Artigo Indefinido


Juan Ramón Jiménez e a Vila

Se o Prêmio Nobel deu notoriedade jornalística ao poeta, pouco ampliou o conhecimento de sua arte, mais ou menos invisível para quem não a tome no original; e é de se supor que todos os leitores de espanhol, leitores poéticos bem entendido, já se dessem bem com as finuras espirituais e artesanais de um dos mais esclarecidos artistas contemporâneos.

Todos os poetas são artistas, uns menos, outros mais, na medida em que sirvam poesia crua ou condimentada; mas em Juan Ramón Jiménez a intercomunicação poeta-artista já é por si um virtuosismo, um arabesco à parte. Hemingway disse que recebeu o Nobel quando já tocava a praia, depois de ter nadado muitas milhas. Nem essa sorte de atleta teve o frágil Jiménez: recebeu a coroa sueca no Gólgota, crucificado ao pé do leito da amada agonizante, sua querida mulher Zenobia, tradutora de Tagore. Foi numa clínica de San Juan de Porto Rico, em outubro de 1956, que o telegrama chegou às suas mãos. Para Zenobia, pode ter sido a última mensagem consciente; três dias depois, estava morta de câncer generalizado. A união perdurara quarenta anos; dois anos mais, e se ia também o prolífico poeta.

Se a poesia de JRJ é um jardim confuso, ou longínquo, para quem desconheça espanhol, Platero e eu, publicado no ano da Primeira Grande Guerra, foi imediato sucesso, traduzido em muitas línguas e sempre reeditado desde então. O timbre da prosa desse livro, conquanto poético, a par de sua fluidez sintática, perfeitamente traduzível, exprimia ainda, para o contemporâneo que começava a sepultar-se em cidades de cimento, o espaço e a coloração que perdera ao deixar a pequena comunidade. Platero e eu é a área humana que a urbanização moderna emparedou; ao edificar a cidade total, o homem perdeu sua sombra, sua alma. No livro de JRJ, a alma das coisas — das pessoas, dos animais, das plantas, das pedras, dos demônios — é restituída. A vila está longe de ser o paraíso perdido; mas é a alma perdida.

Essas moralidades não são do autor, que as detestava, mas podem ser as do leitor. “Sempre tive, Platero, desde pequeno, um horror instintivo ao apólogo, como também, à Igreja, à polícia, aos toureiros e à acordeona.” (Valho-me da boa tradução, meio agauchada, de Athos Damasceno.) Se aos horrores confessos de Jiménez acrescentarmos a morte, já vemos que se trata de um espanhol singular.

Platero é um burro. Mas burro, para o autor, seu amigo, nada tem a ver “com a tentativa de definição do Dicionário da Academia Espanhola”. Se os dicionários dissessem tudo, os bichos e os poetas seriam dispensáveis: “Tu tens o teu idioma e não o meu, assim como eu não tenho o da rosa, nem esta o do rouxinol. Nestas condições, não te arreceies de que algum dia, como possas ter calculado, vá eu transformar-te em herói-charlata de qualquer fabulinha, misturando teu sonoro meio de expressão com o da raposa ou o do pintassilgo, para extrair afinal, em boa caligrafia, a moral fria e vã do apólogo”. Tirante La Fontaine, excluída a moral, Jiménez desprezava os demais fabulistas.

Há poetas que, de tão integrados à paisagem terrestre, ou de tão desirmanados da paisagem cósmica, nasceram para a beatitude dos burros, e se lamentam dessa frustração. Juan Ramón Jiménez em primeiro lugar; o francês Francis Jammes; o nosso Álvaro Moreyra, que deu a um burro em Porto Alegre a notícia da morte de Jammes. São eles, no sentido metaburro da palavra, poetas asnáticos, sólidos e evanescentes, feitos ao mesmo tempo de aço e luar. “Platero é pequeno, peludo e macio — tão macio que parece não ter ossos e ser todo feito de algodão. Só os espelhos de azeviche de seus olhos são duros como dois escaravelhos de cristal negro [...]. Mas, por dentro, é rijo e áspero, como se fosse de pedra.”

