E a verdade é que nove dias passaram rapidamente. Nestes últimos dezoito intervalos de tempo, os meus avós quase não me deixaram respirar. Apresentaram-me praticamente a todos os amigos, o que nos fez almoçar, lanchar ou jantar quase sempre em casa de um deles.
Petra apareceu várias vezes cá em casa para confirmar que eu «não estava mesmo com depressão». Numa dessas vezes trouxe-me uma enciclopédia dos aquários mais bonitos do mundo, noutra um enorme vaso com vários géneros de plantas, tipo suculentas — algumas delas com pequenas flores estranhas — e, da última vez, um uniforme para quando eu ingressar nos treinos dos Protetores.
Raina insistiu, algumas vezes, para que fosse com ela fazer um vestido por medida para a festa, mas eu recusei, sempre amavelmente. Não lhe quero dar trabalho e tenho roupa suficiente no armário para anos. No entanto, acompanhei-a algumas das vezes em que foi fazer a prova do seu vestido. Numa dessas vezes, vi Kai ao longe, e todo o meu corpo ficou elétrico. Acompanhava uma velhinha que andava muito devagar, com o apoio de uma bengala, e conversavam alegremente. Ele carregava um grande cesto com comida. Estaria a carregar-lhe as compras? Essa imagem não me saiu da cabeça por diversos dias.
O cabelo de Raina está apanhado num coque elegante, ao estilo Audrey Hepburn, e traz uma maquilhagem leve, em tons terra, que lhe dá um ar mais jovem. O vestido é longo e fluído, num tom pastel, cor de pêssego. Um cinto fino de brilhantes adorna-lhe a cintura e dá um toque sofisticado à simplicidade do vestido.
— Estou pronta. Gostas? — Com ambas as mãos, pega na saia, faz uma pequena vénia e gira sobre si mesma para me mostrar o modelito.
— Gosto muito, avó — digo, sentando-me na cama para a observar melhor. — A expressão dela muda e fica emocionada. Vejo uma lágrima aflorar-lhe os olhos e percebo que é porque, pela primeira vez, a trato por avó. — Estás linda. — Sorrio, saio da cama e dou-lhe um abraço para quebrar a emoção deste momento. Afasto-me e vou até ao armário.
— Obrigada, querida. — Apesar de estar a revirar as peças de roupa para decidir o que vou vestir, ouço-a fungar. — Precisas de ajuda? Posso ajudar-te com o cabelo, se quiseres. O teu avô está a acabar de se arranjar.
— Não, obrigada. Vou só tomar um duche rápido e preparo-me num abrir e fechar de olhos.
Rapidamente desapareço para a casa de banho, e a minha avó sai do quarto para me dar privacidade. Enquanto tomo banho, penso na escola, que já terminou. Desde que cheguei, aponto os dias num papel, para me orientar no tempo, pensando no que estará a minha família a fazer. Certamente teria ido ao baile de finalistas com Colt. Ainda não havíamos falado acerca do assunto, mas estava implícito que, neste tipo de situações, íamos sempre juntos, até algum de nós ter outra companhia para levar. E agora vou a outro baile… sem ele.
Quando saio, encontro em cima da cama um conjunto cor de mostarda, com minúsculas pedras bordadas que lhe conferem um brilho intenso. Em cima deste está um cartão que diz apenas «És especial, minha querida». A indumentária consiste num caicai, só a cobrir o peito; umas calças muito justas, que fazem conjunto com um vestido que dá até à coxa, preso apenas num dos ombros, deixando o outro descoberto. Um dos lados é completamente aberto, permitindo ver as calças e o caicai. A minha avó fez-me uma surpresa. Sorrio para mim mesma.
Decido arriscar e experimentá-lo, pois não me senti nada mal com as roupas novas que tenho vestido até agora. Concluo, com agrado, que o tecido é fresco e arejado. Volto a apanhar o cabelo no alto da cabeça para refrescar o pescoço. Os hematomas já praticamente não se notam. Nunca liguei muito à imagem; vesti sempre o que me fazia sentir confortável, sem querer saber se me realçava as curvas ou se me favorecia. Quando me vejo ao espelho, sinto-me imediatamente mais feminina e estranhamente entusiasmada. Gosto do que vejo e concluo que as cores garridas, afinal, não me ficam nada mal. Calço as minhas All Star e vou ter com os meus avós à entrada de casa.
