ocorrer em futuros congressos.

Os fatores essenciais que precedem a controvérsia italiana em Paris podem ser apresentados de forma sumária.

 

A Itália, no início da Guerra Europeia, era aliada da Alemanha e da Áustria. Recusou-se, desde o primeiro momento, a cumprir seus compromissos na Tríplice Aliança, alegando, com toda razão, que, com seu extenso litoral, ficaria à mercê da Esquadra Inglesa. Foi mais além. No começo de janeiro de 1915, fez sondagens em Viena para verificar o quanto a Áustria estava disposta a lhe pagar para manter sua “neutralidade.” Pediu Trieste e o Trentino. O governo austríaco recusou essa concessão. O Barão Sonnino, ministro do Exterior italiano, então inquiriu em Londres e Paris que preço os inimigos da Áustria pagariam para induzir a Itália a desertar de seus aliados. Simultaneamente, continuou os entendimentos em Viena, obtendo a oferta, feita de má vontade, de algum território na região de Trento. Em 3 de maio de 1915, informou o Governo Austríaco que “a Itália deve renunciar à esperança de chegar a um acordo e proclama, a partir deste momento, sua completa liberdade de ação.” A expressão “a partir deste momento” foi um eufemismo, pois ao longo das cinco semanas anteriores a Itália já estava engajada em negociações com os inimigos da Áustria: o Tratado de Londres, que foi o preço a ser pago por França, Inglaterra e Rússia à Itália, já fora assinado em 26 de abril, uma semana antes de o Barão Sonnino descontinuar suas gestões em Viena.

Os sentimentalistas do Foreign Office inglês não entraram nessa negociação com exuberância de coração. Em primeiro lugar, tinham a sensação de que a Itália, como aliada, podia ser até mais um problema que uma vantagem. Em segundo lugar, não lhes encantava prometer um preço tão alto pelo ato de traição da Itália, e às custas do próprio povo que ela estava na iminência de trair. Porém, essas emoções de velho-mundo deviam ser suprimidas em favor da “necessidade da guerra.” Mas o fato é que o Foreign Office assumiu o encargo a contragosto. Sir Edward Grey ficou tão desconcertado com a conduta e as exigências da Itália que foi para o interior alegando doença. O Subsecretário Permanente, na primeira conversa mantida com o Embaixador Italiano, se permitiu uma expressão que traduz um realismo de desprezo. “Vocês falam,” disse o Embaixador, “como se estivessem comprando nosso apoio.” “Bem,” respondeu o Subsecretário, “realmente estamos.” O Marquês Imperiali ficou muito ofendido por esta observação e foi buscar simpatia alhures. Os detalhes do Tratado foram negociados por funcionários subalternos sob a supervisão meio penitente de Mr Asquith.

As principais disposições do Tratado Secreto de Londres podem ser tabuladas da seguinte forma:

 

  1. A Itália teve a promessa da posse não somente do Trentino, mas de todo o sul do Tirol até o Passo de Brenner. Significava pôr 229.261 austríacos legítimos sob jurisdição italiana.
  2. A Itália teve a promessa de outros territórios e ilhas, tais como Trieste, Gorícia, Gradisca, Lussin, Istria, Cherso e porções da Carniola e da Carinthia, que poriam sob sua jurisdição 477.387 iugoslavos.
  3. A Itália teve a promessa da Dalmácia do Norte e da maior parte das ilhas dálmatas, o que significava a jurisdição sobre mais 751.571 iugoslavos.
  4. Também lhe foi prometida a plena soberania sobre a cidade e base naval albanesa de Valona, mais um protetorado sobre o futuro estado da Albânia. As partes norte e sul daquele estado seriam anexadas à Sérvia e à Grécia, respectivamente.
  5. Também lhe foi prometida a plena soberania sobre Rhodes e as outras onze ilhas do Dodecaneso, com uma população exclusivamente grega e que ela ocupara “temporariamente” por ocasião da guerra de Trípoli.
  6. No caso de uma divisão da Turquia, a Itália teve a promessa de “uma justa parcela” na região de Adalia.
  7. No caso de a Inglaterra e a França ampliarem suas possessões coloniais na África às custas da Alemanha, ela recebeu a promessa de uma “compensação proporcional.”

 

Em outras palavras, o Tratado de Londres prometia à Itália territórios que deixariam sob seu domínio cerca de 1.300.000 iugoslavos, 230.000 alemães, toda a população grega do Dodecaneso, os turcos e gregos da Adalia, tudo que restara de albaneses e algumas áreas indefinidas na África. Foi, portanto, um tratado absolutamente conflitante com o princípio da autodeterminação e a doutrina dos Quatorze Pontos.

Em troca destas imensas e totalmente indefensáveis concessões, a Itália assumiu apenas duas obrigações. A primeira era conceder o porto de Fiume aos iugoslavos. A segunda, declarar guerra a todos os nossos inimigos. Fugiu de ambas as obrigações. A primeira será apreciada mais tarde e a última também não foi obedecida. É bem verdade que a Itália declarou guerra à Áustria em maio de 1915, à Turquia em agosto do mesmo ano e à Bulgária poucas semanas depois. Contudo, só veio a declarar guerra à Alemanha em 27 de agosto de 1916. O Signor Salandra na verdade se vangloriou afirmando que esta atitude evasiva “foi um grande serviço prestado a meu país.” Foi feita uma tentativa em Paris para conseguir que Mr Balfour, argumentando que este ato de consagrado egoísmo se constituía em omissão suficientemente grave, procurasse invalidar o Tratado de Londres em sua totalidade. Ele respondeu à vontade, aristocrático e contrário dizendo: “Isso é argumento de advogado.” Mr Lloyd George foi parcialmente sincero ao levantar esse ponto em fase posterior das negociações. Os italianos, com sua habitual irreverência e infalível impropriedade, resmungaram algo sobre “um pedaço de papel.”