Platero e eu é um livrinho formado por 136 capítulos, capítulos que poderiam ser chamados de cromos, no bom sentido da palavra, caso essa palavra ainda consiga ter um bom sentido.

Não conta a história de Platero, que não pode ter história, mas a história — cristalizada, encantada, no momento em que se olha — de Moguer, uma cidadezinha branca de Andaluzia.

Platero é a alma de Moguer e Moguer é a alma de Juan Ramón Jiménez.

Moguer é o berço, a alma e o túmulo de Platero-Jiménez. Ali pertinho, a seis quilômetros abaixo, no estuário dos rios Tinto e Odiel, fica Palos, de onde partiram os antigos conquistadores, “ébrios de um sonho heroico e brutal”. Ali, desembarcando de La Niña, depois de ter materializado sua ambição lunática, Cristóvão Colombo, em março de 1493, foi rezar no convento de Santa Clara de Moguer; e aí Cortés, 35 anos mais tarde, de volta do México, deve ter pedido perdão por seus pecados imperiais.

Hoje a cidade está morta.

Lembro-me de que, há alguns anos, ao ver na revista Life uma bonita reportagem fotográfica sobre a vida de Juan Ramón Jiménez, espantou-me com desencanto que o poeta houvesse extraído essência lírica e perfumada de uma carcaça, vestindo de carne um esqueleto.

Só bastante tempo depois encontrei em Jean Giono a explicação do que se passara no intermédio. Moguer morreu. Morreu matada, pioneira na história criminal da poluição. Depõe Giono: “As vinhas foram devoradas pela filoxera. O porto foi entulhado pelo aterro que a mina de cobre do rio Tinto lança no Tinto. Juncos, pernaltas, alcatrazes, voos de gaivotas, o grito melancólico dos patos, a agonia convulsiva de um grande peixe prisioneiro, que vai morrer e será devorado pelos pássaros antes do retorno da maré, o passo e o canto monótono de um aduaneiro que passeia nas ervas do cais onde ninguém mais pode ancorar, eis tudo o que resta do porto de Moguer. [...] A cidade tinha então duas ou três vezes mais habitantes; muitas casas estão vazias e vão-se desmoronando. [...] Sem mais vinho, nem porto, as pessoas partiram”.

Moguer virou cidade fantasma, ou possessa. O escritor francês impressionou-se com seu silêncio em plena rua e em pleno dia; nem um ruído, nem mesmo na praça; se um jornal fosse desdobrado, seria um caso de Estado.