— Que linda! — exclama o meu avô quando saio do corredor e chego à sala, onde me esperam. Agradeço aos dois com um sorriso e sopro-lhes um beijo terno e lento das palmas das mãos. — Sou o homem mais sortudo deste planeta, e hoje serei certamente o mais invejado por ter estas duas beldades do meu lado. — Num gesto rápido e nitidamente exagerado, abre as asas para que possamos encaixar os nossos braços nos dele. E saímos assim de casa, os três de braço dado.
Subimos as escadas da ponte da queda-d’água, onde está uma embarcação que mais parece um avião. Aguarda-nos acostada no cais que boia ao nível da água. É de um prateado muito brilhante e tem umas abas laterais largas, levantadas nas pontas, com cerca de um metro e meio cada — lembram-me uma raia. Há uma ventoinha em cada asa que faz com que a embarcação pareça maior do que é. Um rapazinho franzino está ao volante, e eu questiono-me se ele saberá conduzir aquilo.
— Boa noite, Raina, Arabela, Anadir — diz o rapaz com uma saudação simpática e cordial. Apesar de ele saber o meu nome, eu não sei o dele, e acho que nunca o vi mais magro.
— Boa noite, Dáguio. És a nossa boleia, hoje?
— Sou, Anadir. Só eu já fiz uma dúzia de viagens. Porque as senhoras, com esses vestidos, não conseguem andar. — Olha na nossa direção e ri-se para o meu avô.
Entro para o habitáculo imaculado que acomoda seis pessoas.
— Sentem-se e apertem os cintos, por favor.
Nós obedecemos e o transporte desliza pela água em silêncio absoluto. Ao longe, um barco avança na nossa direção, talvez para vir buscar mais pessoas. Quando passa silenciosamente por nós, reparo que não toca na água. Torço-me toda e, com dificuldade, por causa do cinto, coloco-me de joelhos sobre o banco para olhar para trás e admirar aquela imagem fantástica.
— Mas como é que…
O meu avô sorri-me, quase orgulhoso, e não me deixa terminar.
— Imagina uma folha a cair… Demora-se mais tempo no último segundo antes de cair no chão. É o chamado efeito do solo. Cria uma «almofada de ar» por baixo das asas do veículo, e este voa baixinho sem quase gastar combustível. E como o nosso biocombustível, o álcool de cana, é sustentável, não emite gases poluentes. — Pisca-me o olho e dá-me duas palmadinhas para que me vire para a frente.
Em cinco minutos, chegámos ao centro da cidade. Descemos do barco e atravessámos a ponte mais larga — a Ponte-Mor —, que fica mesmo em frente ao Colégio Central, para o outro lado do rio. A ampla ponte, arqueada, com cerca de trezentos metros de comprimento, é também de cristal. Nunca vim a esta margem do Riwus. É então que percebo que é delimitado por uma parede rochosa alta e irregular, que se estende a perder de vista para norte. Há entradas talhadas na rocha e dezenas de bancadas e tendas montadas, mas sem material exposto ou pessoas.
— O que é aquilo ali? — pergunto, apontando para as aberturas perfeitamente esculpidas na parede.
— São bazares. É onde fazemos a troca de bens. Não temos moeda própria, por isso cada um vem aqui buscar aquilo de que necessita. Vivemos bem, mas não somos consumistas. Todos somos racionais no consumo e temos plena consciência do que necessitamos, por isso há o suficiente de tudo para todos — explica a avó.
Parece-me um conceito muito correto. Se todos trabalharem no mesmo sentido, mantendo os mesmos direitos e as mesmas oportunidades, nunca faltará nada a ninguém, o que gera maior satisfação, felicidade e vontade de trabalhar mais e melhor.
Lembro-me de que, no dia em que cheguei, o meu avô veio aqui buscar comida para mim.
— Então é aqui o mercado dos Permutadores?
— É isso mesmo. Tens de vir cá; acho que vais gostar. — O meu avô está feliz. E eu faço que sim com a cabeça.
Deste lado, a vegetação é quase inexistente. Encaminhamo-nos para sul e, alguns minutos depois, o chão de rocha torna-se íngreme. Trilhos e caminhos estreitos, mal iluminados, surgem por todo o lado na própria parede de rocha. Estamos a uma altura do rio muito maior do que do outro lado. Talvez por isso o caminho seja protegido por um corrimão de metal brilhante, para garantir a segurança. Se alguém cair desta altura, terá certamente morte imediata.