Basta sobre o Tratado de Londres em sua fase pré-armistício. Entre sua conclusão e o colapso da Áustria-Hungria aconteceram determinados fatos que devem ser mencionados sucintamente. Os bolcheviques foram os primeiros a publicar os termos do Tratado, que foi imediatamente atacado não apenas na Inglaterra, nos Estados Unidos e França, mas também na Câmara dos Deputados da Itália. Foi chamado de documento desavergonhadamente imperialista. Teve o poder de galvanizar a parcela iugoslava do exército austríaco, que passou, mais do que nunca, a hostilizar a Itália. Caporetto mostrou aos italianos que algo tinha de ser feito para acalmar estes iugoslavos hostis.

O Signor Orlando, que então era primeiro-ministro, estimulou alguns deputados a formarem um comitê de conciliação. Sob a serena orientação, bem ao estilo escocês, do Dr Seton Watson e o perseverante europeísmo de Mr Wickham Steed, foi estabelecido contato em Londres entre o Signor Torre, da Câmara dos Deputados italiana e M Trumbic, porta-voz do Comitê Iugoslavo. Em 10 de abril de 1918, o “Pacto de Roma” foi celebrado entre aqueles dois competentes representantes não oficiais. Por esse pacto, as desavenças ítalo-iugoslavas deveriam ser solucionadas segundo o critério da nacionalidade. O Governo Italiano, em 8 de setembro de 1918, deu declaração afirmando sua profunda simpatia pelo anseio dos iugoslavos no sentido de criar um reino unido e independente. Foi, como demonstrou a batalha de Vittorio Veneto, um pronunciamento que rendeu frutos. Na época, foi compreendido por todos que o Tratado de Londres estava ultrapassado, diante de acordos e pronunciamentos aprovados, embora não oficiais. Essa sentimento cresceu quando a Itália aceitou entusiasticamente os Quatorze Pontos do Presidente Wilson. O ponto nove estabelecia que as fronteiras italianas seriam definidas sobre “linhas de nacionalidade claramente reconhecíveis.” É verdade que, em 1o de novembro, o Signor Orlando murmurou algo que pareceu uma ressalva. Quando solicitado a repeti-la, simplesmente murmurou de novo. Nessa ocasião, lhe foi indicado que o nono dos Quatorze Pontos não tinha nenhuma relação com o armistício com a Alemanha, então em discussão. Ele acatou alegremente a insinuação. Não publicou o fato de ter feito qualquer ressalva até 1o de maio de 1919. Trata-se de um exemplo clássico dos riscos de imprecisão afável em negociação internacional. O Signor Orlando ficou com a impressão de que aceitara os Quatorze Pontos com a ressalva referente ao ponto nove. O Presidente Wilson e o resto do mundo entenderam que ele aceitara os Quatorze Pontos sem restrições. Foi esse mal-entendido que juntou mais um complicador à controvérsia que se seguiu.

Deve-se admitir que os Representantes Italianos estavam em posição muito delicada quando chegaram a Paris. Na guerra, a Itália se voltara contra seus aliados, colocando-se ao lado de seus inimigos, pelo princípio do “egoísmo sagrado.” Esse princípio se traduzia na troca de compensações materiais em vez de morais. A Inglaterra e a França tinham se comprometido a proporcionar essa satisfação material na moeda do velho imperialismo, qual seja, sob a forma de anexações e protetorados. Nenhuma engenhosidade humana, nenhuma manobra estatística ou de outra natureza seria capaz de fazer com que essa dívida pudesse ser saldada na nova moeda criada pelos Quatorze Pontos. Nada podia ocultar o fato primordial de que o cumprimento das disposições do Tratado Secreto violaria o princípio da Autodeterminação, uma vez que punha sob domínio italiano, e a contra-vontade, uma população de dois milhões desejosa de escolher o próprio destino.

A batalha era, pois, inescapável entre um Tratado Secreto e os Quatorze Pontos, entre imperialismo e autodeterminação, entre a velha ordem e a nova, entre a convenção diplomática e o Sermão da Montanha. A França e a Inglaterra estavam presas pelos termos de sua hipoteca. As mãos do Presidente Wilson estavam atadas apenas por seus próprios princípios. Ali estava, se alguma houvesse, a melhor oportunidade para o Profeta do Novo Mundo impor sua mensagem ao Velho. A questão italiana tornou-se, assim, para os que a conheciam, um teste para toda a Conferência. Foi no tratamento dispensado por Woodrow Wilson ao Tratado de Londres que decidimos julgar seu verdadeiro valor. O Presidente foi testado e fraquejou. Talvez tivéssemos escolhido um assunto injusto para testá-lo, mas foi o tema que selecionamos. Ele falhou perante nós. Ficamos abalados com seu fracasso. Desde aquele instante deixamos de acreditar que o Presidente Wilson era o Profeta que tínhamos seguido. A partir daquele momento passamos a ver nele não mais do que um clérigo presbiteriano.

Narro estas emoções tal como afloraram na época. Vejo claramente que foi fácil para nós escolher uma cirurgia de oportunidade para testar a habilidade de Mr Wilson como cirurgião. Não digo que estávamos certos, que fomos altruístas, perspicazes ou mesmo honestos ao fazê-lo. Digo apenas que assim fizemos.