Moguer decerto não era um festival nos tempos de Platero; mas tinha água, limpa e cantarolante, água e alma. Bastando-nos o cuidado de não confundir alma com alegria (Joie de vivre, para Unamuno, era galicismo intraduzível e intolerável), sobretudo a alma andaluza, encontraremos na Moguer de Platero vários acontecimentos animados, absurdos e divertidos desenhos animados: borboletas brancas; um Judas que pode ser o prefeito ou o coletor; guerra de figos maduros; rosas que caem de todos os lados na hora do ângelus; andorinhas a contar às flores o que viram na África; a cocheira de cujo telheiro caem cristais de fogo; o menino pateta; a menina que se fazia de fantasma e morreu carbonizada pelo raio; o papagaio que repete ce n’est rien; a soteia de onde se vê a lâmina das enxadas com relâmpagos de prata; o vigário que fala palavrões; a primavera como um grande favo de luz; o algibe com o parapeito de alabastro; o cãozinho sarnoso que o guarda matou; o arroio dos choupos; os histriões andrajosos; as três velhinhas de babados e lantejoulas; o pão que se pode comer até com pão; a acácia do pátio; a pequena tuberculosa; o poço mágico e perfumado; o toureiro enxundioso de Huelva; a nuvem que bota um ovo de ouro; luminosas tardes de outono moguerenho; a tartaruga grega achada no atalho; Antônia das pernas bem torneadas; a escama de peixe através da qual se vê a Padroeira dos Marinheiros; o rio já imprestável às faluas e aos bergantins; a fonte que é tálamo-cantiga-realidade-alegria-morte; pinhões quentiiiinhos; o touro, senhor da madrugada; o fogo ainda mais belo que a mulher nua; o burro velho, que vai morrer de frio; Teresa, que teve em sua agonia um delírio de flores; a vila em setembro cheirando a vinho e soando a cristal; o Carnaval; a melancolia que vira borboleta; o louco... O louco era o próprio Don Juan Ramón Jiménez: “Todo de preto, a barba à nazareno e meu pequeno chapéu negro, decerto apresento um aspecto estranho, cavalgando Platero, macio e cinza. Quando, indo para os parreirais, passo pelas últimas ruas, brancas de cal e sol, os ciganinhos, sujos e cabeludos, quase nus, em suas estrapilhadas roupas verdes, encarnadas e amarelas, os bojudos ventres tostados, correm atrás de nós gritando ruidosamente: — Olha o louco! Olha o louco! Olha o louco!... Além, estende-se o campo, já verde. Diante do céu imenso e puro, de um anil ardente, meus olhos — tão distantes dos meus ouvidos! — se abrem gravemente, recebendo em toda a sua quietude, essa paz sem nome, essa serenidade divina e harmoniosa que vive nos horizontes sem fim. E perdem-se, lá longe, por detrás das eiras altas, os gritos agudos, agora entrecortados e vagos, quase inaudíveis: — Olha o lou...co!”.

Andavam ajuizadas até certo ponto aquelas crianças sujas: o egocentrismo, a solidão fantasista, os ataques poéticos frequentes de Don Juan Ramón deslocavam-no para os arredores do que chamamos loucura. Nisso se parece bastante com o inglês D. H. Lawrence, próximo dos bichos e das flores, distante dos homens.

Jean Giono, meio perdido em geral, toca no timbre da questão ao referir-se à qualidade dos fantasmas que encontrou em Moguer e em todos os livros de Jiménez. Tanto na cidade como na poesia desse andaluz, “os seres não são jamais o que parecem ser. Uma dona de casa não é uma dona de casa, o carteiro não é um carteiro, o sujeito que nos serve uma cerveja não é o sujeito que nos serve uma cerveja...”. Todo o Platero e eu, diz Giono com muito faro gaulês, está escrito nesta tonalidade: Os personagens ambíguos abundam, os sentimentos comungam-se sob duas espécies. Nada é estável. Nem os cães mortos, nem os cães vivos, nem as cisternas (que se comunicam entre si como os porões), nem o amor humano, nem o mês de abril, nem as crianças... E se esse burro não fosse um burro?, pergunta Jiménez para Platero, diante de uma aparição que pode ser o demônio. Nessa busca, nessa negação do que foi encontrado, ambas incessantes, nessa impermanência de identidade dos seres, estão a loucura e a poesia de Juan Ramón Jiménez.

