Erros seus, má fortuna
QUANDO COMPLETEI O ENSINO PRIMÁRIO — num tempo de ir em fila indiana para o refeitório e brincar ordeiramente no recreio (mas também de cópias, ditados e cantar a tabuada) — os alunos não davam tantos erros de ortografia como agora; e, se algum tinha mais de três numa daquelas redacções escritas em papel almaço e ilustradas com lápis de cor, isso era sentido quase sempre como uma humilhação. De tal modo me incutiram desde cedo a importância de entregar um texto sem mácula que, quando o meu primeiro namorado me mandou de umas férias em Vidago um postal que dizia «Chegá-mos bem» e mais duas calinadas imperdoáveis, achei melhor rifá-lo e, para que percebesse porquê, devolvi-lhe o postal para as termas com os erros sublinhados a vermelho.
Hoje — e apesar do debate em torno do famigerado Acordo Ortográfico — a ortografia tornou-se, infelizmente, um pormenor irrelevante (desde que a mensagem se entenda, o resto é secundário). A falta de leituras, o recurso à escrita automática, a mania do inglês e das abreviaturas, mas também as baixíssimas médias exigidas pelas universidades na área da Educação (os que hoje estudam para professores tiveram piores notas a Português no Secundário do que os seus colegas de Medicina, Arquitectura ou Engenharia) — tudo isso contribuiu para que as pessoas escrevessem cada vez pior. E percebi que não havia mesmo volta a dar quando, depois da profusão de erros em ementas de restaurante, instruções de electrodomésticos, folhetos promocionais ou comentários no Facebook, uma publicação respeitável deixou passar em título a palavra «enchame» (e não era «encha-me» gralhado, era mesmo o conjunto de abelhas) e, num telejornal, o rodapé referia que a «geada» islâmica reivindicara a autoria de mais um atentado.
Pensava eu, mesmo assim, que os livros estivessem a salvo da tragédia. Mas já não há paraísos: além da sistemática confusão entre «iminente» e «eminente», os candidatos a escritores submetem ficções em que o protagonista «pousa» para a fotografia numa «instância» balnear, os negócios são «fluorescentes», os sismos têm um «hipicentro» algures e ainda há quem se marimbe para tudo isso e, no fim, puxe o «autoculismo». Pior: contaram-me que uma editora que só faz livros quando o autor lhe compra o grosso da tiragem tem a desfaçatez de imprimir e vender centenas de exemplares que sabe estarem crivados de erros ortográficos; mas, se alguém se indigna e lhe chama a atenção, desculpa-se com o autor, que não quis pagar mais um suplemento por página pela revisão… Adeus, futuro.