As exigências italianas foram enfraquecidas por outras circunstâncias. Signor Orlando e Signor Sonnino tinham presumido que o princípio da Autodeterminação não seria aplicado com um rigor acadêmico que favorecesse a Alemanha ou mesmo a Hungria. Para os italianos, foi embaraçoso constatar que suas reivindicações incidiam justamente sobre aquelas porções de território inimigo que despertavam sentimentos mais calorosos no coração tanto de associados quanto de aliados. Todos simpatizavam com os tiroleses. Foi dito que Mr Lloyd George alimentava profunda admiração, um sentimento de camaradagem, pela memória de Andreas Hofer. E também havia os iugoslavos. Aos olhos dos italianos, croatas e eslovenos eram os mais perniciosos de todos os nossos ex-inimigos. Ao chegar a Paris, foi desagradável para o Barão Sonnino descobrir que os americanos, assim como os ingleses e franceses, encaravam os sérvios libertados como as ovelhas perdidas pelas quais se regozijavam. Os gregos podiam, igualmente e com toda justiça, reclamar a posse do Dodecaneso, onde população e anseios eram totalmente gregos. Ademais, a opinião pública na Itália não era das mais favoráveis. Havia murmúrios de socialismo; pior, tais murmúrios só podiam ser neutralizados por generosas fatias de imperialismo vitorioso. Mas como era possível conseguir essas fatias, com o Presidente Wilson exibindo seu evangélico sorriso de Princeton?

É forçoso reconhecer que, em geral, a natureza humana leva a ver os italianos com uma certa simpatia. Por trás de toda aquela perplexidade, havia preocupação com um aspecto mais constrangedor. O colapso total da Áustria surpreendera a Itália. Eles prefeririam algum tipo de “combinazione” que deixasse um cordão de estados fracos e isolados ao longo de suas fronteiras setentrional e oriental. Ao invés disto, viram-se diante dos alemães como seus vizinhos no norte e, no leste, diante de um novo e poderoso estado com mais de treze milhões de iugoslavos. Mais à frente voltarei a comentar este importante aspecto. Por enquanto, basta salientar como foi inevitável que passassem a concentrar seus pensamentos em Brenner e no Monte Nevoso.

Distraio-me descobrindo em meu diário tanta ingenuidade e convicta indignação com as manobras diplomáticas dos Signori Orlando e Sonnino. Agora que constato as imensas dificuldades que enfrentavam e a inacreditável futilidade daqueles aos quais se opunham, fico em dúvida se eles eram totalmente incompetentes. Externa e internamente estavam em posição muito fraca. Sabiam que seu poder político e militar, terrestre e naval, ganhava-lhes pouca estima dos Aliados. Sabiam que tudo que postulavam se opunha aos princípios do Presidente Wilson. Sabiam que tais princípios seriam intensamente exigidos em outras áreas, sob pressão da França, da Bélgica, dos Novos Estados e outros atores mais fortes do que eles.

Sabiam que até a opinião pública italiana, ainda estimulada pela propaganda de guerra, esperava triunfos que provavelmente não alcançariam. Assim sendo, resolveram manobrar para ganhar tempo e posição com uma sutileza e persistência que hoje em dia desperta minha indignação e um relutante respeito pela manobra. Gostaria de pensar que a Itália teria se saído melhor se lançando, casta e chorosa, nos braços do Presidente Wilson para, em gesto arrebatador, se aliar ao bom, ao belo e ao verdadeiro. Todavia, me pergunto se tal gesto teria originado o Tratado de Rapallo, de 12 de novembro de 1920. Teria produzido o comunismo na Itália, quando Mussolini ainda não passava de simples jornalista em Milão. De certo modo, a Itália era um anacronismo em nossos Conselhos, e ainda um anacronismo desprezado e maltratado. Presentemente, não acho que Sonnino e Orlando estivessem inteiramente sem razão em seus procedimentos. Só lamento que esta inevitável combinação de fatores negativos tivesse destruído o wilsonismo na Conferência de Paris. A tentativa de combinar o século quinze com o século trinta, na melhor das hipóteses, poderia levar a um juízo falso sobre seus motivos. E Paris em 1919 não foi a melhor das circunstâncias.

Os estágios da rendição do Presidente Wilson à Itália e as atitudes erráticas que adotou para recuperar sua posição original não têm sido divulgadas com clareza. É evidente, creio, que Orlando e Sonnino, que não concordavam em tudo, repartiam as atribuições. Orlando, que era um liberal de coração, concentrava-se em conquistar a aprovação do coronel House, no que quase sempre obteve êxito. Sabia que havia dois pontos fracos na armadura dos americanos, resultante de dois ardentes anseios. O primeiro era alcançar uma vitória moral sobre a Europa, capaz, de uma vez por todas, de satisfazer sua volúpia pelo trabalho de amenizar e superar seu complexo de inferioridade cultural e histórica. O segundo era chegar à vitória sem o menor esforço de abnegação pessoal. Estes dois propósitos estavam admiravelmente combinados em uma Convenção da Liga das Nações que absorveria a doutrina de Monroe. O Signor Orlando, sendo um homem inteligente, embora ligeiramente incrédulo, foi o primeiro a perceber que o Presidente Wilson fecharia os olhos a inúmeras incongruências se ao menos o Covenant da Liga, ainda que castrada, pudesse ficar inserida de forma inexorável no tecido dos tratados. Quando o Presidente regressou de sua breve estada em Washington, logo percebeu que a oposição do Senado americano deixara a delegação dos Estados Unidos em Paris em situação altamente ilógica.

