Pátria a mais

SOBRETUDO POR CAUSA DO DOMÍNIO DOS FILIPES, os meus livros escolares tratavam os espanhóis como uma espécie de inimigos figadais e puxavam os galões de Aljubarrota para mostrar que, mesmo pequeninos, os portugueses também eram capazes de grandes feitos. A animosidade com nuestros hermanos era tão evidente nas mulheres (as Lolas de que falava O’Neill devem ter feito estragos) que me lembro de se dizer que as espanholas usavam muitos cremes mas não se lavavam e que, nas lojas, tinham a mania de ver tudo com as mãos. Porém, do outro lado da fronteira, a vingança servia-se fria: uma amiga que se mudara para Salamanca contava que lá os manuais escamoteavam pura e simplesmente as vitórias dos portugueses sobre os castelhanos e que, na voz da professora, tudo o que de bom acontecera no mundo era obra de espanhóis.

Vizinhos pobres, contra o ressentimento tristonho de Portugal a Espanha empinava o nariz. Topou-o muito bem um escritor francês de visita a Lisboa nos anos oitenta ao afirmar que, enquanto aqui lhe perguntavam a medo se conhecia Pessoa, em Sevilha qualquer matrona achava que o mundo inteiro sabia o nome da sua modista; e que as portuguesas eram, afinal, tão bonitas como as espanholas, o problema era andarem sempre de olhos no chão…

Felizmente, com o fim da ditadura e a integração europeia, depressa se esqueceu a praga do mau vento e do mau casamento; de tal maneira que, em 2006, uma sondagem revelava que quase 28% dos portugueses preferiam ser espanhóis. Mas, se mais de um quarto da população portuguesa não se ralava de chamar pátria a uma terra onde não tinha raízes, os espanhóis nunca se esqueciam de regar o seu orgulho nacional. Foi certamente por isso que o jornal satírico El Mundo Today espalhou a boutade de que dois em cada três espanhóis achavam que a língua falada em Portugal era castelhano com sotaque galego; ou que o conservador ABC perguntou à Real Academia de História de quem eram, afinal, os louros da viagem de Fernão de Magalhães, atacando assim o governo socialista espanhol por ter envolvido Portugal nas comemorações.

Mas pátria a mais também pode ser conhecimento a menos… Uma amiga de Madrid pediu-nos aqui há uns anos que déssemos uma voltinha por Lisboa com a filha, que chegava para um semestre de Erasmus. E, quando lhe mostrámos o Padrão dos Descobrimentos, reparámos que ficou um tanto ou quanto intrigada. Porquê? Ora, não conseguia perceber por que raio tínhamos em Portugal um monumento aos Descobrimentos… espanhóis. Adeus, futuro.