Os iletrados
TRABALHO NA EDIÇÃO HÁ MAIS DE TRINTA ANOS e há mais de vinte que me dedico a tirar manuscritos das gavetas, ajudando a trazer à tona o talento literário. Como agulha em palheiro (e a palha é muita, acreditem), procuro gente capaz de, com o mesmíssimo material que todos nós usamos para pedir um café, deixar um recado ou insultar alguém na febre do trânsito, escrever de uma forma que pareça inteiramente nova.
Os escritores estreados no início do milénio (José Luís Peixoto, Filipa Melo, João Tordo…) ainda eram quase todos da área de Letras — Filologia, Jornalismo, Filosofia —, seguindo, de resto, as pisadas de muitos dos seus antecessores. Manteve-se também a tradição dos escritores de Direito (Dulce Maria Cardoso ou Valter Hugo Mãe), mas nada faria crer que, uma década mais tarde, se desse uma reviravolta e começassem a surgir de forma sistemática romancistas com formação científica: vêm da Física, da Arquitectura, da Economia e até da Engenharia que, malgré Jorge de Sena, tinha fama de só atrair gente quadrada. A que se deve esta mudança?
Bem, se antes se fomentava nos jovens a descoberta de uma vocação, a verdade é que a ditadura do dinheiro em que hoje chapinhamos veio fazer depender a escolha de uma carreira da possibilidade de ter um emprego bem pago à saída da universidade, assim afastando das Letras muitos dos seus naturais candidatos. Os estudantes mais interessados e lidos optam, pois, por áreas como a Medicina, a Economia, certas Engenharias, e estudam a sério para entrar nas universidades mais reputadas, que exigem médias muito altas, pelo que, até no exame de Português (obrigatório para todos os alunos, mas fora do seu plano de estudos), obtêm classificações francamente superiores às dos seus colegas que um dia serão professores, entre outras disciplinas, de Português.
É que hoje os alunos que escolhem Línguas e Humanidades no Secundário são justamente os que terminaram o 9.º ano com piores notas: 30% nem chegam à universidade; e, dos que lá chegam (geralmente com médias baixíssimas), são poucos os que lêem — e, sem leituras, não se fazem escritores.
Num curso de Estudos Portugueses de uma universidade lisboeta, uma professora apresentou na primeira aula o programa da cadeira de Literatura, enumerando os autores que seriam estudados. Quando, porém, se referiu à poesia de Pessoa e Sá Carneiro, houve uma aluna que abriu muito os olhos e indagou: «Sá Carneiro?! Mas esse também escrevia versos?» Enfim… em Letras, os iletrados. Adeus, futuro.