Os deuses das moscas
COM A IDADE, TENDEMOS A OLHAR PARA O PASSADO em jeito de balanço; mas, curiosamente, arrependemo-nos sobretudo do que não fizemos nem vamos já a tempo de fazer. Cá em casa, tentamos, mesmo assim, combater o vazio mostrando um ao outro o que foi a nossa vida antes de estarmos juntos e revisitando os lugares que nos marcaram. Já fomos, por exemplo, a Macieira de Cambra em busca de uma rapariga com quem o Manel dançara um Verão inteiro (e encontrámo-la, mas era tudo menos uma rapariga); e, mais recentemente, por causa de um casamento no Gerês, fizemos um desvio para eu ir ver o hotel das termas onde ele passava férias com os avós quando era adolescente.
Ainda hoje o Manel me fala com saudade daqueles Julhos pachorrentos, entre passeios ao rio Homem e jogos de cartas numa varanda larga onde as senhoras inventavam napperons e mexericos, enquanto os maridos, de barrigas fartas de tripas e francesinhas o ano inteiro, tratavam dos intestinos com as águas milagrosas de Caldelas. Nas redondezas, havia, ao que parece, uma imensidão de campos; e, por causa das vacas que ali pastavam, os hóspedes não conseguiam dar descanso aos mata-moscas, ameaçados pelas ferradelas das danadas que, não bastando zumbirem irritantemente, ainda tinham o hábito de pousar onde se sabe.
A rua das pensões — alcatroada, janota e com parquímetro — está hoje, pelos vistos, bastante diferente do que era; mas o hotel que espreita entre as árvores na subida continua perfeitamente reconhecível aos olhos do «rapaz» que, por ser o neto mais velho, tinha direito a ir de férias sozinho com os avós e por ali arranjava amigos e namoradas que, regra geral, eram fogos de Verão. Os campos, esses, desapareceram — perdidos para o cimento e o asfalto —, mas, num relvado à volta da piscina, as moscas ironicamente subsistiram. Tirando os camaleões, haverá alguém que as aprecie?
Contou no Twitter o escritor Francisco José Viegas que um casal amigo veio da Holanda com as filhas para passarem férias numa aldeia de Trás-os-Montes. As meninas, porém, exigiram ir-se embora ao fim de dois dias porque as pessoas dali eram bárbaras ao ponto de… matarem as moscas. No Facebook, um pai perguntava se havia maneira de livrar o filho dos piolhos sem ter de os matar. (Apeteceu-me responder que lhes pegasse com jeitinho e os pusesse na própria cabeça.) Enfim, com tanto tolo, não tarda alguém reclama um Serviço Nacional de Saúde para os insectos. Adeus, futuro.