Prontamente ofereceu ao coronel House o apoio da Itália no Comitê da Liga. Com a mesma presteza assegurou ao Presidente que não haveria nada mais fácil ou mais justo do que excluir o continente americano tanto das sanções quanto das responsabilidades no mecanismo de funcionamento da Liga, concedendo-lhe as benesses do soerguimento moral, sem o ônus de ter que agir e interferir. O Signor Orlando, com a maior afabilidade, defendeu a cláusula pela qual a doutrina Monroe deveria ser absorvida em sua plenitude pela Liga das Nações. Mas cometeu um erro. Deixou de reparar que desde o Presidente retornar de Washington – desde aquele sombrio banquete em que o Senador Lodge permaneceu tão calado – o coronel House já não estava prestigiado. Tinha aderido às ideias de Clemenceau. Em consequência, a partir de então duas facções passaram a conviver no Hotel Crillon. A primeira, que podia ser chamada a facção da conciliação, era representada pelo coronel House e Mr Henry White. A segunda era a do wilsonismo, representada pelos especialistas americanos. Ninguém, e menos ainda o próprio Mr Wilson, tinha uma noção exata da facção à qual o Presidente pertencia. O Signor Orlando supunha que o presidente e o coronel House ainda estavam do mesmo lado, o que o levou a adotar uma postura que, sem o apoio americano, se mostrou muito ingênua.

O ministro do Exterior da Itália, o Barão Sonnino, defendia outros propósitos e neles se concentrava. Representava a “rigorosa honestidade,” fama que adquirira em virtude de uma (deliberada) casualidade. Sua mãe tinha a nacionalidade escocesa, o que nos fez acreditar em sua sinceridade. Colocara sobre a lareira em sua casa o lema “aliis licet, tibi non licet” (outros podem fazer, mas você não pode). Ao sabermos dessa inscrição, ficamos convictos de que o Barão Sonnino era um homem independente, magnânimo, humano e de inteligência ágil. São atributos imortais. Permitiram que o Barão Sonnino continuasse gozando de nossa confiança até que o conhecêssemos bem.

Entretanto, apesar das vantagens iniciais da adoção de dupla personalidade e abordagem, continua sendo um completo mistério como a delegação italiana conseguiu convencer o Presidente Wilson a permitir que a Itália ficasse com a fronteira no Brenner e com o sul do Tirol. Parece que ele já concordara com esta concessão extremamente nociva em janeiro de 1919. Comentou-se que o Presidente ainda estava sob a exaltada emoção de seu triunfo romano. Comentou-se que os italianos ameaçaram se opor à inclusão da Convenção da Liga no Tratado de Paz, a menos que ele acatasse suas postulações. Também se comentou que prometeram que, se a concessão fosse autorizada, apoiariam as ideias wilsonianas e seriam cordatos em todas as outras matérias, como as que diziam respeito a iugoslavos, albaneses, gregos e turcos. Nenhum desses comentários se baseia em fontes totalmente convincentes. Nada há que explique como o Presidente, logo no início da Conferência, pôde concordar com a transferência de 230 mil tiroleses para o domínio italiano, em flagrante violação do mais central de seus princípios. Prefiro aceitar a simples explicação de que Woodrow Wilson naquele momento praticamente desconhecia as reais implicações da concessão. Mais tarde, confessou ao Dr Charles Seymour que capitulara neste assunto em consequência de “estudo insuficiente.” O professor Coolidge fez o seguinte registro: “Entre nossa gente, existe uma crença bem fundamentada de que ele deu seu consentimento sem a devida apreciação do assunto e arrependeu-se francamente mais tarde, mas estava tolhido pela palavra dada.”

Quaisquer que tenham sido os motivos que levaram o Presidente a entregar o Tirol aos italianos, as consequências deste ato foram desastrosas. Fizeram-se sentir da seguinte maneira. Desde os primeiros dias da conferência havia um entendimento generalizado de que o Presidente já sacrificara o princípio da nacionalidade em uma questão que não admitia justificação para tal abandono, a não ser a necessidade estratégica. Aparentemente, fizera esta concessão gratuitamente e sem exigir nada em troca. Assim procedendo, paralelamente aprovava o Tratado de Londres. Dessa forma, desde logo comprometeu sua própria posição moral e a autoridade de sua Delegação. Se Wilson podia engolir o Brenner, podia engolir qualquer coisa. O efeito moral desta constatação não pode ser exagerado. Mesmo por razões práticas, distintas das de ordem moral, sua concessão foi uma tremenda asneira. Quando, em seguida, teve que enfrentar a questão do Adriático, viu que já tinha desperdiçado seus trunfos. Em seu desejo de retificar aquele gesto impensado, ficou teimoso e professoral em assuntos de muito menor importância. Fez suas jogadas com atitude pedante e provocativa. Devido a isso, o problema do Adriático passou do nível de mera diferença de opinião para o dos picos nervosos de uma crise mundial.

Observe-se que nesse assunto de vital importância Mr Wilson também arcou com as consequências de ter recusado de forma arrogante e irrefletida a proposta de programa apresentada por Jusserand em 29 de novembro. Se esse programa fosse aceito e implantado, não só o Tratado de Londres teria sido automaticamente invalidado, mas também teria sido possível evitar desperdício de tempo e trabalho no trato de todas as imposições italianas. A Conferência poderia até mesmo, desde as sessões iniciais, ter estabelecido que o primeiro objetivo era a conclusão da paz com o principal inimigo, e, assim, as divergências adriáticas só viriam à tona com inevitável insistência nas fases finais e menos críticas. Mais uma vez, foi a falta de um planejamento científico que, desde o começo, lançou sobre o Conselho Supremo todas estas complexas questões.

