Fracasso

A finalidade deste livro, devo repetir, não é tanto descrever uma sequência de eventos, mas focalizar, antes que se evapore, a infeliz e doentia atmosfera da Conferência de Paz; transmitir alguma percepção da derivação gradual que a afastou de nossos altos anseios iniciais em favor dos países menores, onde se trabalhou num conjunto apressado em meio à neblina cada vez mais espessa. Receio que se a pressão (realmente inevitável) dessa atmosfera não for entendida como fator determinante, o historiador possa ver a Conferência com uma sabedoria que só aflora depois de realizado o evento e se concentre em plácidas críticas, distribuindo elogios e censuras. Mas não acho que um relato útil da Conferência de Paris possa ser transmitido em termos de valores éticos, ao contrário de técnicos.

A Conferência pode ter sido, como disse Mr Winston Churchill, “uma colisão ruidosa de demagogos atrapalhados.” Já indiquei algumas das causas que produziram esse ruído, a colisão e os métodos demagógicos. Porém, a despeito disso, muita coisa útil e duradoura se realizou. Muita coisa ruim foi evitada. No entanto, poucos de nós não nos decepcionamos e, em alguns de nós, a Conferência inculcou por longo tempo um sentimento de descrença, uma convicção de que a natureza humana pode, como uma geleira, se mover apenas uma ou duas polegadas a cada mil anos.

Neste capítulo final desejo resumir pelo menos alguns do que podemos chamar fatores psicológicos (ou seriam sintomas?) do fracasso; comentar a progressiva deterioração de nosso estado de espírito; assinalar nossa “mudança de ânimo”; e, se possível, atribuir esse declínio mental e afetivo a causas concretas. O historiador, com toda razão, chegará à conclusão de que fomos uns idiotas. Acho que fomos. Mas também acho que o fator burrice é inseparável de todas as atividades humanas. Muitas vezes é deixado de fora como componente inevitável do comportamento humano; e também é muito usado apenas como termo de afronta pessoal.

Em primeiro lugar, qual foi a natureza dessa deterioração moral e intelectual? Posso falar com segurança apenas sobre minha própria mudança de ânimo, no entanto acredito que as mutações por que passei foram compartilhadas por muitos outros, e que minha perda de idealismo coincidiu com uma perda similar da parte daqueles (e eram muitos) que chegaram para a Conferência inflamados pelas mesmas certezas que eu. Nossa mudança de ânimo pode ser descrita assim.

Chegamos a Paris acreditando que a nova ordem estava na iminência de se estabelecer; deixamos a cidade convencidos de que a nova ordem apenas elameara a velha. Chegamos como ferventes aprendizes na escola do Presidente Wilson; partimos como renegados. Quero alvitrar, neste capítulo (e sem amargura), que a infeliz deterioração de padrões foi em grande parte o defeito (ou se poderia dizer com mais compreensão “a infelicidade”) da diplomacia democrática.

Chegamos convictos de que seria negociada uma paz de justiça e sabedoria. Partimos convictos de que os tratados impostos a nossos inimigos não foram justos e nem sábios. Àqueles que desejarem medir a extensão do abismo que se abriu entre intenção e realidade, recomendo uma leitura atenta das diversas notas dirigidas ao Conselho Supremo pela Delegação Alemã em Versalhes. O professor Hazeltine, no volume II do livro History of the Peace Conference, de Temperley, apresenta excelente sumário e apreciação comparativa dessas notas. É impossível ler os comentários alemães sem ficar com a impressão de que a Conferência de Paz de Paris foi responsável por disfarçar uma paz imperial com a sobrepeliz do wilsonismo, e de que raramente na história da humanidade tal revanchismo se escondeu sob tão untuoso sofisma. Hipocrisia foi o predominante e inescapável resultado.

Mas foi essa hipocrisia totalmente consciente, deliberada? Creio que não. Sem dúvida, concordo em que a santimônia farisaica dos tratados é sua falha mais grave. Mas houve uma dissimulação consciente? Em alguns casos (como o do artigo que proibia a Áustria de se juntar à Alemanha) foi consciente uma forma deliberadamente evasiva de linguagem. Mas, na maioria dos casos, a hipocrisia simplesmente aconteceu. Como aconteceu? O fato de, à medida que a conferência avançava, mal percebermos o quanto estávamos afastados da realidade, pode indicar que estava ocorrendo alguma deterioração de consciência moral. Não nos dávamos conta do que fazíamos. Não notamos o quanto nos afastávamos da base original. Estávamos exaustos e sobrecarregados de trabalho. Ficávamos balbuciando velhas fórmulas na esperança de que conservassem alguma pertinência com nossos atos. Foram poucas as ocasiões em que dissemos a nós mesmos: “Isto é injusto.” Mais das vezes nos dissemos: “Melhor um mau Tratado hoje do que um bom Tratado daqui a quatro meses.” Na poeira da controvérsia, no crepitar da pressão do tempo, perdemos contato com nossas estrelas-guias. Em certos momentos a poeira baixava, a máquina parava e podíamos constatar, com cansado pesar, que a estrelas empalideciam contra o céu. “Il faut aboutir!” É preciso terminar, gritavam, e lá voltávamos nós para o tumulto e a obscuridade de nossas obrigações. Ainda desejávamos ardentemente manter nossos princípios incólumes; só mais tarde, depois do intervalo, percebemos que eles permaneciam conosco apenas como palavras vazias. Foi quando, e só então, encaramos o fato de que a falsidade de nossa posição nos levara a ser falsos. Já era então muito tarde.

