Língua de fora
O BRASIL, ATRAVÉS DE UM ASSESSOR DE BOLSONARO, exprimiu o desejo de revogar o Acordo Ortográfico de 1990. E, mesmo que seja só para cortar com tudo o que lhe cheire a passado, é uma excelente notícia.
Se em Portugal se atende o telefone com um «Sim?» e no Brasil com um «Pois não», isso mostra logo a inutilidade de tentar uniformizar através da ortografia duas variantes de uma língua que gosta de pensar de maneiras diferentes dos dois lados do Atlântico. Contava o saudoso escritor António Alçada Baptista que uma vez, andando de táxi com um amigo numa cidade do interior do Brasil, o motorista lhes perguntou que língua vinham a falar e donde eram. Explicando-lhe que falavam português e eram de Portugal, o comentário que se seguiu foi surpreendente: «Para estrangeiros, falam muito bem a nossa língua.»
Parece anedota, mas não é; e a «nossa» língua e a língua «deles» são, de facto, cada vez mais duas línguas que não se vão tornar iguais (e ainda bem) só por tirarmos um C aqui e um P acolá. Já se sabia que a sintaxe era distinta nos dois países; porém, mesmo ignorando o calão (quase sempre mutuamente incompreensível), é sobretudo a semântica que afasta estas duas variantes do português. Se eu entrar, por exemplo, numa loja da Cidade Maravilhosa a perguntar quanto custa a camisola castanha que está na montra, a moça («rapariga» nem pensar) provavelmente não me vai entender («perceber» também é palavra a evitar); porque lá camisola é camisa de noite, castanho diz-se marrom e montra é vitrine, além de que o verbo custar não se aplica tanto ao preço como ao esforço.
Por outro lado, o tom aqui é formal e lá coloquial — basta comparar duas traduções da mesma obra: «os nossos antepassados» transformam-se facilmente em «os avós da gente». Numa reunião com uma editora brasileira que via então pela primeira vez, usei aquela estranha forma de tratamento, exclusiva de Portugal, que consiste em referir o nome do interlocutor em substituição do «você»; e fui dizendo «Como a Ana Maria sabe…», «A Ana Maria bem vê…», «Talvez a Ana Maria conheça…», até que, ao fim de meia hora de conversa, ela me interrompeu para perguntar: «Desculpa, quem é Ana Maria?»
O Acordo Ortográfico de 1990 nunca chegou a ser ratificado por Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e Timor Leste (eles lá sabem). Ora, deitando-lhe o Brasil a língua de fora, irá Portugal, praticamente sozinho, fazer finca-pé numa ortografia que nem sequer é a sua? Adeus, futuro.