Olá e adeus
LEMBRO-ME DE QUE VESTIA UMA SAIA AMARELA que a minha mãe me trouxe do Rio de Janeiro no dia em que fiz a oral da quarta classe (sim, eu fiz exames na instrução primária). Tudo aconteceu numa sala que tinha um retrato de Marcello Caetano numa das paredes e onde um senhor com um leve ar de padre me perguntou, para começo de conversa, quais eram os meus deveres para com a pátria. Reza o B.I. de então que eu só media um metro e vinte e sete, mas respondi o que alguma professora me ensinara a papaguear com a altivez e o decoro exigíveis: «Amá-la e defendê-la.» E quebrei o gelo logo a seguir quando, a propósito de uma pergunta sobre a crise de 1383-1385 (sim, aprendíamos esta matéria na instrução primária), fiz rir a assistência ao dizer que D. Leonor Teles «simpatizava imenso» com o Conde Andeiro. Eram, entenda-se, tempos formais, em que tínhamos de ter cuidado com a linguagem e estava fora de questão uma catraia de nove anos usar a palavra «amante» ou sequer dizer que a rainha tinha «um caso» com o seu conselheiro.
E, porém, de uma situação de exagerada cautela e absurda contenção passámos, hoje, para o extremo oposto, soltando palavrões encapotados à frente de toda a gente (aquele Fogo! a arder constantemente na boca dos jovens é disso exemplo) e usando formas de tratamento no mínimo desadequadas. O funcionário da empresa de segurança que foi lá a casa montar um alarme depois de os nossos vizinhos do lado terem sido assaltados duas vezes no mesmo mês tratou-nos por senhora Maria e senhor Manuel, como se fôssemos os protagonistas de um anúncio a pesticidas no Portugal dos anos sessenta. É assim também que nos chamam (quando os atendemos, bem entendido) os empregados dos call centers. E, em vários hotéis de norte a sul do País, não só é recorrente o tratamento pelo nome de baptismo (com o «senhor» não seria mais correcto usar o apelido?) como — mais difícil de engolir em quem devia saber de relações-públicas — os recepcionistas usam vulgarmente o «vocês» dirigindo-se aos hóspedes. (Quando conheci José Mariano Gago no início dos anos noventa, ele disse-me logo que iria tratar-me por tu porque o você era horrível, e dou-lhe razão.) Também por escrito, desapareceram de repente o «senhor» e a «senhora» da correspondência, sobretudo da que devia ser formal. Recebo regularmente e-mails de candidatos a romancistas pedindo a avaliação dos respectivos originais e, às vezes, bastam as primeiras linhas para perceber o que aí vem. Uma das últimas mensagens começava assim: «Olá, Maria. Chamo-me João e escrevi uma obra-prima. Queria que você a lesse, tudo bem?» Adeus, futuro.