Artigo Indefinido


Morte Contemporânea

Se indagasse do sol ou do girassol o que andou fazendo Van Gogh, eles me responderiam que se deu uma orelha cortada, um grito de luz no campo onde crocitava uma vírgula escura, e ele morreu de revólver.

Se perguntasse às colinas de Turim pelas quatro dimensões do talento de Cesare Pavese, talvez dissessem que trabalhar cansa, que o ofício de viver não vale a pena, e que, apenas, ele escreveu, antes de deglutir o barbitúrico noturno: “Nem mais uma palavra. Um gesto. Não escreverei mais”.

Se quisesse saber da valsa vienense onde anda o pensamento doido de Otto Weininger, a valsa contaria devagar que a criança de Viena se matou para ganhar uma aposta.

Aliás, que aconteceu em Viena? Que vertigem endoideceu os deuses do bosque? Uma singelíssima história, madame: o escritor Hofmannsthal morre de coração no dia do enterro de seu filho, morto por suicídio; o escritor Arthur Schnitzler sofre o fim trágico do amigo; e a filha de Schnitzler também se mata. Que pode fazer Arthur Schnitzler senão consumir-se em desespero e loucura?

Se buscasse informações em Buenos Aires sobre as boinas coloridas de Alfonsina Storni, as grandes casas de chá de antes da guerra ficariam caladas; mas talvez uma senhora de idade, com os lábios ainda quentes, se pusesse a contar que a poeta lançou-se no rio da Prata.

Se exigisse desta mesa enodoada uma notícia clara sobre Gérard de Nerval, entrevisto como um cão danado no inverno danado de janeiro, há mais de cem anos, a mesa me estenderia, humildemente, este bilhete: “Titia: não me espere hoje à tarde, pois a noite será negra e branca”. O cantante amanhecer de Paris encontrou o poeta enforcado numa grade. Na rua da Velha Lanterna.

Também espero que o mar de Cuba não me engane. Houve um poeta que amava as pontes. Fazia pontes. Existirá esperança para as pontes? A vaga noturna do golfo do México reluz como punhais iluminados. Hart Crane saltou no mar noturno quando se encaminhavam para casa, em Nova York.

Também Shelley morreu afogado, mas na Itália, em Viareggio.

Passo os dedos no fio desta navalha. Foi com esta lâmina que Guy de Maupassant quis decapitar-se, para morrer paralítico, um ano e meio depois, num manicômio de Paris.

Percorro os hotéis cujas varandas dão para o tédio da rua ou para o tédio do mar. Mas não encontro o menino Mário de Sá-Carneiro, um gordo que sabia as artes do ser oblíquo e achou a morte com as suas mãos.

Sento-me neste banco da praça pública de Ponta Delgada. Aqui se matou Antero de Quental, santo Antero, como rezava o Eça. Na mão de Deus, na sua mão direita...

Foi no Natal que se matou Raul Pompeia.

O colombiano José Asunción Silva caminhava pela noite toda cheia de murmúrios, de perfumes e da música das asas; mas os negócios não deram certo; e ele, que pouco antes se salvara angustiadamente dum naufrágio, pôs termo a seus dias. Foi em 96.

Isadora Duncan casou-se com o poeta russo Iessiênin a bordo dum avião. Ele escreveu um poema com o próprio sangue e se matou. Ela morreu quando a echarpe se enrolou na roda do automóvel.

“Comigo a anatomia ficou louca: sou todo coração.” E na primavera de 1930 o gigante Maiakóvski deu um tiro no seu gigantesco coração.

Seria Henri de Montherlant também um rei de dor?

Virginia devia ter medo de Virginia Woolf, que talvez acabasse na loucura. Por isso entrou nas águas do rio e sumiu.

Santos Chocano, há cinquenta anos, matou o escritor Erwin Elmore, depois de acalorada discussão (como dizem os jornais). Refugiou-se no Chile, onde, em 1934, morreu apunhalado dentro dum bonde.

Georg Trakl, poeta bom, morreu misteriosamente na Primeira Guerra, com 27 anos de idade.

Alain-Fournier, que confiava na magia da infância, morreu nos primeiros combates de Verdun.

Charles Péguy, que confiava na magia em Deus, morreu no Marne.

Rupert Brooke morreu com 28 anos, também na Primeira Guerra. Grécia.

Apollinaire, voluntário, artilheiro e infante, ferido gravemente na cabeça, ficou muito fraco com as sucessivas operações e foi levado na gripe espanhola.

Saint-Exupéry desapareceu num voo de reconhecimento sobre o Mediterrâneo em julho de 1944.

Com trinta anos de idade, Manuel Antônio de Almeida morreu em naufrágio, quando ia do Rio para Campos.

Gonçalves Dias também morreu em naufrágio, quando já se avistava a terra maranhense.