O que acima escrevi não traduz nenhum desejo de defender nosso estado de espírito. Estou só examinando, não defendendo. Minha tese é que esse declínio de nossa consciência moral constituiu o mais lamentável e talvez único elemento interessante em nossa deterioração. Quero explicar como, em meio a incessantes discussões e embrenhados nos becos de intermináveis detalhes, nos afastamos das avenidas principais de nossas intenções, e como foi de forma inconsciente, e não deliberada, que, ao chegar, nos orgulhávamos de ter feito o caminho que pretendíamos.

Creio que este ponto tem certa importância. Se as futuras gerações vierem a acreditar que a Conferência de Paris foi, sob todos os ângulos, deliberada e extraordinariamente, hipócrita estarão (quando também se fizerem presentes em Congressos) desprotegidas contra a desgastante falsidade inseparável de qualquer tentativa para acomodar elevados princípios gerais com detalhes práticos de menor importância.

Em todas as discussões entre estados soberanos que afirmam igualdade entre si, decisões só podem ser tomadas por unanimidade, e não por voto de maioria. Essa maldição inevitável da unanimidade leva ao não menos inevitável rumo do compromisso, do meio-termo. Todos os meios-termos têm um componente de falsidade, mas quando têm de se referir de volta aos princípios ou generalizações orientadores surge uma dupla falsidade. Não nego a pavorosa hipocrisia dos Tratados de Paris. Apenas defendo que tal hipocrisia não foi sempre consciente ou deliberada; que não era humanamente evitável; e que hipocrisia similar também pode não ser evitável em todos os casos futuros.

Qualquer leitor inteligente poderá argumentar que essa análise da natureza de nossa hipocrisia afinal não é uma explicação, mas simplesmente uma desculpa esfarrapada e vazia. No entanto, a explicação está implícita em meu argumento e é a seguinte.

Os negociadores em Paris estiveram desde o começo numa posição falsa. Essa falsidade cresceu durante todo o tempo em que Tratado Alemão foi discutido. O Tratado da Alemanha é a raiz e causa de todo o fracasso, da rápida deterioração do alerta moral. Requer, pois, uma análise de suas partes componentes.

Já indiquei em capítulos precedentes muitos dos elementos de falsidade que afligiram a Conferência de Paris desde os primeiros dias. Chamei a atenção para a incoerência entre o quadro existente nos momentos em que a vitória ainda era incerta e a interpretação desse quadro quando o triunfo, esmagador e insaciável, estava em nossas mãos. Lembrei que um idealismo surgido para mitigar a angústia de possível derrota pode se transformar na prática, quando aplicado ao apetite despertado pela vitória consumada. Também salientei a aguda dificuldade enfrentada pelos negociadores em Paris de conciliar as exaltadas expectativas de suas democracias com as considerações mais serenas indispensáveis à edificação de uma paz duradoura. Tais contrastes podem ser listados sob a chave do que sempre será o principal problema da diplomacia democrática: o ajustamento da emoção das massas ao pensamento dos governantes.

A nova diplomacia pode ser imune a alguns dos vírus de fingimento que afetavam a velha: mas é agudamente sensível ao seu vírus peculiar – ao vírus da imprecisão. O que os estadistas pensam hoje, as massas poderão vir a sentir amanhã. Mas nas condições em que se realizou a Conferência de Paz, requerendo extrema rapidez de decisão, o intervalo de tempo entre as emoções das massas e os pensamentos dos estadistas é um fator muito desvantajoso. A tentativa de preencher rapidamente a lacuna entre emoção de massa e raciocínio de especialistas leva, na pior hipótese, a aberta falsidade e, na melhor, a grave imprecisão. A Conferência de Paz de Paris não foi um exemplo de diplomacia democrática na sua melhor forma. Então, a lacuna foi preenchida por falsidade aberta.

Esse tipo geral de falsidade, inseparável de todas as tentativas de diplomacia democrática, em Paris foi complicada e fortalecida por circunstâncias especiais que, por sua vez, requerem ser declaradas e analisadas. O contraste entre emoção de massa e raciocínio de especialistas apresentou-se a nós em termos agudos e difíceis. Tomou a forma – a desnecessária e desconcertante forma – de um contraste não apenas entre a nova diplomacia e a velha, mas entre o novo mundo e o velho, entre a Europa e os Estados Unidos. Não digo que esse contraste, em todas as suas implicações, fosse inteiramente percebido na época. Sustento apenas que foi determinante ao longo de toda a Conferência; que era, na verdade, irreal e não um contraste real; e que a tentativa de conciliar essas duas irrealidades foi o principal erro de conceito da Conferência e a raiz de toda a falsidade resultante. Permitam-me pôr esse contraste em termos bem simples.

De um lado, tinha-se o wilsonismo – doutrina muito fácil de declarar e muito difícil de aplicar. Mr Wilson não inventara nenhuma nova filosofia política, ou descobrira qualquer doutrina nunca sonhada e apreciada em muitas centenas de anos. A única coisa que tornou o wilsonismo tão apaixonadamente interessante na época foi o fato de esse sonho centenário se ver subitamente respaldado pelos recursos esmagadores do mais poderoso país do mundo. Lá estava o homem que representava a maior força física que jamais existira, comprometido claramente com a mais ambiciosa teoria moral que qualquer estadista já enunciara. Não que as ideias de Woodrow Wilson fossem tão apocalípticas; é que pela primeira vez na história havia um homem que dispunha não apenas da vontade, não só do poder, mas da inquestionánel oportunidade de impor essas ideias ao mundo inteiro. Seríamos realmente muito insensíveis se não fôssemos inspirados pela magnitude de tal ocasião.

