De todos os ramos da atividade humana, a diplomacia é a mais versátil. O historiador e o jurista, confiando no protocolo e no procès verbal, podem procurar manter suas condutas dentro dos contornos estritos de uma ciência. O ensaísta pode capturar as cores nas vinhetas de uma arte. Os especialistas – e houve muitos, de Callière a Jusserand, de Maquiavel a Jules Cambon – podem conseguir adensar suas experiências em livros capazes de orientar os que vêm depois. O jornalista pode dar ao quadro os enfoques e a interpretação do pitoresco. Em tais imagens, porém, sempre surge um elemento que escapa à realidade, há sempre o aspecto que se nega a ser registrado ou definido.
Essa incerteza de tratamento resulta de causas diversas. Em primeiro lugar, a discrepância entre o protocolo criado e os estágios que levaram à sua adoção. Existe a divergência entre a evolução aparente da negociação e a que realmente ocorreu. Existe a tendência a atribuir efeitos manifestos a causas que só parecem manifestas. Existe a tentação de simplificar motivos mistos de forma a falsificar esses motivos. Existe a dificuldade em determinar a proporção entre iniciativa pessoal e viés de massa. Existe a permanente confusão de línguas, temperamentos, propósitos e interpretações. Acima de tudo, existe o risco de interpretar valores erroneamente, de atribuir a circunstâncias que parecem significativas uma importância que de fato não têm, de subestimar outras circunstâncias aparentemente triviais, mas que no momento foram fatores determinantes.
Havia muito eu desejava descrever a nova diplomacia como uma sequela ou contraparte da feição da velha diplomacia que delineei na biografia de meu pai. Quanto mais considero o assunto, menos acredito numa real oposição entre as duas. Diplomacia é essencialmente o sistema organizado de negociação entre estados soberanos. O mais importante fator em tal organização é o elemento da representação – a necessidade fundamental de qualquer negociador ser plenamente representativo de seu próprio soberano. Pequenas mudanças que têm ocorrido nos procedimentos diplomáticos não devem, portanto, ser descritas como um rompimento abrupto entre os conceitos éticos de uma geração e os da geração seguinte. É menos uma questão de ética e mais de método: em outras palavras, foi a incidência da soberania que tem se deslocado, e não os princípios essenciais por que uma diplomacia eficiente se conduz. Hoje, que democracia significa a soberania de todos nós, certas transformações óbvias na prática diplomática foram, estão sendo e serão introduzidas. Mas descrever estas mudanças em termos de valores éticos e não práticos é uma interpretação equivocada de toda a função da diplomacia. O contraste entre a velha e a nova diplomacia não só traduz um exagero como pode prejudicar o estudo científico das relações internacionais.
Fortalecido por esta convicção, decidi que não devia tentar esse confronto. Desejo, contudo, dar prosseguimento, de uma forma ou de outra, a meu estudo prévio da diplomacia anterior à guerra e completá-lo na forma de uma trilogia, da qual este volume representa a segunda das três obras. No fim, espero completar o trio com outra biografia e focalizar a diplomacia posterior à guerra em torno da personalidade de Lord Curzon.
Neste, o segundo volume de minha trilogia, procurei analisar a fase de transição entre a diplomacia de pré-guerra e de pós-guerra, e dar uma ideia sobre a Conferência de Paz de Paris. Inicialmente, pretendi organizar este estudo também sob a forma de uma biografia, centrando minha história na personalidade de Mr Woodrow Wilson ou de Mr Lloyd George. Todavia, cheguei à conclusão que tal concentração do tema em torno de uma pessoa não daria o necessário destaque à espantosa dispersão de energia que constituiu o verdadeiro ponto-chave da Conferência de Paris. A perspectiva fechada e a continuidade pessoal características do método biográfico teriam prejudicado meu propósito. Estou bem ciente de que abandonando minha intenção inicial perdi imensamente na estruturação da obra, no interesse e no lucro financeiro. Porém, adotando tal método, estaria simplificando os assuntos em vez de proporcionar um quadro das confusões e complicações que de fato ocorreram. Decidi, pois, descrever simplesmente a Conferência de Paz na forma em que a vivi.
Mais uma vez me encontrei diante de uma dificuldade. Constatei a impossibilidade de, neste momento, oferecer qualquer narrativa conexa da conferência em termos de assunto ou de cronologia. Por um lado, muitos documentos vitais ainda estão indisponíveis e, por outro, o método consecutivo não daria uma impressão acurada. O ponto importante a entender sobre a Conferência de Paris é sua espantosa inconsequência, a falta completa de qualquer método consecutivo de negociação ou mesmo de imposição. A verdadeira história da Conferência será escrita um dia de forma oficial, coberta de autoridade e legível. O que pode permanecer sem registro é a atmosfera daqueles meses infelizes, a névoa em que fomos envolvidos. Meu estudo, portanto, é um estudo em meio à neblina. O leitor não deve esperar qualquer lucidez contínua. Isso não existiu.
Creio que li a maioria dos muitos livros que, desde 1919, foram publicados sobre a Conferência de Paz, alguns deles admiráveis, outros pelo contrário. Todavia, de todos extraí a impressão de que faltava algo essencial e estou convencido de que esta omissão crucial é a do elemento de confusão. É esse ingrediente – e somente este – que pretendi deixar bem patente neste volume.