Só os loucos não são chamados de loucos em Moguer, verificou o autor francês; que era também louco, por ter espiado por cima do muro; o comandante dos aduaneiros (sargento) era louco porque fazia seu grupo manejar armas às três horas da manhã na praça da igreja; mas o infeliz que mergulhava de cabeça na calçada era chamado de don; a coitada que levantava a saia até a cabeça era tratada de señora. Para Giono, Platero é um livro espanhol até o fundo da alma, onde o real e o irreal se completam, onde o que se quer dizer jamais é dito, onde a expressão é apenas um capcioso levantar de poeira sobre os abismos. Lembra bastante as vilas velhas de Minas, ai! Minas Gerais! A alma de Platero-Moguer-Jiménez, o símbolo das almas todas mencionadas no livro, a alma das almas, é o pinheiro da montanha: “Onde quer que eu pare, Platero, parece-me que paro sob o pinheiro da montanha. Aonde quer que eu chegue — cidade, amor, glória —, parece que chego à sua plenitude ampla e verde, sob o vasto céu azul, de nuvens brancas. Ele é o farol, grande e luminoso, nos mares difíceis do meu sonho, como o é também dos marinheiros de Moguer, nas tempestades da barra — fim seguro dos meus dias ásperos, no topo da encosta escura e abrupta, por onde seguem os mendigos, a caminho de Sanlúcar. Como me sinto forte, sempre que repouso à sombra de suas recordações. [...] A palavra magnífico lhe assenta bem como ao mar, ao céu, ou ao meu coração. Também este pinheiro tem o dom de transmudar-se, nos instantes em que há coisas que se veem como em uma outra dimensão e à margem do real, em uma visão de eternidade”. É bem isso: JRJ é um visionário, um louco que elucidou suas visões através da arte, um burro impenetrável à racionalização do luar real.

Na literatura espanhola, Jiménez, como o bom Antonio Machado, pertence à chamada geração de 1898, ano em que a Espanha perde Cuba, Porto Rico e Filipinas, restos do império. Nenhum estremecimento político poderia alterar esse artista esquizoide, obcecado e puro. Desprezava a arte que se pretendia engajada a nacionalismos ou reformas político-sociais; arte popular era degradação; arte para o grande número era bobagem.

Poeta da música, da mulher, do firmamento, da água, da flor, Li Po dos vales de Andaluzia, a poesia é o instrumento e o tema de JRJ; seus símbolos, imediatos, recorrentes, insistentes, só por um milagre — musical — de virtuosismo não se tornam monótonos, assim como das sete notas o compositor parte para a reformulação infinita da melodia. Tudo é a mesma coisa ou tudo é sempre novo — dependendo só dos olhos, dos ouvidos, das mãos do artista. O resto é som e fúria. Poesia ornamental nos primeiros livros, influenciados pela flauta doce de Rubén Darío, mas de ornatos habilmente estruturados a uma inteligência menos borbulhante, ele chegaria a uma arte desnuda. Antes: “Pelo balcão aberto a brumas estreladas,/ chegava um vento triste de mundos invisíveis,/ ela me perguntava de coisas ignoradas/ e eu lhe respondia de coisas impossíveis”.

Depois: “Muros altos de teu corpo./ Não havia entrada em teu horto./ (Que ondas de asas ascendia!/ Oh o que ali se passaria!)/ Céu claro ou turvo, que importa?/ Não havia entrada em tua glória./ (Que aroma às vezes subia!/ Oh em teus vergéis que haveria?)/ Tornaste a ficar fechada./ Não havia em tua alma entrada!”.

Manuel Bandeira traduziu esse e vários outros poemas da fase desnuda de Jiménez, ou branca; nascido no mesmo ano de Picasso (1881), também no poeta podemos distinguir fases coloridas. Numa delas — a verde — García Lorca apanhou, no voo, o balanço e a adjetivação do Romanero Gitano. Em carta a Lorca, Rafael Alberti reconhece a dívida geral da nova geração: foi no romance lírico, inefável e musical de Jiménez que todos eles aprenderam.

De Manuel Bandeira também é a tradução deste canto (bem bandeiriano) de resignação: “O que quiserdes, Senhor,/ E seja o que bem queirais./ Se quiserdes que entre as rosas/ Eu ria até os matinais/ Deslumbramentos da vida,/ Que seja o que bem queirais./ Se quiserdes que entre as rosas/ Eu sangre até as abismais/ Sombras, ai! da noite eterna,/ Que seja o que bem queirais./ Graças se quereis que eu veja,/ E graças se me cegais;/ Graças por tudo e por nada,/ E seja o que bem queirais./ O que quiserdes, Senhor,/ / E seja o que bem queirais”.