Do outro lado estava a Europa, produto de uma civilização totalmente diferente, herdeira de circunstâncias inalteráveis, possuidora de experiência mais longa e prática. Através séculos de conflitos, os europeus vieram a aprender que guerras são tramadas quase sempre com a expectativa de vitória, e que tal expectativa diminui num sistema de equilíbrio de forças que torna a vitória difícil, se não incerta. O valor defensivo de armamentos, fronteiras estratégicas, alianças e neutralidades pode ser computado com precisão aproximada; já o valor defensivo do “comportamento virtuoso de todos” não pode. Se realmente o wilsonismo pudesse aplicar-se integral e universalmente, e se de fato a Europa pudesse confiar na América para sua implantação e imposição, então seria mesmo uma alternativa infinitamente preferível aos perigosos e provocativo equilíbrios de poder do sistema europeu.

Respaldados pela garantia de apoio imediato e incondicional da América, os estadistas da Europa possivelmente poderiam jogar fora seu velho modelo de segurança e adotar a segurança mais ampla oferecida pelas teorias de Woodrow Wilson. Mas estavam eles certos de que a América seria tão altruísta, quase tão quixotesca, a ponto de garantir o wilsonismo para a Europa? Estariam convencidos até mesmo de que os países europeus, quando chegasse a hora, aplicariam o wilsonismo a si próprios? Os Quatorze Pontos foram exaltados como um admirável método de tirar cisco dos olhos dos outros. Mas estaria qualquer grande e vitoriosa Potência disposta a retirar vigas de seu próprio corpo político? Os mais ardentes defensores ingleses do princípio da autodeterminação viram-se, mais cedo ou mais tarde, numa posição falsa. Por mais que fervesse nossa indignação diante das exigências italianas com relação à Dalmácia e ao Dodecaneso, poderia ser esfriada por uma referência, não só a Chipre, mas à Irlanda, ao Egito e à Índia. Tínhamos aceitado para os outros um sistema que, na prática, recusaríamos a aceitar para nós.

Esse não foi o único elemento de falsidade que desde o começo desacreditou o evangelho de Woodrow Wilson. O anglo-saxão é dotado de uma ilimitada capacidade de excluir suas próprias necessidades práticas da aplicação das teorias idealistas que procura impor aos outros. Os latinos são diferentes. A precisão lógica do gênio francês e, em menor dose, do italiano não permite tal obscuridade. O anglo-saxão é capaz de acusar o latino de “cinismo” porque hesita em aderir a uma religião que não está preparado para aplicar à sua própria conduta, tão distinta da dos outros. O latino acusa o anglo-saxão de “hipocrisia” porque deseja impor aos outros uma norma de comportamento que se recusa, ele próprio, a adotar. Na verdade, o contraste entre os dois não é entre cinismo e hipocrisia, mas entre dois hábitos mentais divergentes. O anglo-saxão é capaz de sentir antes de pensar, e o latino é capaz de pensar antes de sentir. Foi esta divergência de hábito, este hiato entre razão e emoção, que induziu os latinos a examinar a Revelação de Woodrow Wilson de forma mais científica e, portanto, mais crítica do que nós. Por essa análise chegaram a certas conclusões que destruíram sua crença.

Observaram, por exemplo, que os Estados Unidos, ao longo de sua história curta mas marcadamente imperialista, tinham constantemente se proclamado virtuosos, enquanto, com a mesma constância, violavam sua profissão e recorriam ao materialismo mais flagrante. Observaram que todos os americanos gostavam de sentir como Thomas Jefferson e de agir como Alexander Hamilton. Observaram que princípios como o da igualdade do homem não se aplicava aos amarelos ou aos negros. Observaram que a doutrina da autodeterminação não fora aplicada aos peles-vermelhas e nem mesmo aos estados sulistas. Foram capazes de examinar “os princípios e as tendências americanas” não em termos da declaração de Filadelfia, mas em termos da guerra com o México, da Louisiana, daqueles inúmeros tratados com os índios que foram violados impudentemente antes que a tinta secasse. Também observaram, quase com memória viva, que o grande Império Americano fora conquistado pelo emprego da força implacável. Podemos culpá-los se duvidaram, não tanto da sinceridade, mas da real aplicabilidade do evangelho de Woodrow Wilson? Podemos culpá-los por temerem que o realismo americano, quando chegasse a hora, rejeitaria a responsabilidade de fazer o idealismo americano funcionar na Europa? Podemos surpreender-nos que preferissem as precisões de seu velho sistema ao vago idealismo de um novo sistema que a América podia se recusar a aplicar até mesmo em seu próprio continente?