A lembrança daqueles dias congestionados é muito viva em mim. Foi reforçada pela leitura do diário que redigi na época. Quando decidi publicar, na segunda metade deste volume, os principais trechos do diário, o fiz convencido de que, em sua jovial trivialidade, reflete, melhor do que comentários da meia-idade desiludida, a atmosfera que pretendo transmitir. Mas a crítica que faço de meu próprio diário está implícita e não explícita. Na época, eu era jovem e estava compreensivelmente agitado. Não é necessário me desculpar por tais falhas.
Mas confio em que minha tese principal fique bem clara. É esta. Dado o clima da época, considerando as paixões despertadas em todas as democracias por quatro anos de guerra, teria sido impossível, até mesmo para super-homens, imaginar uma paz de moderação e justiça. A missão dos negociadores de Paris ainda se complicava por circunstâncias particularmente confusas. Os ideais a que foram penhorados pelo Presidente Wilson eram não apenas impraticáveis em si mesmos, mas exigiam, para sua observância, a íntima e incessante colaboração dos Estados Unidos. Sentimos que sua colaboração talvez pudesse ser íntima, mas não poderia ser incessante. Foi portanto a tentativa de homens como Clemenceau e Lloyd George encontrar um meio-termo entre os anseios de suas democracias e os ditames mais moderados de suas próprias experiências, bem como o meio-termo entre a teologia do Presidente Wilson e as necessidades práticas de uma Europa furiosa. Esse duplo abismo tinha de ser transposto por meior-termos que, para uma geração seguinte, parecem hipócritas e enganosos. Mas não eram inevitáveis? E poder-se-ia esperar que a natureza humana, tão recentemente mergulhada na loucura da Grande Guerra, pudesse subitamente demonstrar a branda serenidade de uma sabedoria quase sobre-humana?
Não respondo a essas perguntas. Deixo-as como indagações a serem respondidas por alguma geração futura. Tudo que espero alvitrar é que o erro humano é um fator permanente, não episódico, em história e que futuros negociadores estarão expostos, por nobres que sejam suas intenções, a futilidades de intenções e a omissões tão graves como as que caracterizaram o Conselho dos Cinco. Eles estavam convencidos de que jamais cometeriam os erros e as iniquidades do Congresso de Viena. Gerações futuras estarão igualmente convictas de serem imunes aos defeitos que acometeram os negociadores de Paris. Mas, por sua vez, estarão expostas aos mesmos micróbios e à eterna inadequação da inteligência humana.
É com triste pesar que hoje em dia recordo aquela manhã de novembro em que Mr Lloyd George anunciou o armistício da entrada de Downing Street. A cena, até hoje, está indelevelmente impressa em minha mente. Eu trabalhava no porão do Foreign Office, num abrigo verde e roxo que, até poucas semanas antes, me protegera dos ataques aéreos dos alemães. Preparava-me para a eventual Conferência de Paz. Mais especificamente, naquela manhã de 11 de novembro estudava o problema do enclave de Strumnitza.
Depois de trabalhar cerca de uma hora, constatei que precisava de mais um mapa. Subi as escadas para a torre onde se localizava nossa sala de mapas. A caminho, fui até a sala do administrador solicitar mais algumas caixas de lata para minhas necessidades na Conferência. Fui até a janela e olhei para baixo, na direção do nº 10 de Downing Street. Um grupo estava postado na faixa central da rua e havia meia dúzia de policiais. Eram dez e cinquenta e cinco da manhã. De repente, a porta da frente se abriu. Mr Lloyd George, com os cabelos brancos agitados pelo vento, surgiu na entrada. Acenou com os braços estendidos para a frente. Abri apressadamente a janela. Ele repetia insistentemente a mesma frase. Escutei suas palavras. “Às onze horas desta manhã a guerra estará terminada.”
O pessoal se aproximou dele. Direto e sorridente, fez um gesto de despedida e se retirou, desaparecendo por trás da grande porta de entrada. Afluía gente a Downing Street, e em poucos minutos toda a rua ficou cheia. Não houve manifestações. A multidão se espraiou silenciosamente na direção do pátio dos Horse Guards Parade e espalhou-se em volta do muro do jardim de Downing Street. De meu privilegiado posto de observação, vi Lloyd George aparecer naquele jardim, agitado e entusiasmado. Foi até a porta do jardim e em seguida recuou. Dois secretários que o acompanhavam o estimularam a prosseguir. Ele abriu a porta. Pisou no lado de fora, no terreno de Parada. Acenou por um momento e novamente recuou. A multidão avançou em sua direção e as pessoas davam-lhe tapinhas nas costas. A mais viva lembrança de Mr Lloyd George é a deste momento. Um homem se afastando de admiradores muito ansiosos que se esforçavam histericamente para cumprimentá-lo. Deveria ter ido? Tendo ido, deveria ter recuado de forma tão pueril? Aquela cena foi um símbolo de muito do que estava para acontecer. Tendo-se recolhido ao abrigo de seu jardim, Mr Lloyd George riu à vontade com os dois secretários que o acompanhavam. Foi uma cena inesquecível.
Afinal, os alemães tinham assinado. Voltei para meu porão e para o enclave de Strumnitza. Quando subi novamente, toda Londres estava enlouquecida.
Foi dessa maneira que ouvi sobre a chegada da paz.
Muitos anos se passaram desde aqueles dias de novembro quando, em meu subsolo verde e roxo, mergulhava no problema do enclave de Strumnitza. Hoje estou ciente de que, no mesmo período, os governantes do mundo estavam preocupados com questões de relevância muito mais grave.