Na ânsia de aplacar as Potências menores, os membros do Conselho gratuitamente os convidaram a declarar suas reivindicações. Foram essas declarações de demandas que, no caso de Iugoslávia, Grécia e Albânia, impuseram ao Conselho Supremo a necessidade de avaliar já em fevereiro até que ponto essas reivindicações conflitavam com as da Itália. É verdade, claro, que os italianos, de qualquer forma, teriam pressionado para postergar a assinatura da Convenção e do tratado com a Alemanha até que suas reivindicações que afetavam a Áustria, a Iugoslávia, a Grécia e mesmo a Turquia, fossem aceitas, pelo menos em princípio. Mas a falta de um programa inflexível lhes permitiu chegar a seu objetivo sem um mínimo de esforço. O que deveria ser uma manobra espinhosa e desgastante, graças ao amadorismo do Conselho Supremo, se transformou num passeio.

O ponto principal da questão italiana, já que o Brenner fora concedido, foi o que ficou conhecido por todos como o “Problema Adriático.” Em outras palavras, centrou-se na disputa entre a Itália e a Iugoslávia em torno de sua fronteira, mais particularmente quanto à posse de Fiume, da Dalmácia e das Ilhas. O Problema Adriático abrange complexos pormenores que dificultam uma apreciação imediata e objetiva. Cuidarei disso mais tarde, considerando os princípios e métodos envolvidos. Mas é impossível transmitir com precisão o efeito que a incessante controvérsia com a Itália gerou sobre a Conferência de Paz, a menos que se tente descrever o constante fluxo e refluxo entre fato e princípio, princípio e fato. Eis por que devo escolher como meus exhibits (ou inhibits) dessas dificuldades de detalhe não o problema central de Fiume e o Adriático, mas dois efeitos secundários e muito mais manejáveis do Tratado Secreto de Londres. Vou optar pelos problemas da Albânia e do Dodecaneso.

Até as guerras dos Bálcãs em 1912-1913, a Albânia, embora possuindo uma nacionalidade ilíria própria, fora uma província do Império Turco. Com o colapso do domínio turco na Macedônia e na Trácia, a Albânia viu-se independente, mas, de certa forma, no ar. Seu futuro status e suas fronteiras foram objeto de apreciação na Conferência de Embaixadores que então se realizava em Londres sob a presidência se Sir Edward Grey. Em 29 de julho de 1913, os embaixadores, depois de intenso debate, generosamente entraram em acordo a propósito da fronteira setentrional do futuro Principado Albanês. Essa fronteira colocou Scutari em território albanês, mas transferiu as cidades albanesas de Ipek e Djakova para Montenegro. A delimitação da fronteira meridional entre Albânia e Grécia seria decidida depois de examinada por uma comissão no local. As recomendações dessa comissão ainda não estavam inteiramente aprovadas quando eclodiu a Guerra Europeia. Entrementes, a coroa da Albânia fora oferecida ao Príncipe Wilhelm de Wied, que desembarcou em Durazzo em 7 de maio de 1914 e deixou o país em 4 de setembro, forçado por Essad Pasha, seu próprio ministro da Guerra, que o substituiu.

Em 25 de novembro, a Itália, embora na época fosse neutra, se apossou da base naval de Valona, enquanto as tropas austríacas ocuparam o norte e o centro. Em abril seguinte, o Tratado de Londres concedeu à Itália Valona e o protetorado de um pequeno estado central albanês, enquanto o restante da Albânia devia ser dividido entre a Sérvia e a Grécia. Em 3 de junho de 1917, a Itália, sem consultar seus Aliados, proclamou a independência da Albânia sob proteção italiana. Os franceses reagiram criando uma república independente em Koritza, no sul da Albânia, dominando a importante e estratégica estrada de Santi Quaranta para a Grécia. Obstinadamente e, em meu modo de ver, com justa razão, mantiveram suas forças naquele remoto distrito até maio de 1920. De sua parte, os sérvios cruzaram a fronteira norte e ocuparam Scutari e a linha do Drin. Mais adiante foram obrigados a entregar Scutari a uma força interaliada, mas permaneceram ocupando o restante da Albânia setentrional. Na abertura da Conferência de Paris essa situação da Albânia era, portanto, anômala e confusa.

A situação deteriorou-se ainda mais porque cada um dos vizinhos e protetores da Albânia alimentava projetos próprios sobre a definição territorial e as fronteiras do país, e pelo fato de, pelo menos no sul, as populações serem cerradamente misturadas, e os dados estatísticos não confiáveis. Os gregos reclamavam todo o sul da Albânia, inclusive Koritsa, alegando que constituía o “Épiro Setentrional” e era habitado predominantemente por gregos. Os sérvios queriam todo o norte da Albânia, em parte por razões estratégicas e em parte por motivos étnicos. Contudo, seu principal argumento era a ferrovia Grand Trunk, que devia ligar a Iugoslávia ao sul do Adriático, e só teria saída em Scutari e ao longo do vale do Drin.

A atitude das Grandes Potências diante desse intricado problema foi ilustrativa e diversa. Os americanos e ingleses eram pró-Albânia em simpatia, embora no sul nosso entusiasmo ficasse ofuscado por uma dúvida: se seria prudente, uma vez que a Itália fincasse pé na Albânia, dar-lhe a vantagem estratégica de Koritsa e da estrada de Santi Quaranta, que, na verdade, era a única via de comunicação entre Janina e Salônica. Os franceses tendiam para nossa posição, e foram eles que finalmente nos convenceram que Koritsa devia ser atribuída à Grécia. A atitude da Itália nesse problema era ilógica, irritante e estranha.