Após uma curva, vejo ao longe duas grandes portas de madeira trabalhada. Ambas entalhadas com enormes escamas como base. Numa delas, um atlas do mundo à Superfície — o mundo que eu conheço, com continentes e oceanos. Na outra, mais um mapa, talvez de Aquorea, com símbolos que presumo serem das respetivas Fraternidades e de figuras que me são desconhecidas, esculpido com tamanha perfeição que parece gravado a laser.
Assim que nos aproximamos, as portas abrem-se com um rangido suave.
— Este é o Salão Ruby. — A minha avó faz um gesto largo com o braço.
Entrámos numa caverna onde nos esperam centenas de pessoas. Uma pequena reunião, hã? Instintivamente, percorro a sala com os olhos à procura de Kai, mas não o vejo. Não sei porquê, sinto-me inquieta. O teto abobadado é relativamente baixo e está coberto de milhares de pontos de luz intermitente, que se refletem no chão e fazem lembrar um céu estrelado. O chão, cor de beterraba, é polido e liso, e os meus pés escorregam sobre ele como se o tivessem acabado de encerar.
Olho em redor e todos os outros parecem equilibrar-se perfeitamente, mas estão descalços. Deve ser esse o truque. As pessoas que preenchem o salão emanam graciosidade e delicadeza. As suas roupas estilizadas foram fabricadas com perícia e primor. Espartilhos justos adornados de conchas e pedras preciosas; aplicações de penas e contas em vestidos comuns. Vestidos de baile fluidos com ombreiras salientes e decotes generosos; homens nos seus fatos de colete comprido conferem uma harmonia que se enquadra em todo este ambiente. Alguns cabelos demasiado fluorescentes, outros graciosos, e maquilhagem igualmente aprimorada. Perto deles quase me sinto demasiado banal.
As mesas corridas estão cobertas com toalhas brancas, finas e lisas, com um alegre padrão de conchas bordado nas pontas caídas. Há pratos, copos e guardanapos a condizer. Travessas e taças de comida colorida e cheirosa.
Atrás das mesas há apenas uma imensa janela em arco até ao teto, que preenche a parede por inteiro. Uma janela de água. É como olhar para um dos gigantescos tanques do Georgia Aquarium. Alguns holofotes iluminam as profundezas escuras do mar. Destroços inanimados e lodosos de um navio destacam-se no cenário marinho, como uma imagem de screensaver. Alguns peixes deslizam por entre a estrutura desgastada, coberta de algas, que pendem em cachos e ondulam ao sabor da corrente. Música suave anima o salão.
A minha avó detém-se a conversar com uma mulher mais nova, que me lança um sorriso terno, embora inquisidor. A senhora é de estatura média e esguia. O cabelo tem risca ao meio, entrelaçado num lindo penteado. Tem uma tez clara como mármore e os olhos azuis são-me familiares. Falam estranhamente baixo e afastam-se.
— Muito prazer, Arabela — brada uma voz masculina e rouca. Não consigo ver bem a pessoa que acaba de me cumprimentar, porque está tapada por um outro homem mal-encarado, trajado com o uniforme dos Protetores, e com uma postura de guarda-costas. A cabeça é desproporcionalmente grande para o resto do corpo e o queixo pronunciado tem uma grande cova no centro, dando a ideia de serem dois queixos juntos. Os olhos são castanhos, encovados, e tem olheiras profundas e negras. O nariz comprido é estreito como o de um papagaio, e o cabelo está penteado para trás.
— Ara, este é Llyr Davis. O Regente do Consílio — diz Anadir, assim que o cabeçudo sai da frente de um homem elegantemente vestido.
Llyr usa um fato negro, de bom corte, e uma camisa do mesmo tom abotoada até cima. Mas continua a parecer-me estranho vê-los descalços. Esta indumentária pede, sem dúvida, uns sapatos.
Lembro-me de que o Consílio é o local de reunião da Comunidade, onde todos podem opinar sobre o que acham que deve ser melhorado ou reestruturado e onde são aprovadas leis e ordens. Ele deve ser, portanto, a pessoa com mais poder deste sítio.
— Muito prazer, senhor Davis.
— Trata-me por Llyr, Arabela. — Tosse duas vezes para a dobra do braço e nota-se que sente dificuldade em retomar a conversa, porque lhe falha a voz. Aclara a garganta. — Já deixámos há muito essas formalidades. O respeito mútuo não vem do nosso cargo ou do nome, mas sim dos atos e do que somos feitos. — Pisca-me o olho.