É necessário, ao examinar a base legal dos Tratados de Paz, concentrar-se desde o começo em saber se a correspondência triangular que teve lugar em outubro entre Washington, Berlim e as capitais das Potências Associadas constituiu um contrato no sentido legal do termo. Antes de irmos adiante uma só página, é essencial declarar o seguinte problema: “Os alemães depuseram suas armas em confiança ante o penhor dado por seus inimigos de que os termos da paz a seguir se ajustariam plenamente aos vinte e três princípios[1] enunciados pelo Presidente Wilson? Se assim foi, as Potências Aliadas e Associadas cumpriram ou violaram esse penhor, quando a Alemanha ficou a sua mercê?
O problema é tão material para qualquer registro da Conferência de Paz que me sinto obrigado a repetir o procedimento de meus antecessores a propósito deste espinhoso ponto, revendo, em meu primeiro capítulo, os principais aspectos do acordo pré-armistício (o “pactum de contrahendo”) entre a Alemanha e as potências vitoriosas. As peças fundamentais da questão podem ser sintetizadas como se segue.
Em 5 de outubro, o Príncipe Max de Baden, após inúmeras e ansiosas ligações telefônicas para o quartel-general alemão, dirigiu uma Nota Oficial ao Presidente Wilson pedindo-lhe para negociar uma paz com base em seus próprios Quatorze Pontos e nos nove princípios subsequentes e para facilitar a imediata conclusão do Armistício. Em 8 de outubro, o Presidente Wilson respondeu na forma de três perguntas:
(a) O governo alemão aceitava os Quatorze Pontos como base para o desejado tratado?
(b) Ordenaria a imediata retirada de suas tropas de todo o solo estrangeiro?
(c) Poderia assegurar que o governo presente e futuro da Alemanha estaria sobre uma base verdadeiramente democrática?
Em 12 de outubro, o Chanceler respondeu afirmativamente cada uma destas perguntas. Acrescentou que seu “objetivo ao entrar na discussão era simplesmente acertar detalhes práticos da aplicação” dos “termos” contidos nos Quatorze Pontos do Presidente Wilson e em seus pronunciamentos subsequentes. Em 14 de outubro, o Presidente Wilson novamente se dirigiu ao governo alemão. Disse-lhe que nenhum armistício poderia ser negociado sem “oferecer salvaguardas absolutamente confiáveis da manutenção da presente supremacia militar” dos exércitos Aliados e Associados. Acrescentou que a guerra submarina devia ser imediatamente terminada, e que um governo democrático e representativo devia ser instalado em Berlim. Em 20 de outubro, o Chanceler alemão respondeu acatando estas condições. Em 23 de outubro, o Presidente Wilson informou ao Governo alemão que, tendo agora recebido sua garantia de que aceitava sem restrições os “termos de paz” corporificados em seus próprios pronunciamentos, estava disposto a discutir com seus associados a concessão de um armistício sobre essa base. Repetiu que os termos excluíam toda a possibilidade de retomada de hostilidades. Deu a entender que o caminho para a paz seria facilitado pelo prévio desaparecimento de “autocratas monárquicos.” Acrescentou que comunicara aos Governos Associados a correspondência trocada com o governo alemão, perguntando-lhes se, de sua parte, estariam “dispostos a celebrar a paz com base nos termos e princípios assinalados.” Em 5 de novembro, o Presidente enviou ao Governo Alemão as respostas recebidas de seus associados. Os Governos Aliados haviam manifestado seu desejo de concluir um Tratado com o Governo Alemão fundado nos “termos de paz” estabelecidos pelo Presidente, com duas ressalvas. A primeira delas se referia à questão da Liberdade dos Mares. A segunda ampliava o princípio da “reparação” de modo a cobrir “todos os danos causados à população civil dos Aliados e a suas propriedades pela agressão alemã por terra, por mar e do ar.” Tão logo recebeu esta garantia, o Governo Alemão despachou seus emissários para receberem os termos do armistício. Os termos tinham sido redigidos em conferência do Conselho Supremo em Versalhes: eram tais que deixavam a Alemanha à completa mercê das Potências Aliadas em terra e no mar. Foram assinados na Floresta de Compiègne às 5 horas da manhã da segunda-feira, 11 de novembro.
No próximo capítulo descreverei minha particular veneração pelos Quatorze Pontos; resumirei aqueles pontos e os princípios acompanhantes; e mostrarei como dezenove dos vinte e três “termos de paz” do Presidente Wilson foram flagrantemente violados na redação final do Tratado de Versalhes.
Por ora, estou voltado apenas para o acordo pré-armistício, pelo qual a Alemanha consentiu em render-se no entendimento explícito de que os termos de paz que lhe seriam impostos observariam inteiramente os princípios wilsonianos e seriam de fato meramente “o detalhe prático de aplicação” daquelas vinte e três condições sobre as quais concordara em deixar cair as armas. Linhas atrás, sintetizei a troca de correspondência que deu forma ao acordo. Mas ainda não é a história completa. Não foi dada importância suficiente, a não ser por Mr Winston Churchill, à “Interpretação” dos Quatorze Pontos dada pelo coronel House, que precedeu sua aceitação pelas Potências Associadas. Na época, o coronel House era o representante dos Estados Unidos no Conselho Supremo de Guerra em Versalhes. Foi esse órgão que aprovou os “Termos de Armistício” conforme redigidos, e pelos quais as Potências Aliadas aceitaram os “termos de paz” do Presidente Wilson. A “Interpretação” ou “comentário” do coronel House dos ou sobre os Quatorze Pontos, é, portanto, um documento de importância realmente vital.