Desde abril de 1915 a seção do Tratado de Londres pertinente à Albânia desagradava aos italianos. Eles ainda queriam a plena soberania sobre a base naval de Valona. Ainda queriam um protetorado no futuro estado albanês. Ainda queriam, como sempre, o Tratado de Londres. Porém, não mais estavam dispostos a observar as disposições restantes daquela seção do Tratado e entregar à Sérvia e à Grécia as porções norte e sul da Albânia. A primeira cessão representaria um acesso ao território da Iugoslávia, e a segunda concederia à Grécia o domínio estratégico do canal de Corfu. Em qualquer caso, se a Itália recebesse o protetorado da Albânia, convinha-lhe que o território deste estado se estendesse o máximo possível, para o norte e para o sul.

O resultado foi que – embora em todos os outros pontos (exceto Fiume) os italianos clamassem pela obediência plena do Tratado de Londres com base na “Santidade dos Tratados” – em relação à Albânia, eles alegavam que o Tratado não estava em completo acordo com o princípio da autodeterminação. Quando lhes foi salientado que a retenção de Valona também podia ser considerada uma violação desse princípio, contra-argumentaram afirmando que a posse de Valona envolvia “a honra da Itália.”

Dia após dia fomos obrigados a ouvir pacientemente essa exegese da doutrina de Wilson por nossos colegas italianos sem poder expressar o desagrado e, na verdade, a fúria cega que tais sofismas despertavam. A tolerância demonstrada pelos americanos e pela Conferência em geral diante de tal distorção de doutrina me causava um efeito terrivelmente desmoralizante. A cortesia própria da conduta internacional nos impedia de manifestar a justa indignação, a não ser por um dorido silêncio. Mas a qualquer momento poderia haver uma explosão dos Representantes dos Estados Unidos, como a seguinte: “Nesta questão, vocês acabaram de apelar para a doutrina da autodeterminação, alegando que se sobrepõe ao Tratado de Londres. Posso informar meu Presidente que a Itália aplicará esse princípio a todas as questões em que os interesses italianos estão envolvidos?” Essa pergunta não teria resposta. Mas nunca foi feita. Aguentamos em silêncio. E assim, dia após dia, nossa confiança no wilsonismo, como doutrina altiva e passível de aplicação, foi destruída.

É necessário acrescentar que a questão albanesa nunca chegou a ser resolvida pela Conferência de Paris. Os italianos continuaram ocupando militarmente aquele país até agosto de 1920, quando os albaneses levantaram-se contra eles e os jogaram no mar. Foi apressadamente negociado um armistício, e os italianos, mal conseguindo preservar sua dignidade, se retiraram. A partir de então foi adotada uma política de penetração pela via financeira. Foi extremamente bem-sucedida. Bem depois da Conferência de Paris, as fronteiras da Albânia e a posição da Itália em relação a esse país foram regularizadas por acordo diplomático.

A questão de Rhodes e das onze outras Ilhas Gregas do Dodecaneso podem ser abordadas mais resumidamente. Os italianos não possuíam direito moral e apenas parcial direito jurídico àquelas ilhas. O Barão Sonnino continuou tentando negociar com M Venizelos um acordo direto para a resolução das dificuldades greco-italianas. Os americanos e ingleses eram seguidamente iludidos com garantias de que um acerto conveniente para ambos os lados estava a ponto de ser feito. Tal acerto foi realmente alcançado entre M Venizelos e o Signor Tittoni, sucessor do Barão Sonnino. Mas quando dias de desgraça cairam sobre os gregos, o acordo foi repudiado por um governo seguinte e até hoje a bandeira italiana drapeja indevidamente (mas reconheço que saudável) sobre o Dodecaneso.

Mencionei esses dois problemas não apenas como exemplo das guinadas, hipocrisias e fingimentos que éramos obrigados a suportar em educado silêncio, mas para demonstrar até onde infelizmente se estendeu a hesitação do Presidente Wilson e seus assessores, oscilando entre princípio e detalhe. Neste aspecto, tenho de admitir, sua preparação profissional se revelou desastrosa. Nossas próprias mãos ficaram atadas pelo Tratado de Londres, e não podíamos dizer nada. Esperávamos que os americanos fizessem chover fogo do céu e sustentassem a validade de seus princípios contra qualquer ajuste de pormenores. Foram hesitantes, em parte por temerem exageradamente provocar uma “ruptura da Conferência de Paz” e, por outro lado, por um acanhamento excessivamente escrupuloso. Porém, uma vez que abandonaram a fortaleza inexpugnável de seus próprios princípios e saíram para o pantanal de detalhes que os cercava, imediatamente capitularam, superados em número e desarmados. A tragédia da Conferência de Paz foi o fato de o Novo Mundo ter consentido em se encontrar com o Velho Mundo no campo escolhido por este.

É fácil, e não muito histórico, apontar os italianos como vilões de todo esse drama. Objetivamente, hoje constato que havia e ainda há muito que se possa dizer em sua defesa. Reconheço (já o fiz antes) suas dificuldades. As emoções da Câmara dos Deputados italiana eram ainda mais desordenadas do que as da Câmara dos Comuns. Deixava-os loucos sentir que os Quatorze Pontos eram flexíveis em favor da França e da Inglaterra e rigidamente aplicados contra a Itália. A têmpera do país era ainda mais histérico do que a provocada pelo Daily Mail. A situação trabalhista era ainda mais ameaçadora do que a de Glasgow. O apetite da Itália era maior e sua capacidade de digestão muito menor do que em qualquer outro país. Ela estava decidida a se tornar uma Grande Potência, sem a força interna que justificasse tal ambição. Em janeiro de 1919, a Itália estava obviamente em seu pior momento.