A canção acima é rara na lírica juan-ramonista: a água corre perto de nossa alma, e é a tragédia cordial da fugacidade que soa em toda a obra do poeta: “Amigo, é o meu jardim com flores o que choro”. Talhou Antero de Quental num soneto famoso: “Conheci a beleza que não morre e fiquei triste”. Essas palavras podem valer por uma visão em profundidade dentro do poço de melancolia contemplativa que foi o olhar de Jiménez para este mundo.

Mas possuía como todos os poetas (todos? quase todos?) suas reservas de humor. A chispa humorística, bastante vulgar, luziu na poesia do Diário de um poeta recém-casado. Um só exemplo: ao saber de uns versinhos, correntes em Nova York, de sátira a Boston, onde os Cabot só falam aos Lowell, e estes só falam com Deus, observa Jiménez: “Conheci bastante um Cabot. Como devem chatear- se os Lowell. Li A fonte de Lowell. Como Deus deve estar se chateando”.

Pessoalmente, conta Alberti, a par das crises de misantropia, o poeta lírico partia de bom grado para a desabrida gozação de colegas. Sustentava que o escritor, por modesta que fosse sua vida, podia ser conhecido pela casa. Rompeu com Pérez de Ayala quando este lhe mostrou um quarto com chouriços e linguiças pendurados do teto. Zombou a valer de Ortega y Gasset, tirando ilações sobre o estilo do grã-fino intelectual, ao descobrir na casa dele um pesa-papéis de bronze, representando Dom Quixote na cena dos moinhos, e até com um Sancho aos gritos!

Mais uma inesperada contracorrente a favor da tese de Giono, segundo a qual os seres de Jiménez não são o que parecem.

De resto, o próprio Juan Ramón não nos deixa dúvidas (ou só nos deixa dúvidas): Eu não sou eu, diz ele, antecipando o tudo o que sou não sou de um soneto espiritual de Stephen Spender.

O Diário de um poeta recém-casado traz por epígrafe um texto em sânscrito. Nele está contida a única resignação ou consolação ou revolta ou sabedoria ou filosofia ou religião ou ilusão a que chegou o extremado poeta. Reza nestes termos: “Cuida bem deste dia! Este dia é a vida, a essência mesma da vida. Em seu leve transcurso se encerram todas as variedades de tua existência: o gozo de crescer, a glória da ação e o esplendor da beleza. O dia de ontem é apenas um sonho e o de amanhã é apenas uma visão. Mas um hoje bem empregado faz de cada ontem um sonho de felicidade e de cada amanhã uma visão de esperança. Cuida bem, pois, deste dia!”.

Um texto à feição de Tagore, a insinuar que os grandes e honestos burros às vezes se fazem humanos poetas, e podem perfeitamente ganhar academias e prêmios.

Afortunadamente, para o burro Jiménez cuidar do dia era cuidar da poesia. O resto é sânscrito, é Tagore, é chato. Às vezes Platero e eu roça por Tagore, mas, afortunadamente, Juan Ramón Jiménez é mais forte, e por pouco tempo esteve recém-casado.

 

Colhi-te?Não sei

Se te colhi, pluma suavíssima,

Ou se colhi tua sombra.

 

Sombra de quem talvez tenha sido o mais lírico da Lírica de Espanha, desde a aculturação romana ao ano ecumênico de 1975.

 

 


O Gol é Necessário


Bate-Pronto

Ed Sá cita uma frase insuperável do anedotário futebolístico. Eu a sei de cor, mais longa, nestes termos do locutor: “Adentra o tapete verde o facultativo esmeraldino a fim de pensar a contusão do filho do Divino Mestre, mola propulsora do eleven periquito”.