Esse “comentário” foi transmitido por cabograma em 29 de outubro de 1918 para o Presidente Wilson, para aprovação. Continha as seguintes aplicações de brilho sobre os Quatorze Pontos e os Novos Princípios. A expressão “open covenants,” pactos abertos, não devia ser interpretada como impedimento a negociações diplomáticas confidenciais. Com a Liberdade dos Mares o Presidente não pretendia abolir a arma do bloqueio naval, mas apenas inculcar algum respeito pela propriedade e pelos direitos privados. O próprio Presidente avançara a cativante teoria de que, em futuras guerras, devido à Liga das Nações, “não haveria neutros.” Diante desse duplo lustro, o parágrafo 2 dos Quatorze Pontos tornou-se a mais vaga expressão de opinião. A exigência de livre-comércio entre as nações da terra não devia ser interpretada como obstáculo a qualquer tipo de proteção de indústrias nacionais. Longe disso. Tudo que exigia era a “porta aberta” para matérias-primas e a proibição de tarifas discriminatórias entre membros da Liga das Nações.
O ponto referente a “desarmamento” implicava apenas que as Potências deveriam aceitar a ideia em princípio, e concordariam em nomear uma Comissão para examinar os pormenores. As Colônias Alemãs poderiam, no devido momento, ser encaradas, em princípio, como propriedade da Liga das Nações e, dessa forma, cultivadas por mandatários desejáveis. A Bélgica devia ser indenizada por todos os custos da guerra, uma vez que cada dispêndio que aquela infeliz nação fora obrigada a fazer a partir de agosto de 1914 fora uma despesa “ilegítima.” A França, por outro lado, não devia receber todos os custos de guerra, apenas indenização completa pelos danos realmente sofridos. Sua reivindicação do território do Sarre constituía “clara violação da proposta do Presidente.” A Itália, por razões de segurança, poderia reclamar a fronteira no Brenner, mas as populações alemãs que fossem assim incorporadas teriam assegurada “completa autonomia” à que ficasse dentro de território italiano. As raças súditas da Áustria-Hungria deviam ter completa independência, desde que fosse garantida proteção das minorias raciais e linguísticas. A simples oferta de autonomia “já não servia.”
Por outro lado, a Bulgária (país com o qual os Estados Unidos não estavam em guerra e ao qual tinham concedido grande apoio educacional e filantrópico no passado) seria compensada por ter entrado na guerra contra nós. Receberia não só Dobrudja e a Trácia Ocidental, mas também a Trácia Oriental, até a linha Midia-Rodosto. Constantinopla e os Estreitos ficariam sob controle internacional. A Ásia Menor Central permaneceria turca. A Inglaterra obteria a Palestina, a Arábia e o Iraque. Os gregos possivelmente receberiam um mandato sobre Smyrna e os distritos adjacentes. A Armênia deveria surgir como estado independente sob a tutela de alguma Grande Potência.
A Polônia deveria ter acesso ao mar, embora esse acesso implicasse uma dificuldade. A dificuldade era a separação da Prússia Oriental do restante da Alemanha. O coronel House foi cuidadoso em alertar o Presidente de que essa solução não seria fácil. E, finalmente, a Liga das Nações deveria ser o “alicerce da estrutura diplomática de uma paz permanente.”
Não quero insinuar que o coronel House, ao apresentar isso, sua “interpretação” às Potências Associadas, fosse culpado de algum desejo de modificar os quatorze mandamentos. Tenho o mais profundo respeito pelo coronel House – considerando-o a mais brilhante cabeça diplomática que a América já produziu, mas confesso que uma obscuridade muito indesejável paira sobre sua “interpretação.” Foi com base nessa “interpretação” que os aliados aceitaram os Quatorze Pontos, os Quatro Princípios e os Cinco Detalhamentos como fundamento do eventual Tratado de Paz? Se assim foi, as Potências inimigas certamente deveriam ter sido informadas na época. Escrevo sujeito a correção, uma vez que os documentos exatos, a troca exata de sugestão e concordância hoje não estão disponíveis. Mas é difícil resistir à impressão de que as Potências Inimigas aceitaram os Quatorze Pontos como eram, enquanto as Potências Aliadas só os aceitaram como interpretados pelo coronel House nas reuniões que culminaram com seu cabograma de 29 de outubro. Em algum lugar, em meio às imprecisões apressadas e ansiosas daqueles dias de outubro, espreita a explicação do mal-entendido fundamental que desde então surgiu.
De qualquer modo, nós, a equipe técnica, os servidores civis, não tivemos conhecimento da “Interpretação” do coronel House. Também olhávamos os Quatorze Pontos e os pronunciamentos acompanhantes como a carta para nossa atividade futura. Como demonstrarei, abriu-se um grande abismo entre nossos termos de referência e as conclusões posteriores. Se soubéssemos do glossário do coronel House, em abril o teríamos adotado como justificativa para nossa marcha atrás. Mas foi só muitos anos mais tarde que sequer vim a ouvir a respeito desse glossário. E não posso, por um só momento, fingir que ele tenha tido a menor influência sobre minha atitude. Traí minha própria fidelidade aos Quatorze Pontos. A finalidade deste livro é dar uma indicação, alguma tênue pista das razões daquela traição, ou melhor, da atmosfera daquela traição.