Há outras considerações que tornam os assuntos enfrentados por Orlando e Sonnino particularmente desconcertantes. Já deixei claro que a desmontagem completa da Áustria-Hungria surpreendeu os italianos. É conveniente examinar essa afirmação do ângulo da necessidade italiana. O Tratado de Londres fora elaborado com base na premissa de que pelo menos alguma coisa restaria do velho Império Austro-Húngaro e que algum tipo de equilíbrio de poder persistiria junto às fronteiras norte e leste da Itália, como aquele entre os teutônicos e o eslavos. Esta suposição fora contrariada pelos acontecimentos. Contra a ameaça alemã, de fato eles eram protegidos pela linha do Brenner. Mas no leste ficaram expostos, não (como tinham previsto) a um perigo puramente naval ou de uma “polinésia” de pequenas ilhas, mas à ameaça militar de uma fronteira terrestre a ser defendida contra treze milhões de iugoslavos. Em outras palavras, o Tratado de Londres fora pensado em termos do Império Austro-Húngaro. Os termos já não se aplicavam. Para um país fraco como a Itália, eram essenciais garantias estratégicas e econômicas contra essa nova ameaça. Essas garantias se expressavam em termos de dois objetivos. (1) O Monte Nevoso como defesa estratégica contra o exército iugoslavo. (2) Fiume, como garantia – e e também uma vítima – da prosperidade econômica de Trieste. Nenhum destes dois objetivos fora prometido à Itália pelo Tratado de Londres. Ambos violavam o princípio do Presidente Wilson.

Somente pensando em termos de necessidade essencial da Itália podemos tentar compreender o aparente engano do Signor Orlando (uma vez obtido o que queria no Brenner) ao eleger como seus principais objetivos os únicos dois pontos (Fiume e Monte Nevoso) em que os signatários do Tratado de Londres tinham liberdade para se aliar ao Presidente Wilson. Frequentemente se afirma (Mr Lansing, entre outros) que o Signor Orlando soltou sobre a questão de Fiume uma opinião pública que não foi mais capaz de controlar. Há certa dose de verdade nesta afirmação. Contudo, questiono se a Delegação italiana foi até um ponto sério vítima de sua própria propaganda. Obviamente seus membros sabiam que o Tratado de Londres prometeu-lhes a Dalmácia, mas negou-lhes Fiume. Também sabiam que, pelos Quatorze Pontos, a Dalmácia era inobtível, e que, com alguns artifícios estatísticos, poderiam vencer em Fiume. Podem ter sentido que se a “Grande Voz” do povo italiano fosse incitada a um alarido por Fiume, o grande coração desse mesmo povo acabaria aceitando a consequente perda da Dalmácia. Até certo ponto esta pode ter sido sua intenção e infelicidade. Porém, sem dúvida, sentiram que as circunstâncias tinham mudado e que a posse de Fiume e do Monte Nevoso era, para a Itália, uma necessidade, muito mais premente do que qualquer floreio de brilho na Dalmácia ou nas Ilhas.

Abordo desta forma sumária o ponto central do problema do Adriático. Não faço menção ao armistício da Villa Giusti de 3 de novembro de 1918, à recusa italiana em Paris em sentar à mesma mesa dos croatas e eslovenos, à tentativa iugoslava de assegurar a decisão arbitral do Presidente Wilson, a todas as notas e negociações acontecidas entre 13 e 23 de abril, às dissensões entre o grupo House e o Grupo Bowman dentro da delegação americana e à consequente “linha Wilson,” à nossa própria atitude de, embora tendo o direito de impor exigências ao amparo do Tratado de Londres, não nos dispormos a fazê-lo, ou às idas e vindas de todo indiferentes de Mr Lloyd George entre o Hotel Crillon e o Hotel Edouard VII. A questão principal pode ser fervida até a seguinte forma:

 

  1. O Tratado de Londres prometeu à Itália a Dalmácia e algumas Ilhas Adriáticas. Não lhe destinou nem Fiume, nem o Monte Nevoso.
  2. A França e a Inglaterra estavam comprometidas com o Tratado de Londres. O Presidente Wilson se recusou sequer a levá-lo em consideração.
  3. O sumiço do Império Austro-Húngaro e o inesperado surgimento de um compacto e poderoso Estado Iugoslavo tornaram essencial para a Itália conseguir a posse de Fiume por razões econômicas e do Monte Nevoso por necessidade estratégica.
  4. Se os italianos abandonassem o Tratado de Londres, liberariam a Inglaterra e a França de qualquer obrigação por ele. Se insistissem em sua aplicação, seriam frustrados pelo veto do Presidente Wilson.
  5. Portanto, sua política foi com uma mão segurar a Inglaterra e a França no Tratado de Londres, com a outra negociar com o Presidente Wilson sobre Fiume e o Monte Nevoso. Uma vez estes obtidos, um novo Tratado podia ser negociado com a França e a Inglaterra a fim de, liberando-os das cláusulas europeias do Tratado de Londres, comprometê-las nas disposições relativas à Ásia e à África.

 

Não é de surpreender que a Delegação Italiana tenha se esforçado tanto para pôr um pé em cada canoa. Realmente desalentador é que o Presidente Wilson (que tinha todos os trunfos na mão, com exceção do caso de Brenner) tivesse adotado um método precisamente similar de afugentar e atrair. Inicialmente, em 14 de abril, deu a entender ao Signor Orlando que se dispunha a ceder na questão de Fiume. Em seguida, em 23 de abril, expediu para a imprensa um comunicado em que apelava ao povo italiano, passando por cima de seu representante eleito. Dessa forma, combinou o sigilo da velha diplomacia com as mais flagrantes indiscrições da nova.

