Um clássico

AO DOBRAR A ESQUINA DE UMA RUA DA INFÂNCIA, havia uma papelaria chamada Perdiz que desempenhava igualmente as funções de livraria e loja de brinquedos. Era ali que, quando eu estava doente, a minha mãe me comprava umas bonecas de papel com guarda-roupa para recortar (Barbies a duas dimensões) e uns livros com desenhos que ganhavam cores quando se passava um pincel molhado pelas respectivas páginas (não me perguntem se era milagre). As duas pessoas que atendiam ao balcão estavam tão familiarizadas com a cola Cisne, os guaches Pelikan, o papel Cavalinho e umas borrachas muito ásperas como com o Ford Anglia em miniatura que faltava na colecção de Dinky Toys do meu irmão ou o escafandro do Action Man que acabara de chegar; e, quando a minha avó, na vizinhança de um aniversário, lhes perguntava por um livro que fosse bom para um rapazinho de nove anos, também não tinham hesitações em aconselhar um dos volumes daquela colecção de biografias com capa dura que incluía Lincoln, Pasteur, Mozart, Marie Curie e muitas outras personalidades. Mesmo não se tratando de gente com estudos, as pessoas que então vendiam livros sabiam, regra geral, o que estavam a vender.

Já eu era estudante universitária, e de Letras, quando tive de responder a um apertado inquérito sobre as minhas leituras numa livraria-galeria das Avenidas Novas para conseguir levar para casa a maravilhosa Comunidade, de Luiz Pacheco, ainda numa edição agrafada e em mau papel. Ao que parece, era o último exemplar que existia na loja, e o livreiro decidira que só o venderia a quem o merecesse (ufa!).

Essa atenção informada viria, porém, a deteriorar-se muito com a industrialização da edição e a substituição de livrarias (e papelarias) independentes por hipermercados e cadeias de lojas despersonalizadas. Hoje em dia, não é assim tão raro termos de soletrar o nome de um autor (mesmo conhecido) para o funcionário da livraria o introduzir no computador e nos dizer se, afinal, tem ou não o livro que procuramos. E a ignorância grassa: um dia destes, mandaram-me procurar Octavio Paz na estante dos autores portugueses (lá soar soa) e há uns meses, numa livraria do centro da capital, um senhor ao meu lado perguntou à funcionária se tinha alguma coisa de Charles Dickens e a resposta imediata dela foi uma pergunta: «Isso é o quê?» Ainda apalermado com aquela reacção, o cliente replicou que, enfim, se tratava de um clássico. Acendendo-se-lhe subitamente um brilho nos olhos, a rapariga processou a informação, sorriu e apontou então uma mesa próxima, dizendo: «Procure ali.» Não resisti a rodar o pescoço e ver o que havia na mesa: Sófocles, Ovídio, Lucrécio, Platão… Adeus, futuro.