Porém, minha intenção ao escrever esta história não é comentar documentos; minha única finalidade é reconstituir estados de espírito. Sei que não posso pretender remontar um estado de espírito a não ser com relação ao meu próprio – uma captura de menor valor. Mas afirmo que o que senti na época foi também sentido por noventa e cinco por cento daqueles que, embora não sendo políticos, estávamos ativamente ligados aos assuntos públicos. Quando uso o termo “nós,” refiro-me a muita gente que, em Paris, sentia e pensava como eu. Dessa forma, representávamos parcela de opinião ampla e não totalmente ignorante. Creio que meu próprio estado de espírito com relação à base contratual do Armistício e do Tratado consequente na verdade representa um termo médio de pontos de vista amplamente defendidos, não de todo sem motivo. Não me lembro de, na época, a divergência entre nosso conceito do “pactum de contrahendo” e a interpretação que lhe foi dada na Alemanha se apresentasse em termos tão extremos quanto desde então foi apresentada.
Por um lado, estávamos convencidos de que com o desabamento das defesas de oeste – diante do colapso da Áustria, da Turquia e da Bulgária – a Alemanha de qualquer modo estava de joelhos. Foi um alívio quando o armistício foi aceito, pois significava um abreviamento da guerra: mas também estávamos convictos de que se a Alemanha se recusasse a capitular, a imposição de uma completa rendição em solo alemão teria sido questão de meses apenas, talvez semanas. Por outro lado, no outono de 1918 acreditávamos honestamente que só os princípios do Presidente Wilson poderiam fundamentar uma paz duradoura. Em outras palavras, nunca passou por nossa mente que tínhamos comprado a rendição alemã oferecendo os Quatorze Pontos. Aquilo nos parecia, em qualquer hipótese, inevitável. Isto, na época, considerávamos indiscutível. Argumentar doutra forma é admitir, em novembro de 1918, ideias e anseios que só vieram à tona em março seguinte.
Essa “datação” incorreta de opinião é de fato um erro mais comum para um historiador do que a atribuição a motivos falsos. Neste caso, ele poderia observar que uma visão, identificável em março, guarda coerência com uma série de documentos públicos trocados (obedecendo a outra visão totalmente diferente) no outono anterior. Inevitavelmente o historiador confunde uma com a outra. É essa confusão que dá origem a erros de julgamento histórico. Outra causa semelhante e não reconhecida de equívocos de compreensão histórica é a prematura e muitas vezes fortuita criação de lendas. Algum pormenor pitoresco, algum floreio de expressão fica gravado na memória do público. Destaca-se. Inevitavelmente, os fatos (aquela hierarquia de circunstâncias que denominamos “os fatos”) acomodam-se bem por trás dessa pitoresca faixa de rua no quadro geral. Olhando por esse ângulo obtém-se uma determinada vista, frequentemente enganadora.
Duas faixas de rua dessa natureza surgem durante os primeiros dias da Conferência. A primeira frase-pôster famosa é “Vamos espremer a laranja até as sementes chiarem.” A segunda é a admissão por Mr Lloyd George de que nunca ouvira falar de Teschen. Por trás do primeiro post se junta todo o problema da “eleição kaki” de dezembro de 1918. Por trás do segundo, estão reunidas as inúmeras lendas de que os membros da Conferência de Paz foram para Paris sem nenhuma preparação: de que eram, sem exceção, ignorantes e mal-informados. Contra cada uma dessas lendas, eu gostaria de alertar o futuro historiador. É para ele que escrevo estas notas.
A eleição geral de dezembro de 1918 foi, sem dúvida, um desastre. É discutível se foi também um erro. Mr Asquith na época a descreveu como “um erro estúpido e uma calamidade.” Calamidade, certamente foi. Fez com que retornasse a Westminster o mais ignorante grupo de rapazes oriundos das public schools que a Mãe dos Parlamentos já conhecera, e se pode questionar se não foi um erro que poderia ser evitado. O termo “erro estúpido” hoje em dia se refere a atos de estadistas sobre os quais deixaram de consultar previamente um ou outro de nossos magnatas da imprensa. Porém, na Inglaterra, significa o tipo de erro que, com um pouco de previsão, poderia ter sido facilmente evitado. Não acredito que a eleição kaki de 1918 pudesse ser evitada com facilidade. Prefiro chamá-la de uma necessidade lamentável que foi satisfeita sem a constatação plena de sua potencialidade para causar arrependimento.
Mr Lloyd George recentemente me assegurou que, se pudesse voltar a novembro de 1918, ainda se lançaria na eleição. Suas razões para essa posição são interessantes e, no meu entendimento, legítimas. Ele argumenta que a coalizão governamental naquele momento era ameaçada por conspirações tanto de direita quanto de esquerda. A da direita, liderada pelo egocêntrico Lord Northcliffe, era radicalmente a favor de uma paz imposta pelos vencedores. A da esquerda, apoiada pela maré violenta de uma corrente ignorante de opinião, clamava pela imediata desmobilização. Se tivesse ido para Paris com ambos os flancos assim expostos, se veria em dificuldades e enfrentaria incertezas em cada uma de suas decisões. Para ele, era essencial precaver-se com um mandato incontestável. Sem dúvida, não poderia ter previsto que sua chapa o sobrecarregaria com uma Câmara dos Comuns tão incompetente, a ponto de ficar subserviente a pessoas desequilibradas como o coronel Claude Lowther e Mr Clement Jones.
