Natureza morta

DESDE QUE NASCI ATÉ SAIR DE CASA DOS MEUS PAIS, morei numa das mais movimentadas avenidas da capital — e, às vezes, dizem-me que ainda trago o cheiro da gasolina agarrado à pele e o eco do trânsito nos ouvidos. Passei a infância cheia de pena de não poder ir «à terra», como tantas colegas que tinham quintas, hortas ou avós num canto qualquer do País; mas a minha família paterna estava em Lisboa pelo menos desde o reinado de D. Luís; e a materna, antes de poder ver a Sé da janela de casa, entretivera-se por áfricas e brasis, sem nunca sentir verdadeiramente o apelo da província.

Demasiado urbana, já se vê, até entrar na escola eu achava que o carapau era marido da sardinha e a lebre mulher do coelho — e, para ser sincera, ainda hoje digo «árvore» em vez de «faia» ou «teixo», fujo a sete pés do turismo rural e custa-me adormecer ao som das cigarras. Mesmo assim, creio ter compensado o cimento da vida alfacinha com férias muito grandes ao ar livre, em que todas as horas, sobretudo as passadas a pedalar por bosques, pinhais e descampados (mas também aquelas em que faltava a luz e alguém ia pôr uma pratinha à roda do fusível), serviam para tirar a barriga de misérias em relação à natureza: pesquei rãs e girinos num pântano fedorento (vá lá que tinha a vacina do tétano em dia), comi amoras das silvas, escondi lagartixas num saco transparente para assustar as mães, fiquei com as mãos pegajosas de resina, enchi o balde da praia com caranguejos que depois devolvi ao mar, meti-me em tocas e galinheiros, persegui formigas, borboletas e pirilampos. E, já adolescente, pus a minha máxima devoção académica na construção de um herbário, a que só ficou mesmo a faltar uma folha uninérvea, porque até um pé de morangueiro eu fui buscar a um jardim de Sintra, protegendo-o com mil cuidados para que não manchasse a cartolina de vermelho.

Há meia dúzia de anos, diante de um robalo grelhado a que tive de tirar as espinhas («Como é que isto se come?»), o escritor Paul Auster confessou que não se acostumava a ver um peixe no prato com rabo e cabeça, porque no seu país natal praticamente só serviam filetes. E, apesar do inexplicável êxito dos «douradinhos» entre nós (a publicidade tem muita força), pareceu-me que aquilo era mesmo tique de nova-iorquino civilizado e asséptico, sem hipóteses de chegar à Europa. Mas hoje, francamente, já não sei: uma professora minha conhecida pediu às crianças de uma turma do terceiro ano que desenhassem uma galinha e houve quem escarrapachasse no papel um frango depenado e sem cabeça, igual aos que se vendem no supermercado. Adeus, futuro.