Nem tanto à terra

NO PORTUGAL DA DITADURA, em que no campo as mulheres aumentavam a própria miséria tendo todos os anos mais um filho (mas, se alguém lhes perguntava porquê, respondiam coisas como «Isto morre»), muitas crianças preferiam o trabalho agrícola à sala de aula, fosse por terem de andar todos os dias quilómetros a pé até à escola (quase sempre descalças e com fome), fosse por os professores lhes baterem por dá cá aquela palha, às vezes só para mostrar quem é que mandava. Conheço quem tenha levado reguadas nos nós dos dedos (trinta seguidas por ter defendido uma colega acusada injustamente de roubar um bolo); quem chorasse diariamente no caminho para a escola com medo de um ponteiro que todas as semanas ameaçava partir-se numa cabeça diferente; e até quem tenha deixado os estudos na segunda classe por a professora lhe espetar as unhas na parte mais carnosa da orelha de cada vez que descobria um erro na conta de somar. Não foi, felizmente, o meu caso, embora também me recorde de, no colégio onde andei, haver uma palmatória pendurada no gabinete da directora para inibir comportamentos demasiado afoitos. Mas nunca a vi avermelhar uma só mão.

Creio que todos os que ouviram contar ou sentiram na pele histórias como as que acima referi saudaram, logo a seguir à Revolução, o aparecimento de uma escola sem violência física e aberta ao diálogo, na qual professor e aluno eram peças equivalentes de uma engrenagem que já não admitia deuses nem escravos. Porém, talvez com o receio de que o exercício da autoridade evocasse a memória do fascismo e fosse, portanto, malvisto, a disciplina e a admiração pelos mestres, tão necessárias ao sucesso da aprendizagem, depressa se diluíram numa espécie de igualdade desproporcionada que, de resto, muitos docentes facilitaram. Na escola onde ensinei em 1987-1988, alguns colegas levaram à cena no final do ano uma peça da sua autoria, em que os membros do Conselho Directivo davam bolachinhas aos alunos malcriados e penalizavam com uma suspensão os professores que tinham marcado falta de castigo aos «pobrezinhos». Apesar da caricatura, a situação não andava longe da verdade, e é pena que a comédia não tenha servido de advertência.

Não há muito tempo, um rapaz de doze anos entrou na sala de aula aos chutos a uma bola; e, quando o professor a apanhou e se recusou a devolver-lha, virou-se a ele e agrediu-o violentamente. Não foi o primeiro nem será o último. Uma mera inversão de papéis? Adeus, futuro.