Apenas para fazer justiça, convém mencionar que no seio da Delegação americana essa infeliz dissonância gerou um sentido de impotência. O próprio Presidente conseguiu dispensar de sua consciência todas as considerações que pudessem incomodar as fundações de sua fé mística. O coronel House, homem de inteligência robusta, se possuísse o controle supremo teria sido capaz de transpor o abismo de forma científica e de ter um triunfo honesto de engenharia diplomática. Mas sobre os outros membros da delegação, ardentes e sinceros, a suspeita de que a América pedia da Europa em nome da justiça sacrifícios que a América jamais fez e jamais faria, produziu um sentimento de acanhamento, incerteza e crescente desespero. Fosse o Presidente Wilson um homem de amplitude de visão excepcional, de determinação sobre-humana, poderia ter superado todas essas dificuldades. Infelizmente nem a força de vontade do Presidente Wilson e nem sua força mental eram, de forma alguma, sobre-humanas.

O colapso do Presidente Wilson na Conferência de Paz de Paris é uma das maiores tragédias da história moderna. Em grande parte, esse colapso pode ser atribuído aos defeitos de sua inteligência e caráter. É preciso examinar esses defeitos e relacioná-los com os erros estratégicos e táticos que cometeu.

“Ele possuía,” escreve o coronel House, “uma das personalidades mais complexas e difíceis que já conheci.” A desorientação com que, em Paris, sua cegueira e indecisão encheram os que lhe eram próximos está refletida nas explicações extravagantes que procuram inventar. Mr Stannard Baker, por exemplo, fez o que pôde para provar que Woodrow Wilson foi a vítima de uma conspiração da velha diplomacia. Mr Lansing, mais equilibrado em seu julgamento, diz que a recepção apoteótica ao desembarcar na Europa perturbou seu equilíbrio mental. Outros chegaram a dar a entender que a constante contração do lado esquerdo de seu rosto e a doença que, disfarçada em gripe, o atacou em abril, eram os primeiros sintomas da paralisia que o abateria em outubro. Mesmo que assim fosse, permanece o fato de as falhas de caráter do Presidente Wilson, sua inflexibilidade e arrogância espiritual terem se acentuado patologicamente após sua chegada à Europa. E pairaram, como um fenômeno quase físico sobre a Conferência de Paris.

Não se pode dizer que Woodrow Wilson subestimou a importância de sua missão na Europa ou o papel decisivo que se esperava ele desempenhasse pessoalmente. Pode ser, como insinua o coronel House, que tenha encarado a Conferência como “um delicioso acontecimento intelectual.” Mas estava bem consciente da imensa responsabilidade recaída nele e convicto das terríveis dificuldades que teria de enfrentar. Viu a si mesmo (e nisso, na época, não houve ilusão) como o profeta da humanidade, como um embaixador acreditado junto à justiça por todo o mundo. Ao desembarcar, proclamou: “Se não tivermos cuidado com os mandatos da humanidade, seremos, merecidamente, o mais estrondoso fracasso da história mundial.”

Apesar de tal componente emocional, não seria exato ver Woodrow Wilson somente como um demagogo místico, crente que umas poucas palavras na prosa inglesa demoliriam de um sopro os velhos parapeitos da Europa. Já acentuei seu lado místico, supersticioso. Sua crença pueril na relação pessoal dele com o número 13, tão vulgar quanto sua ideia de a “voz da gente comum” equivaler ao juízo de Deus, é uma importante manifestação deste misticismo. Mas há facetas objetivas. Alertou os membros da delegação, quando discursou para eles a bordo do George Washington, que a batalha que enfrentariam não seria fácil. Advertiu-os, com palavras de Josiah Quincy, que deveriam lutar por uma nova ordem “de maneira agradável se for possível, desagradável, se for necessário.” É verdade que Mr Lansing condena o presidente por seus métodos nada business, por sua falta de um projeto ou de coordenação. “Em momento algum,” escreveu, “houve trabalho em equipe, opinião comum e ação coordenada.”

Essa crítica, se me aventuro a reparar, poderia ser dirigida a outros entre os plenipotenciários. Comparado a seus colegas na mesa do Conselho, Mr Wilson era objetivo, muito bem informado e perfeitamente preciso. Mr Balfour sempre nos assegurava não ver falhas na técnica do Presidente. Durante as reuniões, era invariavelmente paciente, conciliatório e sereno. Em alguns momentos raciocinava com certa lentidão, mas estava lidando com as flechas velozes do intelecto latino de Clemenceau ou com as rápidas viradas de peixe da intuição de Mr Lloyd George. O colapso de Woodrow Wilson deve ser atribuído a razões muito mais profundas do que simples insuficiência diplomática ou de equipamento de conferência.

O presidente, convém lembrar, descendia de Covenanters, participantes da reforma protestante na Escócia, herdeiro de uma tradição presbiteriana mais direta. Aquela arrogância espiritual que parece inseparável das formas mais duras de religião mordera profundamente sua alma e se consolidara no curso de muitas lutas com o Professorado de Princeton. Sua visão se estreitara em virtude da sólida formação ética que recebera. Possuía – ele mesmo admitia – “uma mente de mão única.”

Essa redução, esse defeito intelectual o fez cegamente hermético, não apenas no referente às características das pessoas, mas também a matizes de opinião. Não tinha o dom estabelecer distinções, nenhuma capacidade para se ajustar às circunstâncias. Foi sua rigidez espiritual e mental que provocou sua destruição. Tornou-o incapaz de suportar críticas e de absorver conselhos. Cegou-o a todas as ações práticas que não se ajustassem às suas ideias preconcebidas, e até para as realidades de suas próprias decisões.

