Revelações

HÁ MUITOS ANOS TIVE UM NAMORADO FOTÓGRAFO que fazia todas as refeições fora de casa, incluindo o pequeno-almoço. A sua despensa era um lugar desolador e, na cozinha, dentro do frigorífico, perfilavam-se apenas frascos de plástico com líquidos de revelação. Uma vez fiz-lhe companhia na penumbra mágica do laboratório fotográfico — e ver surgir aos poucos uma imagem naquele rectângulo de papel mergulhado na tina foi das coisas mais bonitas a que assisti. Actualmente, com o digital a dominar a fotografia, pergunto-me o que será feito de tanta câmara escura por esse mundo fora (onde, além de se terem revelado belíssimas fotografias, também se deve ter namorado bastante) e se esse meu amigo terá entretanto prescindido do seu frigorífico.

Além da experiência quase mística da revelação, que não creio que regresse (mas nunca se sabe), quando hoje olhamos para uma fotografia também nunca sabemos se corresponde ao que foi efectivamente fotografado. A facilidade com que se limpam borbulhas, afunilam cinturas, recortam companhias indesejáveis, acentuam cores e roubam sombras e brilhos à composição é tudo menos reprodução da realidade; e, embora seja um milagre o Photoshop permitir a uma rapariga sem um palminho de cara parecer quase uma Miss, para mim perdeu-se uma das principais finalidades da fotografia, que é justamente a de fixar o momento — sim, «para mais tarde recordar».

Conheço a este título uma história curiosa. Num casamento de libaneses francófonos em Beirute há meia dúzia de anos, as mulheres, quase todas cristãs, não tiveram de obedecer a qualquer restrição na escolha do vestuário. Havia por isso vestidos de alcinhas ou cavados, mini-saias, tecidos vaporosos e transparentes, colos descobertos e decotes acentuados. Por se tratar de uma família conhecida (com parentes vindos da Europa e dos Estados Unidos de propósito para a cerimónia), uma dessas revistas mundanas que existem por todo o lado fez a cobertura da festa e publicou uma longa reportagem em relação à qual o jet set do restante Médio Oriente ficou a salivar. Vai daí uma publicação congénere da Arábia Saudita comprou os direitos da reportagem. E agora começam as revelações… Ainda que a disposição das fotografias na página seja exactamente a mesma do trabalho original, aqui os vestidos têm todos mangas compridas e decotes chegados ao pescoço; as saias parecem ter-se miraculosamente desenrolado até aos pés; as transparências tornaram-se opacas como num passe de mágica; e, claro, além da maquilhagem francamente desmaiada nos rostos das mulheres, pousaram uns tristes véus sobre as suas cabeças penteadas. Photoshop como censura? Adeus, futuro.