A praga do silêncio
LÁ EM CASA COSTUMAMOS FAZER UMAS MINIFÉRIAS a seguir à Feira do Livro — não só porque ela nos rouba, pelo menos, três fins-de-semana seguidos e dois feriados (o que só por si justificaria a necessidade de repouso), mas também porque, para quem ama os livros, a tristeza cresce de ano para ano com a situação, e as férias sempre ajudam a recuperar do desapontamento. Na verdade, são cada vez mais as pessoas que vão ao Parque Eduardo VII tirar uma selfie com uma tia cozinheira em vez de comprar um livro de um escritor a sério. Em 2019, ano em que a feira era anti-plástico, chegou-se ao cúmulo de, em alguns pavilhões, se venderem mais sacos de pano com frases de escritores do que livros desses mesmos escritores; e até ouvi uma rapariga, com um exemplar de O Tatuador de Auschwitz na mão, comentar que nunca na vida pensara que, nos campos de concentração, os nazis deixassem os judeus fazer tatuagens. Depois disto, eu tinha mesmo de me afastar para esquecer a tragédia que aí vem — e também para ler, claro, enquanto ainda há bons livros.
Inicialmente reservámos um hotel discreto a norte; porém, nas vésperas da partida, o boletim meteorológico franziu a testa e acabámos por rumar ao Algarve, na esperança de, pelo menos aí, podermos estender-nos junto à piscina de livrinho na mão. Mas não foi bem assim.
Sabem aqueles carros com uma aparelhagem de tal modo potente que fazem tremer a rua inteira? Pois no hotel onde ficámos um altifalante do mesmo tipo cuspia música trepidante logo de manhã para uma aula de hidroginástica ministrada aos gritos por um instrutor de tanga com o volume no máximo (falo do microfone, nada de confusões); e, quando pensámos que a lição terminara e podíamos voltar à leitura, seguiram-se, a intervalos regulares, aulas de Zumba, Step, Body Vive, 3B (Bum Bum Brasil) e outras torturas, para as quais os hóspedes eram convocados com apelos de fazer a relva vibrar. Tivemos de fugir dali; e quando, já depois do jantar, regressámos ao hotel e fomos espreitar o bar, havia… karaoke!
Perguntei na recepção se era só eu que reclamava da barulheira permanente e de não haver um único sítio onde pudéssemos sentar-nos a ler em paz. Olharam para mim como se fosse doutro planeta. E talvez seja.
Num turismo rural nas Astúrias, os mesmos hóspedes que todas as noites ouviam música aos berros até às tantas queixaram-se de que não conseguiam dormir porque o galo os acordava muito cedo. Desconhecendo por certo o significado da palavra «rural», as autoridades mandaram desmantelar o galinheiro. Adeus, futuro.