Ele e sua consciência gozavam de tal intimidade que qualquer pequena divergência podia ser facilmente superada. A profunda, inflexível e mui justificada convicção de sua própria retitude espiritual, aliada à sólida crença de que Deus, Wilson e o Povo no fim seriam vitoriosos, o levaram a encarar suas próprias deficiências como meros e passageiros detalhes na grande empreitada rumo ao direito e à justiça. Identificava o Covenant da Liga das Nações com esse impulso central e, diante da “Arca da Aliança” sacrificou, um a um, seus Quatorze Pontos. Tomara que a turvação final de seu cérebro o tenha poupado do horror de compreender o que fizera à Europa e o que os políticos americanos fizeram com ele.

Sua arrogância espiritual e a natureza dura mas mesquinha de sua mente ficam bem evidentes na alienação à realidade política, ao lado de sua perturbadora percepção da realidade partidária. De um lado, por motivo partidário, recusava-se a se aliar a qualquer figura de destaque entre seus opositores políticos. Mr Henry White, diplomata convidado por ele para a Delegação, embora republicano, não era o representante que os próprios republicanos teriam indicado. A extrema severidade com que Woodrow Wilson encarava todos os políticos contrários é um dos menos agradáveis e sensatos traços de seu caráter.

De outro lado, embora sendo um membro entusiasta do partido, estranhamente parece ter ignorado sua própria posição na política. Em solene pronunciamento feito a bordo do George Washington para os membros de sua delegação, informou-os não só que os Estados Unidos seriam a única nação sem interesses na Conferência, mas também que ele próprio era o único plenipotenciário que possuía um total mandato do povo. Na ocasião, disse: “Os homens com que vamos lidar não representam seu próprio povo.”

Acontece que naquele mesmo instante estavam em curso na Inglaterra as eleições que levariam Lloyd George a Paris com o mandato popular conquistado com a mais esmagadora vitória que já se vira. M Clemenceau, poucos dias mais tarde, obteve na Câmara da França um voto de confiança com maioria de quatro para um. Ao passo que Mr Wilson, em consequência do resultado das eleições de um mês antes, estava diante de uma maioria contra ele nas duas Casas do Congresso. Sua recusa em enfrentar a realidade dos fatos evidencia a estreiteza de uma mente que apagou toda luz que viesse do exterior. Indica (e não pode haver exemplo melhor) que sua mente estava iluminada exclusivamente pelo incenso da própria autoadoração; da adoração a Deus; da adoração ao Povo.

Como acontece com a maior parte dos teocratas, Woodrow Wilson era um homem solitário e inacessível. Como no caso de muita gente de consciência presbiteriana atuante, era reservado até consigo mesmo. “Nunca,” assim recorda seu mais ardoroso defensor, “pareceu apreciar o valor do contato comum com as pessoas.” “Parecia,” diz Mr Lansing, “que encarava uma oposição como afronta pessoal.” Estava sempre disposto a procurar seus notáveis especialistas para obter informações, mas raramente se propunha a ouvi-los quando se aventuravam a dar um conselho. Nesta predileção pelas informações em detrimento das ideias de seus especialistas, o Presidente Wilson não estava sozinho entre os plenipotenciários da Conferência. E não podemos culpá-los; eram tantas ideias; eram tantas informações! Inevitavelmente, os plenipotenciários, soterrados como estavam, preferiam selecionar, dentre as Informações, os elementos que mais se ajustava a seu próprio conceito sobre as Ideias.

Essa tendência comum entre os plenipotenciários responde pela divergência de opinião manifestada pelos especialistas americanos quando inquiridos por seu próprio Senado sobre este ponto. Mr William Lamont, uma das figuras mais inatacáveis da Conferência de Paz, afirmou que o Presidente fazia consultas frequentes. Mas Mr Lamont era um assessor econômico e financeiro e, nessa área, o Presidente não possuía conhecimento pessoal. Já Mr Lansing, cujo pensamento era voltado para as áreas jurídica e política, afirma nunca ter sido consultado pelo Presidente: “Para ele, era um assunto absolutamente pessoal.” Nesse aspecto, pelo menos, o Presidente Wilson estava na mesma situação de seus colegas. A insistência de seus críticos com relação à sua inabilidade em consultar seus assessores não é, a meu ver, realmente válida. O que interessa não é a atitude mental em que o Presidente Wilson se igualava aos colegas do Conselho, mas aquela em que ele diferia. Esta é a que desejo explorar.

Um luz lateral do caráter do Presidente, para a qual já chamei a atenção, era sua sensibilidade às críticas da imprensa, particularmente às zombarias. Esse ponto, embora já mencionado anteriormente, merece ser examinado. Mr Lloyd George e M Clemenceau eram, a este respeito, maravilhosamente paquidérmicos. Mr Wilson mantinha a sensibilidade à flor da pele. Em 10 de fevereiro, M Capus escreveu um artigo no Figaro que dizia o seguinte: “O Presidente Wilson assumiu airosamente uma responsabilidade que poucos jamais suportaram. O êxito de seus esforços idealistas o deixará sem dúvida entre os maiores vultos da história. Mais il faut dire hardiment, que s’il échouait il plongerait le monde dans un chaos dont le bolschévisme russe ne nous offre qu’une faible image et sa responsabilité devant la conscience humaine dépasserait ce que peut supporter un simple mortel.” (Mas é preciso dizer corajosamente que, se fracassar, mergulhará o mundo num caos do qual o bolchevismo russo não passa de pálido exemplo e sua responsabilidade perante a consciência da humanidade excederá o que um simples mortal é capaz de suportar.)