Conta-se que um americano, depois de graduar-se em língua portuguesa na Universidade da Flórida, veio ao Brasil em viagem de aperfeiçoamento. Para familiarizar-se com a linguagem coloquial, dedicou-se a ouvir transmissões esportivas e por acaso foi contemplado com aquela frase. Ficou de cuca fundida durante três dias, vasculhando compêndios, até que um brasileiro lhe forneceu o seguinte glossário: tapete verde — campo; facultativo esmeraldino — médico do Palmeiras; filho do Divino Mestre — Ademir da Guia, filho do veterano Domingos da Guia; mola propulsora — jogador de meio de campo; eleven periquito — quadro do Palmeiras.

 

 


Poeta do Dia: Eugenio Montale


Descanso ao Meio-Dia

Sol alto, descansar, pálido, absorto,

junto ao muro em ruínas de algum horto,

ouvir entre os espinhos incidentes

de melros, estalidos de serpentes.

Pelas gretas do chão, na trepadeira,

espiar as formigas peregrinas

que se dispersam ou se vão cruzando

nas encostas de mínimas colinas.

Quando de cimos altos se sentir

as trêmulas cigarras a zinir,

entre as folhagens, perceber o mar

escamoso, ao longe, a latejar.

E caminhando ao sol que nos navalha,

sentir, com nosso triste alumbramento,

como é toda existência e sua estafa,

neste prosseguimento, uma muralha

que tem em cima cacos de garrafa.

 

 


Bar do Ponto


Moça Bonita

Naqueles longes, moça bonita era como jabuticaba temporona, todo mundo dava em cima. Pra casar. Raro o município que tinha de fato mais de duas moças bonitas. E elas se casavam depressa. Hoje é isto aí. Moças lindas aos magotes assustam Minas Gerais, louras, morenas, mulatas, descontraídas, inscientes do longo e carregado blá-blá-blá de reprovação que a mudança dos costumes (e dos padrões estéticos) foi provocando na família mineira. Fábricas, piscinas, clubes, rodovias, aeroportos, imprensa, televisão fizeram a nova mineira. Só uma palavra a distingue das outras moças do nosso Brasil pra-frente, uai.

 

 


Pipiripau


O Herói

No Mar do Sul de Deus se fez descrente.

No Mar do Norte viu que Deus existe.

O sentimento não o fez contente.

O entendimento só o pôs mais triste.

Depois virou um velho indiferente.

Não sai mais da gaiola. E come alpiste.

 

 


Grafite


Atento Sou

A Fernando Pessoa, que escreveu, em preto e branco, “Tabacaria”.

A Shelley, que saiu nu e sem Deus.

A Li Po, bêbado lírico elementar.

A Dante, supremo redator.

A Shakespeare, poeta do povo.

A Bernanos, roído pelo tédio da paróquia.

A Morgenstern, que viu o objeto desgarrado do sujeito.

A Rimbaud, com aquela cara de porcelana irada.

 

 


Suplemento Infantil


Oriental

Nos olhos do lobo

a poeira levantada pelas ovelhas é um bálsamo de rosas.

 

 


Coriscos


Coriscos no Bairro dos Funcionários

— Para despir as mulheres é preciso vesti-las.

— Que vulgaridade!

 

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Marketing: Cristo foi vendido por 29 dinheiros e 90!

 

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— Menos e mais na matemática... Sístole e diástole na fisiologia... Concentração e expansão na física... Clássico e romântico nas artes... Animus e anima na psicologia... Apolo e Dioniso na antropologia... Estás percebendo?

— Estou... É isto aí: o jeito é alternares o teu neurótico sóbrio com o teu neurótico de porre.

 

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Toda filosofia é barata: do preço de tabela do fatum.

 

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Sei que é bobo chorar um morto e sei que é bobo saber que é bobo chorar um morto.

 

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Executados os exercícios da dor, os ofícios humanos se arrastam numa gelatina desculpavelmente ridícula.