Na montra

O MEU OTORRINO DISSE-ME QUE TENHO ouvidos de surfista e perguntou-me se praticava (ou tinha praticado) a modalidade; embora lhe tenha respondido que não, calculo que a maneira de ser dos meus ouvidos se deva à circunstância de eu ter passado muitas férias grandes com a cabeça debaixo de água (no mar ou na piscina) e de ter dado incontáveis mergulhos de pranchas. Lá em casa até se contava que, tinha eu sete ou oito anos, assustei a sério a mãe de uma amiga (que resolvera celebrar os anos na piscina do demolido Hotel Estoril-Sol) ao subir tranquilamente à prancha dos dez metros (que era a mais alta) e chamar toda a gente lá de cima apenas um segundo antes de saltar. A senhora ficou sem pinga de sangue, antevendo uma tragédia mais do que certa e perguntando-se naqueles segundos de paralisação como daria a triste notícia à minha família. E eu lembro-me de que a altura da prancha, para alguém que media pouco mais de um metro e vinte, impunha efectivamente respeito, mas pensar em descer dezenas de degraus, ainda por cima molhados, era bastante mais assustador.

Quando foi informada do sucedido, a minha mãe ficou numa fúria e deu-me uma reprimenda das antigas: falou-me dos perigos que corria com aquele tipo de atitudes temerárias e proibiu-me terminantemente de saltar de pranchas quando ela ou o meu pai não estivessem por perto. E, ainda eu estava a remoer aquele raspanete, a minha avó acrescentou, com a sabedoria do costume, que, para lá dos riscos que a minha mãe referira, teria sido igualmente dispensável gritar pelos outros meninos para que testemunhassem as minhas proezas, pois não havia nada mais feio do que uma pessoa pôr-se na montra.

O comentário foi talvez demasiado obscuro para uma catraia desejosa de se mostrar ao mundo e convencida de que na montra está o que merece ser visto; mesmo assim, deve ter ficado guardado algures no meu subconsciente porque veio inesperadamente à tona uns anos depois, quando o meu irmão regressou de uma viagem a Amsterdão e nos contou das prostitutas em vitrinas no Bairro da Luz Vermelha; e tornou-se, por fim, absolutamente transparente quando Umberto Eco definiu as redes sociais como montras em que se pavoneiam hordas de imbecis que, noutros tempos, quando tentavam abrir a boca, eram imediatamente silenciados.

Por falar em imbecis, no Brasil puseram um grupo de crianças e jovens para adopção a desfilar numa passerelle para um grupo de potenciais interessados em ser pais. Parece que não era a primeira vez. Só espero que, da próxima, não os ponham na montra. Adeus, futuro.