Pode-se conjeturar que essa dualidade de ações do presidente se deveu às influências conflitantes do coronel House e do grupo de especialistas americanos que se alinhavam com Mr Isaiah Bowman. O coronel estava tomado, com toda razão, pelo temor do atraso, e acreditava que qualquer Tratado rapidamente concluído seria melhor do que qualquer Tratado que demorasse. Convém lembrar que o coronel House era um homem muito inteligente, mas, até certo ponto, desarticulado. Os especialistas achavam que o Presidente devia fazer dessa última trincheira o baluarte para defesa de seus princípios. Dirigiram-lhe, então, um apelo do tipo capaz de despertar seus sentimentos teocráticos. “Nunca,” escreveram, “o Presidente teve uma oportunidade como esta para desfechar um golpe de morte nos métodos desacreditados da velha diplomacia (...) O Presidente dispõe do raro privilégio de entrar para a história como o estadista que destruiu, através de uma decisão clara contra um vil arranjo, o derradeiro vestígio da velha ordem.”

Na verdade, não foi o derradeiro vestígio. Shantung permaneceu como humilhação final. Certamente não foi uma decisão clara. Mas o Presidente tomou força com essas palavras revivalistas. Em 23 de abril expediu para a imprensa uma declaração com seus pontos de vista sobre a questão de Fiume, na qual apelava, não sem sua velha eloquência, ao coração da Itália contra o cérebro da Delegação Italiana em Paris. No dia seguinte, o Signor Orlando deixou Paris com dramática, embora até certo ponto ensaiada, indignação. O sentimento do povo italiano explodiu apaixonadamente contra o Presidente Wilson, bradando “Fiume ou a Morte.” O Presidente apelara a ambos, a seus princípios e ao Povo. E O Povo rangeu furiosamente os dentes contra ele de ódio. Ele ficou muito abatido. A partir daquele momento parece ter abandonado qualquer esperança de impor suas doutrinas às falsas democracias da Europa.

Os detalhes do imbróglio que se seguiu são menos importantes do que esta derrota do Princípio. Em 5 de maio, os italianos retornaram a Paris. Mr Lloyd George, a partir daquele momento, se empenhou (em meu entendimento corretamente) para efetuar um acerto baseado em amplas compensações na Ásia Menor. Em 30 de maio, M Tardieu apresentou sua própria proposta de acordo. Em junho e julho ocorreram distúrbios em Fiume e alguns soldados franceses foram mortos. Em 12 de setembro D’Annunzio ocupou a cidade. Em dezembro, o Signor Nitti fez uma tentativa de meio-termo. Em janeiro de 1920, esse meio-termo foi substituído por outro. Tanto Trumbic quanto o Presidente Wilson (já então adoentado na distante Washington) rejeitaram tal acerto. O Presidente aventou negociações diretas entre os dois disputantes. Mais tarde, o problema foi discutido em San Remo, em maio de 1920, entre Trumbic e Nitti. Quase chegaram a um acordo, mas Nitti caiu. Em novembro de 1920, os iugoslavos estavam desanimados. O Presidente Wilson naquela ocasião era um homem batido pela doença e não havia esperança de ajuda. As Potências Aliadas estavam cansadas dessa controvérsia. Os iugoslavos tinham sido obrigados a se render ao Conde Sforza em Rapallo e a conceder à Itália o que na realidade significava Fiume e o Monte Nevoso. Foi dessa maneira, dezoito meses depois da Conferência de Paris, que, enquanto Wilson morria em Washington, a Itália conseguiu o que desajava.

Não estou preocupado com a solução final do Problema Adriático. Só me preocupa o que aconteceu em Paris entre 18 de janeiro e 28 de junho de 1919. Depois de ceder na questão de Brenner, por que o Presidente Wilson não foi capaz de impingir à Itália uma solução equitativa nas questões do Adriático e do Dodecaneso? Pode-se argumentar que o Presidente, até o dia de sua morte, de fato nunca concordou com qualquer concessão nesses pontos e que sua atitude foi, pelo menos no pertinente à controvérsia, menos ilógica do que a posição que adotou em relação a Shantung, à Polônia, aos mandatos e à inclusão de pensões de guerra nas reparações.

À luz fria da história, pode até parecer que, no trato com os italianos, Woodrow Wilson, a não ser no erro envolvendo o sul do Tirol, realmente manteve seus princípios incólumes. Todavia, essa não foi a impressão disseminada nos abafados salões de Paris. Reconhecemos, mais nos métodos do que nos objetivos da Delegação Italiana, tudo que havia de mais detestável na diplomacia antiga. Confiávamos que o Presidente também reconhecesse este perigo e enfrentasse os italianos com as poderosas armas de que dispunha. O espetáculo de Woodrow Wilson arrulhando de namoro com Orlando nos deixava absolutamente desesperados. Não é que negociasse inabilmente. O problema era ele concordar em negociar. Se desde o começo ele tivesse adotado uma posição firme contra as pretensões italianas, poderia mais adiante ter alcançado êxito contra a Inglaterra, a França e o Japão. Foi sua prematura hesitação na questão italiana que nos convenceu de que Woodrow Wilson não era um grande homem enérgico. Essa convicção foi um profundo desapontamento. Em suas pegadas, a desmoralização se espalhou por Paris como uma doença.