— Certo, combinado.
— Gostaria de ter conseguido apresentar-me mais cedo, mas, vá-se lá saber como, fiquei adoentado e não quis impor a minha presença em casa dos teus avós, sabendo que te encontraria aqui.
Logo atrás, surge um casal mais ou menos com a idade dos meus pais, e apresentam-se como Mestres do Consílio: Fredek e Alita Peacox.
— Estás muito bonita! Sê bem-vinda — diz Alita, com voz fina e estridente. Na sua voz deteto uma nota de cinismo. Não é uma mulher bonita, mas é excêntrica, baixa e com curvas bem delineadas. O cabelo curto e cor-de-rosa combina com o chiquérrimo corpete do seu vestido. É adornado com pedras rosa, e penas lilás lustrosas saem das ombreiras em queda até meio do braço. Um pequeníssimo chapéu de penas, igualmente lilás, assenta-lhe no centro da cabeça, pendendo para a testa. Em qualquer outro sítio acharia tudo isto demasiado bizarro, mas aqui, neste lugar exótico, faz sentido, e não posso deixar de apreciar, deslumbrada.
No entanto, o estômago embrulha-se e todos os meus alarmes disparam com as suas palavras.
— Muito obrigada. — Não quero ser indelicada, mas não gosto da forma como ela me observa.
— Ficámos muito contentes com a tua chegada — esclarece o marido que faz pendant com ela. Usa um fato às riscas lilás, do mesmo tom das penas do vestido da esposa; uns corsários justos e um colete comprido, abotoado até ao pescoço. Na lapela debruada a cor-de-rosa traz um pequeno alfinete com uma das imagens das portas do Salão Ruby.
— Obrigada.
Entretanto, o meu avô afasta-se um pouco e diz a Alita que quer marcar uma reunião com ela. Tenta falar baixo, mas não evita que eu apanhe parte da conversa.
— A tua presença é, sem dúvida, o acontecimento do século — conclui Fredek, em tom sarcástico, a gesticular efusivamente com o braço direito.
— Espero que aprecies a tua estada — intercede Llyr, com um sorriso afável. — Por motivos óbvios, não serei eu a fazer o discurso hoje, mas se precisares de alguma coisa, não hesites em falar comigo.
Fico contente por Llyr interferir e falar em estada e não em algo mais definitivo.
— Assim farei. As melhoras.
O meu avô sabe como fico em situações sociais, por isso indica-me o caminho. Todas as pessoas deste salão parecem querer cumprimentar-me e falar comigo.
Um homem de pele escura, de cabelo e barba muito branca, como a do Pai Natal, olha-me nos olhos e anui com a cabeça. Cumprimenta o meu avô ombro com ombro e exibe um sorriso largo que me enche a alma de tão sincero que é. A acompanhá-lo vem uma mulher da mesma idade, com um penteado elaborado em forma de flor.
— Cara Arabela, é uma verdadeira honra finalmente conhecer-te. — Com as duas mãos, pega na minha e segura-a. — És também um pouco minha neta, de tantas histórias que o teu avô me contou sobre ti nas últimas semanas. E sobre a tua irmã e o Colt, claro — termina o homem. Aquelas últimas palavras, apesar de não terem pingo de maldade, atingem-me mesmo no centro do peito. E faço um esforço para segurar algumas lágrimas que se formam.
— Muito prazer. O gosto é todo meu — digo com sinceridade. — O senhor é o avô da Mira — afirmo, ao ver as semelhanças nos olhos perspicazes.
— Culpado! Arcas Lowell. — Exibe um sorriso brilhante. — A Mira está fascinada contigo e com as histórias que contas da Superfície. Se não estivesse tão seguro da sua fobia da água, diria que está a ficar com ideias. — Ri-se. A voz é grave, com um tom terno e afável.
Gosto dele de imediato.
— E esta bela senhora é a Hensel. — Aponta para a mulher elegante ao seu lado. Veste um vestido simples, a tapar os pés, cor de malva.
— Preciosa Ara, quanto gosto.
— Igualmente — respondo, com um sorriso. Estendo-lhe a mão, mas ela puxa-me para um abraço.