Stefan Zweig, com a mulher, matou-se em Petrópolis, apesar de toda a hospitalidade brasileira.

Hemingway deu um tiro na cabeça; como seu pai.

Albert Camus, que via no suicídio o único problema filosófico, morreu num desastre de automóvel.

O poeta Robert Desnos morreu num campo de concentração, na Tchecoslováquia, quando a guerra chegava ao fim.

Jackson Pollock, o pintor, como David Cobean, o caricaturista, morreu de desastre de automóvel.

T. E. Lawrence, o homem da Arábia, morreu a grande velocidade, de motocicleta, quando tentava desviar-se de dois ciclistas.

Os artistas cantam, mas nem sempre morrem como passarinhos.

P.S. — Várias pessoas, depois que publiquei uma página sobre artistas mortos violentamente, acusam os meus esquecimentos. Não houve isso: não pretendi cadastrar a violência na área artística, mas apenas dar uma dica emocional de uma situação que me impressiona. Nem os homens que passam grande parte do tempo nos estúdios estão a salvo das violentas formas de morte dos nossos dias. Mas posso citar outros nomes que me acorrem sem esforço. Em desastre de auto morreram escritores como Ronald de Carvalho, Roy Campbell; Antônio Botto e Brito Broca morreram atropelados; Gandhi, García Lorca, Martin Luther King morreram assassinados; Lúcia Miguel Pereira, Otávio Tarquínio de Sousa e Galeão Coutinho morreram em desastres aéreos; Verhaeren morreu esmagado por um trem; o suicídio levou ainda o fascista Drieu la Rochelle, o ensaísta V. O. Matthiessen, o surrealista René Crevel, o argentino Leopoldo Lugones; Jackson de Figueiredo morreu afogado; a guerra também levou T. E. Hulme, Edward Thomas, Francis Ledwidge, Wilfred Owen, John Mc Crae, canadense, autor do famoso In Flanders Fields, morto de pneumonia na frente de combate. Em combate morreu ainda Alan Seeger, autor do famosíssimo “I Have a Rendezvous with Death”, poema favorito de John Kennedy e que Jacqueline sabia de cor, segundo conta Arthur Schlesinger. Para o presidente americano, no primeiro e último versos do poema há toda uma predestinação: “Terei uma entrevista com a morte, jamais a essa entrevista faltarei”.

 

 


O Gol é Necessário


13 Maneiras de Ver um Canário

I

 

Gilmar, quando Deus é servido,

come um frango

psicanalítico

por partida. Depois, tranquilo-tranquilo, fecha a porta do inferno.

 

 

II

 

Vê Djalma Santos, indo e vindo, saltando, disparando, correndo, chutando,

cabeceando, apoiando, defendendo, corrigindo, ajudando,

às vezes, inexplicavelmente, até sorrindo em seu combate.

Vê Djalma Santos e reconhece logo:

ele acredita em Deus, é um servo de Deus, um lateral direito de Deus.

 

 

III

 

Mauro acredita em Marden, Samuel Smile, na força da vontade,

na vontade da força, na constância do caráter, na vitória suprema da coragem,

e em todos os sentimentos de aço, que eu, por exemplo, não li.

 

 

IV

 

Nilton Santos confia na bola; a bola confia em Nilton Santos;

Nilton Santos ama a bola; a bola ama Nilton Santos.

Também nesse clima de devoção mútua não pode haver problema.

 

 

V

 

O povo disse tudo: antes Zózimo do que mal acompanhado.

 

 

VI

 

Zito é mensageiro de dois mundos:

o da vida, na área adversária (onde residem os mistérios gozosos)

e o da morte, na área do coração brasileiro (onde residem os mistérios dolorosos).

Zito ziguezagueava zunindo para o Norte,

Zito ziguezagueava zunindo para o Sul.

 

 

VII

 

Como o poeta limpando as lentes do verso,

como o microscopista debruçado sobre o câncer,

como o camponês a separar o joio do trigo,

como o compositor a perseguir a melodia,

o futebol de Didi é.

É lento, sofrido, difícil, inspirado, idealista.

Eis um homem que quase achou o que não existe: perfeição.

 

 

VIII

 

É pela cartilha da infância que se joga futebol.

Garrincha vê a ave. Garrincha voa atrás da ave.

A ave voa aonde quer.

Garrincha voa aonde quer atrás da ave.

O voo de Garrincha-ave é a chave, a única chave.

E um bando de homens se espanta no capim.

 

 

IX

 

Vavá não crê, Vavá confere, Vavá vai ver.

Zagueiro faz escudo das traves da chuteira:

Vavá vai ver.

Goleiro faz maça medieva do osso do joelho: Vavá (de Pernambuco)

vai ver.

Para o que der e vier, Vavá vai ver.

