De joelhos
APESAR DE OS MEUS PAIS NÃO SE TEREM CASADO pela Igreja (fizeram-no às escondidas e, nessa época, nenhum padre daria o amém a semelhante ousadia), acabei por ter uma educação religiosa. Não só a minha avó, que vivia connosco, era uma católica fervorosa (e ai de quem piasse quando o Frei Hermano da Câmara aparecia na televisão), como nesse tempo era hábito as crianças serem baptizadas e fazerem a Primeira Comunhão aos seis ou sete anos. Mas antes disso já eu tinha ido às cavalitas de alguém a uma procissão da Nossa Senhora do Rosário, em que a minha irmã fez rir toda a gente ao cantar, muito compenetrada, «Minha gulosa Rainha do Céu».
Na escola, seríamos finalmente elucidadas sobre quem era a «miraculosa» Rainha do Céu com a ajuda do Catecismo Nacional. Tinha na capa uma imagem de Jesus falando às crianças e arrancava com o aviso de que Deus estava em toda a parte e tudo via, que era para pensarmos duas vezes antes de fazermos uma asneira e atentarmos no sucedido a Adão e Eva, expulsos do Paraíso por comerem o fruto proibido na 6.ª Lição. Mesmo não constando do pequeno volume, as histórias de dilúvios, línguas de fogo e pragas de gafanhotos atravessavam toda a catequese, mostrando-nos o que aconteceria se não cumpríssemos os mandamentos. A sorte era que, havendo um deslize, bastava que nos arrependêssemos e, de joelhos, pedíssemos perdão a Deus (ao padre) pelos nossos pecados. A penitência seria leve.
Na véspera da primeira confissão, ensaiei os pecados a confessar com a minha irmã e disse que tinha sido mentirosa, vaidosa, desobediente e respondona; e, por ser pouca coisa, ela aconselhou-me a contar também que às vezes não lavava os dentes… Já no ano seguinte, a minha avó insistiu em que o meu irmão e eu fôssemos confessar-nos pela Páscoa; mas o franciscano que estava de plantão, mal olhou para nós, abanou a cabeça e declarou: «Gente pequena não tem pecados grandes.»
Tinha razão — e fomentar o sentimento de culpa numa criança pode até afectar-lhe a infância inteira; mas ensiná-la a pôr a mão na consciência, a admitir o erro, a pedir desculpa e a ter a noção de que fazer o mal implica quase sempre um castigo já me parece uma boa prática — e isto nada tem de religioso.
Hoje, que as labaredas do Inferno nem os católicos assustam, passou-se, contudo, para o extremo oposto, em que o único senão de cometer um crime é poder ser apanhado. Pior só quando os criminosos estão dentro de confessionários, absolvendo crianças indefesas e tantas vezes de joelhos à sua frente… Adeus, futuro.