O bicho homem
QUANDO EU ERA MIÚDA, OS MEUS PAIS arrendavam uma casa durante o Verão — e eu, que fazia anos nas férias grandes (nesse tempo, só começava a cheirar a lápis e cadernos novos lá para Outubro), tinha direito a festa, mas não à presença das amigas da escola. Para me compensar, chamavam-me para escolher o peru que seria servido ao jantar de uma fila interminável de animais vivos que um senhor com um pau conduzia rua fora ao som de gluglus. O facto de eu saber que a seguir iam embebedar o animal e torcer-lhe o pescoço (não que eu assistisse a tais manobras) era uma coisa que pura e simplesmente não me ocorria.
Numa dessas casas alugadas «à época», como na altura se dizia, havia uma grande capoeira onde uma ninhada de pintainhos fez as minhas delícias em certo Verão. A senhoria deixou-me então baptizar um deles e ser sua dona durante as férias e, nessas semanas, o meu Zé tornou-se um franguinho branco e bem-parecido. Porém, quando no ano seguinte voltámos à casa e perguntei por ele, o silêncio dos adultos disse tudo: o pobrezinho acabara provavelmente na panela de alguma canja. Não derramei, mesmo assim, demasiadas lágrimas: sabia desde tenra idade que os homens se alimentam há séculos de outros animais.
Tirando as condições terríveis com que certas espécies são criadas, tratadas e transportadas — que obviamente condeno —, tenho para mim que bicho é bicho e gente é gente, mesmo quando o animal de estimação é o nosso («Ai, parecia mesmo uma pessoa») ou quando dou o nome de José a um frango. Como tal, irrita-me um certo fundamentalismo na defesa dos direitos dos animais (já há quem reprove a leitura de Moby Dick, haja paciência…) quando os nossos mais velhos — aqueles que, segundo George Steiner, «cometem o crime de viver demasiado» — são abandonados tantas vezes à sua sorte pelas mesmas famílias que tratam como reis cão e gato. Por isso, um dia destes arrebitei a orelha (à cão) quando, numa dessas impessoais Praças da Alimentação de um qualquer centro comercial (cada um tem o que merece), um jovem casal analisava, na mesa ao lado, o orçamento familiar, perguntando-se se poderia pagar um «Day Care» (que interpretei precipitadamente como «Centro de Dia») ao Amadeu, para que não passasse tanto tempo sozinho. Imaginei que esse Amadeu solitário fosse um tio-avô sem filhos, recém-viúvo, que precisasse com urgência de cuidados e companhia; mas, ouvindo a conversa até ao fim, entendi que afinal se tratava de um cachorro mimado e choramingas que ia custar duzentos euros mensais aos donos para ser passeado e posto a fazer chichi duas vezes por dia. Adeus, futuro.