 

 

X

 

Há uma dramaticidade em Pelé que eu não me consinto adivinhar.

Como Cristóvão Rilke, Pelé tem um canto de amor e de morte.

Como Cristóvão Rilke, Pelé é o porta-estandarte.

Como o de Langenau, Pelé está no coração das fileiras mas está sozinho.

 

 

XI

 

E eis que um jovem disse: “Quando vinha acaso um leão ou urso e levava um

carneiro do meio do rebanho, eu corria após eles e os agarrava e os afogava e

matava; o mesmo que fiz a eles, farei a este filisteu”. E foi assim que

Davi-Amarildo liquidou Golias-Fúria com duas pedradas de sua funda.

 

 

XII

 

Minuto por minuto, durante 540 minutos, Zagalo cumpriu o seu dever.

 

 

XIII

 

Olhei por fim o XIII canário

e era o brasileiro anônimo da rua, do mato, do mar,

o coração batendo, bicampeão do mundo.

 

 


Poeta do Dia: Wallace Stevens


Dominação do Negro

À noite, ao pé da lareira,

as cores das touceiras

e das folhas caídas,

que se repetiam,

revolviam-se na sala

tal qual aquelas mesmas folhas

revolvendo-se na ventania.

Sim: mas a cor dos abetos espessos

chegou em largas passadas.

E eu me lembrei do clamor dos pavões.

 

Eram as cores das suas caudas

como aquelas mesmas folhas

que se revolviam na ventania,

na ventania crepuscular.

Passaram arrebatadas pela sala

tal qual das ramagens dos abetos

esvoaçaram para o chão.

 

Eu os ouvi clamando, os pavões.

Era um clamor contra o crepúsculo?

Ou contra aquelas mesmas folhas

revolvendo-se na ventania,

revolvendo-se tal qual as chamas

revolvidas na lareira,

revolvendo-se tal qual as caudas dos pavões

revolvidas no fogo estrepitoso, estrepitoso

como os abetos cheios do clamor dos pavões?

Ou era um clamor contra os abetos?

 

Pela janela

vi como os planetas se agruparam

tal qual aquelas mesmas folhas

revolvidas na ventania.

Vi como a noite chegou

em passadas largas como a cor dos abetos espessos.

Tive medo.

E me lembrei do clamor dos pavões.

 

 


Bar do Ponto


Ab Ovo

A Europa é o ovo, aquele ovo que o europeu come de manhã. Conscientemente come. Exegeticamente come. Culturalmente come. O ovo europeu é um investimento onímodo. Naquele ovo está o complexo socioeconômico da Europa, a guerra, a arte, a disciplina, o estabelecimento fundiário, a altivez temperada, a precaução contra o futuro, a despensa biológica, a utopia da comunidade continental, a práxis da mesma, a reverência curva e quase cômica à herança social. E naquele ovo mora ainda, sem contradição, a puerícia do europeu. Abre os olhos para aquele ovo num hotel da Europa! Que confiança nos valores adquiridos, codificados, presumíveis! Que desconfiança de tudo o que fica para além da Taprobana!

 

 


Pipiripau


Password in Heaven

— Que fez você no mundo?

— Livros... uma porção...

— Livros?! Livros?!

— Filhos, dois filhos...

— Brincadeira tem hora!

— Ah!... um jardim!

— Pode ir entrando... mas sem fazer onda!

 

 


Grafite


Bilhetes Trocados

1

 

Tudo o que é meu é teu — é evidente.

É louca a lucidez que me reparte:

trançar a minha vida duramente

e desatá-la toda por amar-te.

 

 

2

 

A ternura que trago ainda nua

é a mesma, só meio machucada.

Se voltares, também não mudou nada

daquilo que era teu. E feito a lua,

teus livros e teus vinhos, eu sou tua.

 

 


Suplemento Infantil


O Instrumento é Necessário

Nas ondas do vento

existe um dragão

e eu, vago, não tenho

adaga na mão,

existe a quimera

da minha evasão

e eu, vago, não tenho

a minha ilusão,

existe a beleza

de toda emoção

e eu, vago, não tenho

um lápis senão

eu punha depressa

na mesma canção

adaga quimera

as ondas do vento

e um lindo dragão

 

 


Coriscos


Coriscos na Serra

Nunca poderei ser mais do que sou — nem desejarei!

 

*

 

Fotógrafo de parque documenta para a posteridade o insuportável silêncio do anonimato.

 

*

 

A elaboração remota, lenta, macerante, exaustiva, miúda, dolorida, incoerente, excitada, desiludida, congelada, febril, das viagens repentinas.

 

*

 

Poesia: imaginação instantânea.

 

*

 

O poeta ganha a poesia de cada dia com o suor de sua alma.

 

*

 

Não a entendo: é a poesia que me entende.