O Presidente Wilson reagiu a essa tremenda lucidez de M Capus ameaçando transferir a Conferência para Genebra. Mas sofreu muito. Nos dias da crise de abril, sua posição enfraqueceu por causa dessa estranha forma de se atormentar. A imprensa francesa, àquela altura, descobrira que o Presidente Wilson era não apenas teológico e inconveniente, mas realmente engraçado. Divertia-se às suas custas com posturas levianas. M Clemenceau conseguiu muitas concessões do Presidente em troca da promessa de dar um fim naquelas gracinhas. Senso de humor, portanto, nem sempre leva à fraqueza, mas sua imunidade a isso foi uma desvantagem para Woodrow Wilson em Paris. Mr Lansing comenta o risinho discreto sob o qual o Presidente ocultava sua lentidão mental. “Parecia,” afirmou, “quase um pedido de desculpa.” Mr Lansing passava hora após hora sentado ao lado do Presidente naquele salão extravagante que era o centro do Conselho Supremo, ouvindo calado o riso inapropriado com que seu Presidente procurava esquivar-se da tragédia de sua própria incompreensão. Mr Lansing passava seu subserviente tempo rabiscando desenhos de duendes em seu bloco de notas. Há muito a ser perdoado em Mr Lansing por aguentar em silêncio ao longo daquelas horas intermináveis, ver a areia do poder de resolução escorrer monotonamente entre os dedos do presidente.

“O mundo,” assim se expressara o Presidente na sala para fumantes cheia de expectativa do George Washington, dirigindo-se a seus futuros assistentes, “o mundo não tolerará que haja apenas arranjos. Esta é uma Conferência de Paz em que não se podem fazer combinações à moda antiga.” Depois de dizer isso, Woodrow Wilson meteu-se em combinações tal qual um agente de viagens monta conexões. Em poucos dias, aceitou um esquema sobre a fronteira no Brenner. Deixou-se persuadir que as pensões de guerra podiam ser classificadas como “danos às populações civis.” Permitiu-se acreditar que o sistema de mandatos era mesmo algo diferente de anexação. Engoliu a cláusula da Culpa pela Guerra e as grotescas cláusulas que injustamente puseram inocentes entre os criminosos de guerra. Permitiu que toda a questão do desarmamento fosse desviada para a esfera do desarmamento unilateral da Alemanha. Capitulou em Shantung como capitulara na Polônia. Cedeu sobre a Renânia, da mesma forma como cedeu sobre o Sarre. Nas cláusulas de reparações financeiras e econômicas não teve nenhuma boa influência, uma vez que, como reconhecia, “não se interessava muito por assuntos econômicos.” Permitiu a proibição da autodeterminação da Áustria com base em uma das expressões mais especiosas jamais redigida por juristas. Permitiu que as fronteiras da Alemanha, da Áustria e da Hungria fossem fixadas de uma forma em flagrante violação de sua própria doutrina.

Disse a seus opositores: “Devo me ater a meus princípios, e apenas peço que me mostrem como vossos desejos podem se harmonizar com as profissões que fiz.” Ao fim de tergiversações desta natureza, continuava a sustentar que, na verdade, suas intenções originais não tinham sido contrariadas e que na Convenção da Liga poderiam identificar toda a pletora de bênçãos que se empenhara em proporcionar ao mundo.

Nunca lhe passou pela cabeça que ao assinar o Tratado de Garantias com a França desfechara no prestígio de sua própria Convenção da Liga um golpe do qual a messiânica doutrina jamais se recuperaria. Buscava deploráveis desculpas para sua fraqueza. O acordo sobre Shantung fora aceito para salvar o mundo de uma nova forma de militarismo. O acordo da Renânia fora celebrado para salvar o mundo de um deslocamento de população. “O problema principal,” disse ele na ocasião, “é o de sempre haver acordo, porque a pior coisa que pode acontecer, eu diria, é configura-ser uma divisão nítida entre as Potências Aliadas e Associadas.” “Pessoalmente,” acrescentou, “creio que a questão se resolverá sozinha pela admissão da Alemanha na Liga das Nações.”

A Convenção realmente foi para ele o depósito em que guardava toda a mobília inconveniente. “Há em sua cabeça,” disse Mr Lansing, “uma estranha mistura de afirmação e indecisão (...) O inopinado, e não a presteza, sempre marcou suas decisões.” Sem dúvida, são as manifestações de um caráter essencialmente fraco. A transferência de sua crença dos Quatorze Pontos para o Covenant, a Convenção da Liga, é outro sintoma dessa insegurança interior. A Liga, por mais valiosa que tenha sido e que venha a ser como balcão de agência onde solucionar divergências internacionais, jamais poderia se transformar, mesmo que os EUA aderissem a ela, num superestado a dirigir toda a atividade internacional.

Mr Wilson, tendo cedido tanto no domínio dos fatos, tentou se recuperar dessas derrotas no domínio da teoria. Uma vez mais, faltou-lhe o senso de realidade. Como escreveu o Dr Dillon: “Ele deu à Liga crédito por virtudes que tornariam a própria Liga desnecessária, e foi indulgente com emoções que tornaram sua imediata concretização impossível.” Deve ter havido momentos, lá pelo fim de abril, em que o Presidente Wilson, apesar de sua obscuridade, constatou angustiado que transformara sua doutrina numa trapalhada. Mas com que dor na alma deve ter refletido sobre a crescente probabilidade de o Povo Americano, aquela divindade em que ele confiava tão cegamente, ser o primeiro a repudiar o único trabalho de respeito que realizara?