Mas isso não era tudo. Mr Lloyd George previu que, se tinha de lidar adequadamente com o sinuoso nacionalismo francês, com o místico e arrogante republicanismo americano e com o potencial de desunião das representações dos Domínios da Comunidade Britânica, precisaria de uma titularidade representativa que ficasse acima de qualquer contestação possível. Mesmo assim, houve momentos em que seu direito de falar pela Inglaterra foi insidiosamente questionado. Houve ocasiões em que estadistas de outros países tentaram mobilizar contra ele elementos da própria oposição inglesa, quando flertaram tanto com tories, quanto com liberais de esquerda e trabalhistas recalcitrantes. Durante todo o período da Conferência, Lord Northcliffe, contrariado por não ter sido designado delegado na conferência de paz, dirigiu contra Lloyd George um jato constante de água fervente. É discutível se o primeiro-ministro poderia ter sobrevivido a tais ataques furiosos se não contasse com o respaldo de um mandato concedido pela maioria esmagadora do eleitorado inglês.
Contudo, permanece o fato de ter sido uma infelicidade um liberal inglês ter se posto a mercê de uma Câmara dos Comuns e uma imprensa jingoístas.
Mas não é em virtude desses traços mais gerais que a eleição de 1918 veio a decepcionar o historiador. Acreditando na lenda popular, ele estará perpetuando o argumento de que Mr Lloyd George, ao partir para Paris, estava irremediavelmente tolhido por suas promessas eleitorais. Esse entendimento seria incorreto. Em primeiro lugar, Mr Lloyd George é suficientemente realista para não ficar preso por qualquer oratória de plataforma. Segundo, ele se comprometeu nos pronunciamentos da campanha com pouca coisa incompatível com a busca de uma paz justa. Não foi ele que usou a imortal frase sobre a laranja e as sementes. O autor foi um dos mais inexperientes de seus colegas. Tem sido difícil reconstituir os termos exatos em que foram proferidas as promessas eleitorais de Mr Lloyd George, a fim de compará-los com a opinião pública esclarecida da época. Dessa análise cheguei à convicção de que na verdade Mr Lloyd George foi mais cauteloso, mais liberal do que as pessoas que hoje em dia procuram defamá-lo.
Esse ponto tem certa importância para meu propósito e me disponho a abordá-lo com mais profundidade. Em 12 de novembro – “le jour après le fameux jour” – Mr Lloyd George falou para seus partidários liberais no nº 10 de Downing Street. Assim se expressou: “Nenhum acordo que contrarie os princípios de uma justiça duradoura terá vida longa. Atentemos para o exemplo de 1871. Não podemos nos permitir nenhum sentimento de vingança, nenhum espírito de ganância, nenhum desejo opressor que venha se sobrepor ao princípio fundamental da justica. Surgirão veementes tentativas para bravatear e intimidar o governo procurando fazê-lo se afastar dos rígidos princípios do direito e satisfazer ideias mesquinhas, sórdidas e vulgares de vingança e cobiça.” Manteve (intermitentemente) esta mesma postura liberal ao longo da Conferência e mesmo durante as fases iniciais da campanha eleitoral. Concentrou-se na reconstrução. Em Wolverhampton, em 24 de novembro, manifestou seu desagrado com os “embotados” e reafirmou que seu único propósito era “fazer da Inglaterra uma terra digna de ser berço de heróis.” Foi o Dr Addison, candidato da coalizão em Shoreditch, que pela primeira vez adotou um discurso mais populista. O Times, na época vivendo período de profunda humilhação sob o controle de Lord Northcliffe, estava pronto para aproveitar os ventos da histeria popular. “O ponto crucial,” escreveu The Times em 29 de novembro, “para o eleitor comum é, sem dúvida, a posição do Kaiser.” Em 2 de dezembro, repetiu, “isto é indiscutivelmente uma das questões-chave da eleição.” Havia outra questão-chave: “Nenhuma compensação,” proclamou Mr Austen Chamberlain em West Birmingham, “é alta demais para que não possamos pedi-la.”
Não havia como evitar que Mr Lloyd George ficasse afetado por tal onda de patriotismo oriunda de seus seguidores e do Times. Podemos vê-lo em Newcastle, em 30 de novembro, falando de uma “paz implacavelmente justa,” de “condições não de vingança, mas de prudência.” Podemos vê-lo acusando o imperador alemão de “assassino.” Podemos vê-lo afirmando que a Alemanha deve pagar compensações por todos os custos da guerra “até o limite de sua capacidade.” Expondo sua proposta de política, em dezembro, o julgamento do ex-Kaiser e “todo o custo da guerra” figuravam em primeiro lugar. Em Leeds, em 9 de dezembro, mencionou os “frutos da vitória.” Em Bristol, três dias depois, usou a expressão “quem perde paga.” Em consequência desse clima emocional, a coalizão retornou ao poder com uma maioria de 262 assentos. Mr Asquith foi derrotado por Sir Alexander Sprott. Mr Ramsay MacDonald e Mr Snowden foram arrasados. Mr Horatio Bottomley ressurgiu com uma vitoriosa maioria em Hackney. Mr Pemberton Billing venceu a eleição em East Herts. Os “pacifistas foram completamente derrotados,” proclamou The Times. A chapa eleitoral tinha atingido seu objetivo.