Arcas sorri. Mira contou-me que a sua avó faleceu há alguns anos; será esta a nova companheira de Arcas? Se sim, fazem um lindo casal.
— Serei o anfitrião esta noite. Terei o prazer de te apresentar formalmente à Comunidade. Será uma coisa simples. Farei um breve discurso e depois apresento-te e passo-te a palavra. Não precisas de te estender muito, se não quiseres.
O quê? Ninguém me disse que teria de falar perante uma multidão. Gelo e empalideço.
— A Ara nunca se sentiu muito à vontade a falar em público — esclarece Anadir, ao verificar o meu estado.
— Não te preocupes, ninguém te vai avaliar. Apesar de alguns serem um pouco cretinos — diz num sussurro, torcendo o nariz e gesticulando com o braço. — Simplesmente, imagina-os todos nus. Não é, Anadir?
Eles riem-se e eu tenho vontade de me pisgar daqui para fora.
— Bastam umas palavras, mas não és obrigada a fazê-lo, se não quiseres — tranquiliza-me o meu avô.
— Eles só querem um discurso rápido para começarem a comer, portanto, a maioria nem vai estar atenta — assegura-me Arcas, dando-me uma palmadinha leve no ombro.
Eu permaneço estática e muda.
— Bem, vamos lá começar, que eles parecem tigres esfaimados.
Arcas lidera-nos para uma mesa onde já estão sentados Llyr e o casal de Mestres do Consílio, bem como a minha avó e a mulher com quem havia ficado a conversar. Alguns lugares estão ainda vazios, talvez os nossos e os de mais algumas pessoas que convivem alegremente no salão. Cumprimento todos os presentes e sento-me ao lado da minha avó.
Arcas encaminha-se para o centro do salão, onde está um pequeno palanque, preto e redondo. O que eu acho que é um microfone pende, num fio, desde o teto. O burburinho vai dando lugar a um silêncio absoluto. É um homem alto, com porte de monarca. Ao contrário da maioria, enverga branco puro. Um fato de três peças que lhe assenta lindamente.
— Obrigado, obrigado — diz, com um sorriso límpido. — Mas hoje não estou aqui para ser idolatrado.
Risos altos ecoam de todas as partes do salão, acompanhados de assobios marotos.
— Como sabem, e não só porque Aquorea não é assim tão grande, mas porque vocês, na maioria, são uns coscuvilheiros, temos entre nós um novo membro da Comunidade. — Risos e apupos ecoam no salão. — Porém, trata-se de um membro muito especial, pois foi trazido até nós pelo motivo mais forte de todos. — Olha-me com afeição e suspira. O silêncio torna-se ainda mais sereno, e todos o olham com a máxima atenção. Eu, inclusive. Ele tem um carisma cativante. — Amor — diz, por fim.
O quê?! O meu coração agita-se e sinto que o meu rosto vai rebentar de calor.
No salão ouve-se um «aaah» e as pessoas chegam-se para a frente nas suas cadeiras para o escutar ainda com mais atenção, como que à espera da grande revelação.
— O amor de uma neta pelo seu avô. É a primeira vez na nossa história que duas pessoas da mesma família são trazidas para Aquorea.
Alguns aplausos fazem-se ouvir e sonoros «vivas» entusiasmados vêm de uma mesa onde está instalado o meu grupo de amigos. Olho para eles e sorrio. Kai não está lá.
— Arabela, julgo falar em nome de todos quando te dou as boas-vindas e te digo que serás bem recebida. Agora és uma de nós, um membro da Comunidade e desta família. Uma filha, neta, irmã — diz, com os olhos brilhantes postos em mim. — Se quiseres, passo-te agora a palavra. — Faz um gesto com o braço a indicar-me o lugar a seu lado.
As minhas pernas estão bambas e, mal levanto o rabo da cadeira, os meus pés escorregam, e tenho de me agarrar à mesa para não me estatelar no chão.
Ouvem-se risos e alguns comentários, como «tira isso dos pés», que eu posso jurar ter vindo do Gensay. Nunca tive jeito para fazer apresentações públicas. Até mesmo nos trabalhos da escola em que é obrigatório fazer a nossa apresentação perante a turma, eu faço slides ou vídeos para não ter de falar muito. Mas, apesar de todo o nervosismo, aqui sinto-me diferente. Dirijo-me a ele, confiante e com cuidado, mais a deslizar com os pés, como se tivesse uns patins calçados, do que a andar. Os cochichos e risinhos não me incomodam, pois o sorriso encorajador de Arcas ajuda-me a cada metro que percorro. Assim que o alcanço, estende-me o braço e eu apoio-me nele para subir para o palco baixo.