Frequentemente se afirma que o menos perdoável entre os erros do Presidente Wilson foi a falha em avisar seus Associados que os Estados Unidos talvez não se dispusessem a assumir a obrigação de apoiar um sistema para cujo sucesso a esses mesmos associados se pediam pesados sacrifícios em segurança e vantagens particulares. Tal alegação não é bem precisa nem inteiramente justa.

Por um lado, as Potências Europeias estavam perfeitamente cientes de que o Presidente Wilson naquele momento não representava realmente a opinião pública americana. No início de janeiro, Mr Lloyd George, em reunião secreta da Delegação do Império Britânico, explicou a dificuldade em que o Presidente se encontrava. As eleições de novembro para o Congresso, os pronunciamentos do ex-presidente [Theodore] Roosevelt, a atitude do Senado de então, tudo indicava que a América não honraria o cheque em branco que Mr Wilson queria que a Europa aceitasse em lugar da velha moeda. Que fazer? Constitucionalmente, o Presidente ainda era o executivo e falava em nome de seu país. Era possível dizer- -lhe cruamente que não confiávamos em suas credenciais? Obviamente essa linha de ação era impossível. A única coisa que a Europa poderia fazer era salvar a face do Presidente; e a única coisa que o próprio Wilson podia fazer era salvar a face da Europa. Mais uma vez constata-se uma falsidade de posição que, embora crucial, nunca foi suficientemente exposta. Como a maioria das posições falsas, pareceu delicada demais para ser imediata e sistematicamente confrontada. Nunca lancetaram esse abscesso.

Por outro lado, o Presidente Wilson não fazia uma ideia exata de até que ponto seu próprio povo iria repudiá-lo. M Clemenceau recordou que, questionado sobre uma possível mudança na opinião pública americana, o presidente “invariavelmente respondia com imperturbável confiança.” “A América,” dizia, “já aguentou muito de mim. Aguentará isso também.” Em 20 de março, informou ao Conselho Supremo: “Reconheço que os Estados Unidos devem assumir as responsabilidades, tanto quanto os benefícios, da Liga das Nações. No entanto, há grande antipatia nos Estados Unidos a assumi-las.” Seu otimismo em afirmar com toda seriedade que os Estados Unidos aceitariam um mandato sobre a Armênia e até sobre Constantinopla nos deixou muito apreensivos. Mas isso não era apenas uma autoconfiança pessoal. Convém lembrar que, em março de 1919, 34 das 36 legislaturas estaduais e 33 governadores tinham endossado a Liga. Mesmo críticos veementes como Mr Lansing admitem que já em junho de 1919 “era crença geral que o Presidente acertaria suas diferenças com um número suficiente de senadores republicanos.” Não se podia prever que Mr Lodge fosse capaz de transformar uma responsabilidade mundial em assunto partidário. Entretanto, permanece o fato de, após sua ida a Washington em fevereiro, Mr Wilson tinha de saber que, mesmo a doutrina de Monroe sendo incluída na Convenção e, por conseguinte, livrando os EUA de qualquer responsabilidade para com a Europa, era discutível que o senado ratificasse o que ele fizera. Pode-se até alegar que foi a constatação desse fato espantoso que o convenceu a abrir mão de seus princípios em favor das vontades da Europa. Pode ser, mas não há provas que confirmem essa ideia. Tampouco os métodos e procedimentos do Presidente Wilson, antes e depois de sua visita de fevereiro, diferem entre si a ponto de justificar a suposição. O fato parecia terrível demais para se enfrentar. Todo o Tratado se erigira sobre a premissa de que os Estados Unidos não seriam um mero signatário, mas sim um executante ativo. A França fora persuadida a abandonar sua reivindicação de um estado-tampão entre ela e a Alemanha em troca da garantia de apoio militar dos Estados Unidos. Todo o acordo sobre reparações dependia, para se implementar, da presença de um representante do principal credor da Europa na respectiva comissão. Todo o Tratado fora deliberada e engenhosamente estruturado pelo próprio Mr Wilson para tornar essencial a cooperação americana. Claramente, como assinalara M Capus em janeiro, a aceitação e o subsequente abandono traidor das responsabilidades assumidas foram uma carga à qual nenhum ser humano poderia sobreviver. E Mr Wilson não sobreviveu.

Alguma experiência e muito estudo de negociações internacionais me deixaram com uma sólida convicção. Participei de muitas conferências e de cada uma extraí um resíduo dessa convicção, que é a seguinte: o essencial da boa diplomacia é a precisão, e seu maior inimigo a imprecisão.

Por essa razão empenhei-me, neste livro, em transmitir uma certeza sobre os horrores da imprecisão. A velha diplomacia podia ter graves defeitos, mas eram veniais comparados às ameaças enfrentadas pela nova diplomacia. Essas ameaças podem se classificar sob dois títulos distintos. O primeiro é diplomacia ostensiva versus diplomacia secreta. Em outras palavras, uma conduta democrática dos negócios internacionais em contraposição a uma conduta por especialistas. Amadorismo em todos esses assuntos leva à improvisação. Franqueza, em todos os mesmos assuntos, leva à imprecisão. Nenhum estadista quer vincular-se antecipada e abertamente a uma política precisa. Uma política imprecisa significa não haver política. Traduz unicamente aspiração. Todos temos nossas expectativas.