Hoje podemos constatar que, em meio a toda essa confusão democrática, Mr Lloyd George jamais perdeu inteiramente a cabeça. Ao exigir que os alemães indenizassem os custos da guerra, sempre foi cauteloso ao vincular esta bem recebida declaração a duas condições. Alertou sua plateia que o pagamento devia se limitar, em primeiro lugar, à capacidade alemã para pagar e, segundo, especificando que tal indenização não poderia prejudicar nosso próprio comércio interno e as exportações. Foi duramente censurado pelo Times por essas duas condições. “A única razão plausível,” escreveu o jornal, “ao vincular as indenizações à capacidade de pagamento deve ser o interesse dos aliados.”
Por sua vez, o slogan “Julgamento do Kaiser” é um episódio que deixará o futuro historiador muito confuso. Ficará tentado a atribuí-lo à recente extensão do voto às mulheres e à supostamente crescente histeria da política inglesa. Assim fazendo, estará tirando deduções injustas. Pode ser uma característica feminina atribuir a uma pessoa sofrimentos causados por um conjunto de circunstâncias. O professor Fedor Vergin, por exemplo, recentemente defendeu que pode ter sido bom para a saúde psicológica da Europa Wilhelm II ter sido tomado como bode expiatório, uma vez que o sentimento de culpa acumulado ao longo daqueles quatro terríveis anos pôde, desta forma, ser “descarregado.” Na verdade, o desejo de punir a Alemanha na pessoa dessa vítima infeliz não foi privilégio da parcela feminina do eleitorado. Anteriormente já me referi a um discurso proferido em 11 de novembro no Carnegie Hall em Nova York por Mr Alfred Noyes. Informou a uma plateia horrorizada que entre os aliados havia “reacionários” se empenhando em salvar o Kaiser do julgamento pela Corte Internacional de Justiça. “Essa gente,” exclamou Mr Alfred Noyes, “quer permitir que o Kaiser volte a seu iate e seus jantares faustosos enquanto os corpos de vinte milhões de homens assassinados se decompõem na terra.” Mas Mr Noyes não estava sozinho ao fazer esta declaração. A mente do povo inglês durante as semanas logo após o armistício estava deformada pela vitória e estigmatizada pelas cicatrizes do medo.
O ódio também sobreviveu. Se os alemães se tivessem portado com discrição nas semanas que precederam o armistício, é possível que a opinião pública inglesa, a menos disposta a alimentar ressentimentos em toda a terra, esquecesse o misto de temor e ódio vivido em 1914-1917. Mas os alemães não procederam com cautela. Em 16 de outubro (onze dias depois de seu primeiro pedido de mediação ao Presidente Wilson) torpedearam, ao largo de Kingston, o vapor Leinster da Irish Mail, causando a morte de 450 homens, mulheres e crianças que se afogaram. A lembrança desta atrocidade ao apagar das luzes ficou viva na mente do povo. “Gente,” escreveu Mr Kipling, “com coração de fera.” “São uns desalmados,” disse o contido Arthur Balfour, “e sempre serão.” Peço a atenção do historiador para as repercussões psicológicas do torpedeamento do S.S. Leinster. Teve um efeito mais profundo e imediato do que hoje em dia se pode recordar.
Um segundo pôster que pode levar o historiador a um ramal inútil é a admissão por Mr Lloyd George de “nunca ter ouvido falar de Teschen.” Dirigindo-se à Câmara dos Comuns em 16 de abril de 1919, ele fez a seguinte observação franca, comedida e absolutamente racional: “Quantos membros desta casa já ouviram falar em Teschen? Não me furto a afirmar que jamais ouvi falar a respeito.” Obviamente não mais de sete membros da Câmara dos Comuns poderiam ter ouvido referências a esse remoto e miserável ducado, mas o fato de Mr Lloyd George tê-lo admitido horrorizou entendidos como Mr Wickham Steed, que havia muitos anos se mantinha familiarizado com o problema de Teschen. A grita surgiu de imediato. “Lloyd George não sabe nada sobre as questões que está tentando resolver. Ouvimos de seus próprios lábios. Toda a delegação inglesa em Paris e na verdade todas as que integram a Conferência desconhecem os assuntos e não estão preparadas. Estamos à beira do desastre.” Este clamor repercutiu na mente de todos os leitores do Daily Mail. Transformou-se em opinião inabalável. Mas é realmente errônea. O problema com a Conferência de Paris não era a falta de informação, era o excesso. A falha não era falta de preparo, mas a ausência de coordenação. Foi esta última falha que, desde o início, contaminou todo o sistema.
O tema merece uma explicação mais ampla. Evidentemente teria sido difícil para o Gabinete ou mesmo para os funcionários de carreira, durante os quatro anos de guerra, elaborar planejamentos detalhados para uma eventual celebração da paz. Em primeiro lugar, o fluxo de assuntos de rotina era tão absorvente que não havia disponibilidade alguma de tempo e energia humana para tal tarefa. Em segundo lugar, até os meses finais de 1918, era impossível prever com precisão razoável as reais circunstâncias em que se encerraria o conflito. Em terceiro lugar, os governantes em todo o mundo não estavam dispostos a se comprometer com condições pormenorizadas de paz que, caso ocorresse um impasse, se revelassem rígidas em demasia, ou muito restritivas, em caso de uma vitória completa. Todavia, isto não quer dizer que não tenha sido feito um trabalho preparatório. Longe disso. Em cada um dos três principais países foram criados grupos especiais de trabalho para preparar subsídios a serem utilizados em um eventual Congresso.