— Obrigada, senhor Lowell.
— Arcas — responde, baixinho.
Olho em volta. Todos os olhos postos em mim. Alguns gritinhos interrompem a linha de raciocínio que planeio para o meu primeiro discurso formal a Aquorea.
— Aí vem eles — alguém grita.
Olho para onde apontam e vejo três vultos nadarem, vindos do mar, em direção à janela de água. Não abrandam e, ao chegarem mais perto, de braços esticados, mergulham habilmente e entram com uma cambalhota para dentro do salão, pondo-se agilmente de pé. Como conseguem transpor a janela de água? Ah, deve ser por entrarem pelo mar… Wull traz na mão um peixe que distingo como o alabote; outro homem, mais velho, moreno, com a cabeça rapada e grandes tatuagens no peito e nos ombros, olha-me de relance e, com um sorriso rasgado, encolhe os ombros como se apresentasse um pedido de desculpa pelo atraso. Kai também está ali, perante mim, somente de calções molhados e, no pescoço, um fio com um seixo preto. Será? Traz um enorme espadarte na mão esquerda. Não usam máscaras ou garrafas de oxigénio e não aparentam sentir faltar de ar.
— Desculpem o atraso — roga o homem mais velho, a mostrar os grandes bacalhaus que traz em cada mão. — E a interrupção. — Sorri-me e pisca-me o olho.
Sorrio-lhe de volta.
Kai olha calmamente em redor e prende os seus olhos nos meus durante poucos segundos, enquanto me aprecia, de rosto circunspecto. Posso jurar que lhe vejo um sorriso maroto, como se algo o divertisse, e novamente ouço, bem no fundo da minha mente, um sussurro… linda…
Ficam os três de pé, em sentido e a pingar água, com os peixes na mão, à espera de que eu fale.
Queria o Kai aqui, aqui está ele.
E continua a sorrir para mim.
— Obrigada, Arcas. — Aclaro a voz antes de falar. — É maravilhoso estar aqui. Se me tivessem dito que um sítio assim existia, nunca acreditaria.
Silêncio absoluto no salão. Público difícil.
— E se houve algum motivo para eu ser trazida para cá, foi, de facto, o amor. — Os meus olhos vagueiam pelo salão, tentando abranger o maior número de pessoas. — Vou contar-vos um segredo. — Alguns inclinam-se para a frente para ouvirem melhor o que tenho para contar. Consegui a sua atenção sem grande esforço. — O meu avô Anadir — faço um gesto na sua direção — nunca me revelou a vossa existência, mas sempre nos levou a acreditar que o impossível pode acontecer, que os nossos sonhos podem concretizar-se. Aqui estou eu. Obrigada a cada um de vocês por me receberem com tanta afabilidade. Obrigada por esta receção e por serem tão amáveis comigo. — Quando o digo, não posso evitar olhar para Kai, que sorri com um trejeito estranho e amargo no rosto.
Não tenho mais nada a dizer. Assim que percebem que terminei o discurso, batem palmas efusivamente — talvez um tudo-nada em excesso. Torno a procurar Kai com o olhar, mas eles já lá não estão. Somente o rasto molhado no chão até às cozinhas. Arcas, ao perceber a minha dificuldade em andar neste pavimento, dá-me o braço e encaminha-me para a mesa.
Ficamos a conversar um pouco, e estou prestes a sentar-me quando vejo Wull e Isla acenarem ao longe. Como quero aproveitar a oportunidade de sair daqui, aceno-lhes de volta. Ela está muito bonita, com um vestido amarelo, plissado, sem ombros. A tez pálida e as feições delicadas, o nariz pequeno e arredondado, dão-lhe a aparência de uma boneca de porcelana.
— Queres vir para a nossa mesa? — pergunta Wull ao chegar junto de nós. Já está seco e vestido, e aponta para a mesa mesmo em frente à janela de água, onde está o grupo do costume.
Olho para o meu avô e indico que vou. Peço, educadamente, permissão para me retirar, agradeço uma vez mais a Arcas pela gentileza e saio. Dou outra olhadela pelo Salão na tentativa de avistar Kai, que está sentado, nem mais nem menos, na mesa para a qual os meus amigos me levam.