Cães como nós
NA SEMANA PASSADA, ENCONTREI UM AMIGO que não via há séculos com um cão enorme pela trela (ou seria ao contrário?) e fiz-lhe uma grande festa (ao amigo, claro). Tratava-se de alguém próximo e querido, e a única razão para termos deixado de nos dar foi ele ter ido viver para os Estados Unidos.
Depois de farejada de alto a baixo pelo seu animal, propus-lhe que nos sentássemos numa esplanada ali perto e puséssemos a conversa em dia; mas ele disse-me que teria de ficar para outra vez, pois ia a um concerto com o cão e já estava atrasado. Conheço alguns cafés e restaurantes que admitem a entrada a animais domésticos, mas estranhei que deixassem um cão assistir a um concerto, mesmo ao ar livre, porque os seus latidos decerto interfeririam com a música. O meu amigo explicou-me, porém, que, caso eu não tivesse percebido (e não tinha), aquele era um concerto expressamente para cães, pois certos tipos de música têm o condão de baixar os níveis de stress canino, sendo por isso aconselháveis a qualquer raça; e, perante o meu ar assarapantado, acrescentou que, na cidade dos States onde vivia, existia também um cinema que passava em determinado dia da semana filmes para cães, ao que parece com o mesmo efeito calmante, mas que isso ainda não tinha experimentado.
Em conversa com amigos no dia seguinte, concluí que já não faz sentido queixarmo-nos de uma «vida de cão» porque, além de concertos, filmes e um canal de TV por cabo para cães, existem agora hotéis de luxo para cães, psicólogos e babysitters para cães, funcionários que, além de passearem os cães, vão a casa dar-lhes o almoço e fazer-lhes companhia por umas horas e, segundo me dizem, muito mais gente interessada em adoptar um cão do que uma criança. Até há jornais (e alguns, segundo me dizem, de grande reputação) que publicam obituários de cães.
Mas a maior surpresa ainda estava para vir: o negócio em que se transformou em várias zonas do globo a organização de casamentos caninos. E, atenção, não falo do apuramento de raças feito por criadores, mas de festas a sério, em que os cachorros são vestidos de noivos (a cadela com véu branco e o macho com smoking, peitilho e laço), as damas de honor levam vestidos vaporosos e os restantes convidados (todos de quatro patas) usam modelitos de alta-costura copiados das revistas e por vezes vêm enfeitados com as jóias das próprias donas. E, para o dia ser inesquecível, trocam-se coleiras em vez de alianças e o bolo, em forma de osso, tem dois noivos em cima. Cães, como nós. Adeus, futuro.