Poesia e cifrões
OS MEUS PAIS QUASE NUNCA CANTAVAM (o meu pai até dizia que só conhecia duas músicas: o hino e as outras); mas, em compensação, sabiam de cor dezenas de textos — e é, portanto, plausível que me tenham embalado com poemas, mesmo quando eu não passava de um embrião. O bicho da literatura mordeu-me cedo e, por isso, aprendi a ler e a escrever com uma febre que não pus em mais nada o resto da vida: fui sempre um zero a Matemática, nunca tracei duas paralelas que não se encontrassem, sou uma nódoa (literalmente) na cozinha, só passei no exame de condução com quarenta anos e mesmo nas coisas do amor fui bastante trôpega, só conseguindo que alguém se casasse comigo aos quarenta e cinco (a minha poesia, aliás, fala muito disto).
Da aprendizagem da leitura guardo, porém, recordações extremamente vivas, como a da primeira frase que li em voz alta numa aula («Pela vila vai movimento desusado»), de um texto intitulado «Tourada à vara larga» (hoje decerto banido de qualquer manual escolar), num livro de capa verde que dizia nas costas «Ó Pedro, que é do Livro de Capa Verde que te deu o Avô a guardar?» e estava cheiinho de poemas, quase todos de João de Deus. Além de aos meus pais, devo, pois, à escola primária a minha escrita mais bonita — e não estou a falar de caligrafia (embora não me esqueça daquele calo azul no dedo médio por causa da caneta de tinta permanente), mas de aprender a dar música e emprestar imagens às palavras, o que se revelou de extrema utilidade quando, por ser a última da ninhada e nunca me darem tempo de antena lá em casa, fiz umas quadras que impressionaram os adultos e os levaram a conceder-me um nadinha mais de atenção. (Mal eu sabia que inaugurava então a minha carreira nas Letras.)
Hoje contam-me que a poesia é um bicho-de-sete-cabeças para qualquer estudante, mesmo no Ensino Secundário. Recentemente, aceitei o convite de um professor dos arredores de Lisboa para ir explicar aos seus alunos do 11.º ano que a poesia não é nenhum papão. Tentei, juro. Comecei por mostrar-lhes como se podia dizer uma coisa banalíssima com a máxima beleza; mas, vendo-os sem reacção, avancei com o golpe baixo de que um poema até pode servir para seduzir ou, em caso de tampa, lamber feridas, dando vários exemplos disso, sempre com o extremo cuidado de evitar a palavra «seios», que habitualmente dá azo a risinhos. A seguir, passei-lhes a bola: que perguntassem o que lhes apetecesse. Pois só quiseram saber quanto se ganhava com a poesia, se o trabalho que se tinha a encontrar rimas era minimamente compensador e porque não passava eu a escrever em inglês, podendo assim vender livros em todo o mundo e receber mais dinheiro. Adeus, futuro.