Na Inglaterra, na primavera de 1917, foi criado um órgão especial para a coleta de material e treinamento de um grupo voltado para as negociações da paz. Mr Alwyn Parker, bibliotecário do Foreign Office, dedicou seu reconhecido talento administrativo à organização de toda uma conferência de paz que viesse a acontecer. Chegou a elaborar um quadro colorido apresentando a futura sistematização do setor inglês da conferência. Cada um dos primeiros-ministros e representantes dos domínios identificava sua própria órbita naquele sistema planetário de pontos verdes, vermelhos e azuis. Mr Parker podia se localizar modestamente em uma órbita lunar, assessorando Júpiter, Lord Hardine of Penshurst, “embaixador encarregado da organização.” O planisfério de Mr Parker na verdade não cumpriu esse papel – na forma planejada por seu criador – na Conferência de Paz que finalmente se realizou. Ao ver o projeto, Mr Lloyd George deu uma sonora risada. Mas outro planejamento de Mr Parker acabou sendo de maior utilidade e foi realmente muito valioso. Deveu-se à sua exata previsão de que a enorme delegação inglesa se acomodaria sem qualquer dificuldade nos hotéis Majestic e Astoria. Graças à sua capacidade de coordenação, o Ministério da Guerra, o Almirantado, o Departamento de Inteligência de Comércio de Guerra e o Ministério de Relações Exteriores foram capazes de preparar material sem superposições em qualquer aspecto vital. Finalmente, a seção de história do Ministério de Relações Exteriores preparou, sob a direção do Dr G.W. Prothero, os inestimáveis manuais de paz, escritos por especialistas de renome, que proporcionaram à delegação informações detalhadas sobre qualquer tema que viesse a ser ventilado. Esses manuais vêem sendo publicados desde então. Se algum historiador duvidar da qualidade de nossa preparação, eu o convido a obter toda a coleção na London Library e a examinar atentamente seu conteúdo. Concordará que dificilmente poderia haver fonte mais competente, abrangente e lúcida de informações.
Nos Estados Unidos foi criado um órgão semelhante em setembro de 1917, sob o nome “The Inquiry.” Diretamente subordinado ao coronel House e sob a supervisão imediata do Dr Mezes, este grupo de 150 acadêmicos trabalhou doze meses em instalações da American Geographical Society de Nova York. A quantidade de material que colheram é espantosa. O George Washington rangeu e vergou através do Atlântico sob o peso de sua erudição, que foi suplementada pelos inestimáveis relatórios do professor A.C. Coolidge, que desde dezembro estava encarregado da “comissão americana de estudos sobre a Europa central.” Houve instantes em que esse homem brilhante e sensível foi a única fonte confiável de informações à disposição da Conferência de Paz. Hoje em dia, parece incrível que nem os representantes americanos e tampouco a Conferência em geral tenham dado muita atenção às palavras sensatas e moderadas de Archibald Coolidge.
A equipe técnica da delegação dos Estados Unidos foi recrutada em sua maioria no “Inquiry” do coronel House. Surgiu na América, principalmente durante a investigação feita pelo senado, um comentário de que a delegação americana não estava bem preparada. Tal observação é descabida e injusta. Nunca trabalhei com um grupo mais inteligente, mais competente, de mente mais aberta ou mais precisamente informado do que a delegação americana presente à Conferência de Paz. Em todas as oportunidades em que discordei de suas opiniões, acabei concluindo que eu estava errado e eles, certos. Se o Tratado de Paz tivesse sido redigido somente pelos especialistas americanos teria sido um dos mais criteriosos e precisos documentos de que se poderia ter notícia. Infelizmente, por motivos que comentarei mais tarde, a comissão americana, durante as semanas iniciais, perdeu a autoconfiança e, em consequência a autoridade que, por direito, deveria lhe ser atribuída.
Os preparativos do governo francês foram menos detalhados e, como os fatos acabaram comprovando, menos eficientes. É verdade que tinha sido organizado um “Comité d’Études” sob a direção do professor Lavisse e uma pesquisa subsidiária sobre questões econômicas fora realizada por alguns meses sob a supervisão de M Morel. No último momento, M Tardieu assumiu ele próprio o trabalho de coordenação dos trabalhos dessas duas comissões. Parece que esta coordenação não foi muito longe. Por minha experiência afirmo que a delegação mais bem informada era a americana, vindo a inglesa em segundo lugar. Quanto à francesa, penso que lhe faltava uma base de informações e rapidez de assimilação dos fatos. Os italianos só sabiam o que eles mesmos desejavam.
Portanto, não está certo acusar a Conferência de Paris de falta de preparação e conhecimento técnico. Porém, como muitas críticas que conseguiram ampla e duradoura aceitação, a acusação contém um fundo de verdade. Em primeiro lugar, as informações não eram plenamente discutidas nem entre as diversas delegações nem tampouco entre os peritos de qualquer delegação com seus respectivos plenipotenciários. Por exemplo, tinha pouca importância eu obter todas as informações possíveis sobre o enclave de Strumnitza se não recebesse dos chefes de minha delegação uma orientação sobre a política em relação à Bulgária. A falta de comunicação entre os plenipotenciários e seus especialistas será abordada no capítulo 4, quando examinarei a organização propriamente dita da conferência. Aparecerá sob o título “Erros.” Mas também poderia figurar no capítulo 3, sob o título “Infelicidades.” Entretanto, antes de examinar nossos infortúnios em Paris, devo comentar as ideias, esperanças e intenções armados das quais desembarcamos em janeiro de 1919 na Gare du Nord.