A segunda ameaça está implícita na expressão “Diplomacia de Conferência.” Nada pode ser mais fatal que o hábito (hoje persistente e pernicioso) de contato pessoal entre os Estadistas do Mundo. Alega-se em defesa desse passatempo que os Ministros do Exterior das Nações “precisam se conhecer bem.” É um conhecimento extremamente perigoso. Contato pessoal gera inevitavelmente familiaridade pessoal que, por seu turno, leva em muitos casos à amizade: não há nada mais danoso à precisão em relações internacionais do que a amizade entre as Partes Contratantes. Locarno, para não falar em Thoiry, devia ter nos convencido da conveniência de manter nossos estadistas segregados, imunes e mutuamente afastados. Isso não é mero paradoxo. Diplomacia é a arte de negociar documentos numa forma ratificável e, portanto, confiável. Não é absolutamente a arte da conversação. A afabilidade inseparável de qualquer conversação entre ministros do Exterior produz alusões, compromissos e altas intenções. Diplomacia, para ser eficaz, deve ser um atividade desagradável. E escrita em linguagem dura.

Na minha própria evolução posso identificar os estágios pelos quais cheguei a essa tese seguramente inquestionável. Posso ver minha estrada para Damasco na minha “estrada” para a Conferência de Paz de Paris. Viajei inspirado apenas pelas ideias de Woodrow Wilson. No meu coração não havia nenhum triunfo vitorioso, nenhum desejo de punição ou de vingança. Pensava apenas em termos de Nova Europa, e interpretava esses termos por meio da revelação do profeta da Casa Branca. Descobri que esse profeta era um homem seco e inseguro. Fiquei desconcertado com a descoberta. Mais tarde cheguei à penosa constatação de que meu profeta não tinha a menor condição de fazer valer sua própria profecia. Desertei para outros mestres. Estavam disponíveis a meu lado. Mr Balfour, Mr Lloyd George, o general Smuts, Robert Cecil, Venizelos, Benes e Eyre Crowe. Foi com eles que aprendi minha lição.

Mr Balfour ensinou-me que emocionalismo em política é sempre um erro; que existe um termo médio entre emocionalismo e cinismo difícil de definir, mas que, com inteligência é possível alcançá-lo, embora parcial e temporariamente. Mr Lloyd George ensinou-me que oportunismo evidente nem sempre é irreconciliável com visão, que inconstância de método nem sempre indica volatilidade de intenção. Em seu memorando de 25 de março e em sua grande batalha de 4 de maio, mostrou que, no que tange à razoabilidade, um político é melhor que um teocrata. O fim de minha adoração por Wilson ocorreu quando um membro de sua delegação contou-me como o Presidente reagira ao empenho de Lloyd George para tornar o Tratado mais justo e razoável. Mr Wilson disse a seus assessores que esse esforços o “tinham deixado exausto.” Fiquei abismado com essa revelação.

O general Smuts ensinou-me que, quaisquer que fossem os erros que tivermos cometido em Paris, a única derrota que realmente importou foi o reconhecimento de que era uma derrota duradoura. Foi Smuts – bem preparado, cortês e enxergando horizontes presentes e futuros além do que eu podia distinguir – quem me ensinou a discordar, a nunca esquecer de discordar, mas a não deixar a discordância impregnar minha alma.

Robert Cecil – com quem tive pouco contato – ensinou-me uma coisa. Fez um discurso no banquete da estreia de uma instituição de inestimável valor– o Royal Institute of International Affairs. Disse que nosso valor é avaliado na medida de nossa insatisfação. Essa observação foi uma grande descoberta e um incentivo para mim.

Ao lado desses idealistas práticos vieram os idealistas profissionais. Sem dúvida Venizelos era um imperialista, e suponho que, na fé em seu país, estava errado. Mas era homem mais humano que todos os outros, uma inteligência sempre pronta para o ataque, uma brandura quase mortal em sua aplicabilidade. Benes ensinou-me que o Equilíbrio de Poder não era necessariamente coisa para causar vergonha, mas possivelmente científica. Mostrou-me que somente sobre a base firme desse equilíbrio os fluidos da amizade poderiam circular na Europa sem interrupção.

E houve também Eyre Crowe. Meu chefe imediato, e sempre no controle, esse homem de extrema violência e extrema gentileza tornou-se quase uma obsessão. Era tão humano. Super-humano. Em determinado instante olhávamos com apreensão sua abusiva insolência diante de M Clemenceau ou de algum outro homem forte. “Crowe,” dizia Clemenceau (que sabia reconhecer valor), “c’est un homme à part.” No momento seguinte podíamos ver sua extrema solicitude com uma datilógrafa adoentada. É difícil falar de Crowe sem cair no terreno delicado do sentimentalismo. Mas ali estava, se já houve, um homem de verdade e de vigor. Gostaria de pensar que Eyre Crowe exercera influência decisiva sobre minha pessoa. Todavia, sinto que sou copo pequeno demais para toda a fartura de tal safra. Mas ao menos uma coisa aprendi com ele: a desonestidade emocional pode ser perdoada, pois não sabe o que faz. Desonestidade intelectual jamais pode ser perdoada.

Por esse motivo, por causa dessa lição, dedico este livro à memória de Eyre Crowe.