Prefácio

O JORNALISTA JOAQUIM FERREIRA DOS SANTOS coligiu As Cem Melhores Crónicas Brasileiras. Foi como fazer uma lista de vinhos do Douro, tarefa feliz que acarreta o senão de se prescindir de excelentes. A colectânea tem uma introdução sobre a arte maior a que os brasileiros elevaram a crónica de jornal. O que é precioso, desde logo porque nos lembra a frase de um poeta, Manuel Bandeira, sobre um colega de literatura, cronista: «Rubem Braga é sempre bom, mas quando não tem assunto então é óptimo.» Parece uma incongruência porque o trabalho evocado deriva do latim chronica, que no dicionário de José Pedro Machado é «narração histórica, redigida segundo a ordem do tempo em que se deram os factos».

Entre as quatro crónicas escolhidas do Braga há uma intitulada Homem no Mar. Que tempo? Que factos? E do homem, investiguei eu, só podia ser um pontinho nadando. Já estive em Ipanema, pescoço esticado para o cimo do edifício Barão de Gravatá, morada de Rubem Braga. No terraço, cobertura, como por lá lhe chamam, no décimo terceiro andar, o cronista fez um jardim e horta de pitangueiras, coqueiros e outras árvores de fruto para atrair pássaros — o seu célebre «quintal aéreo». Ora, até ao sujeito da crónica havia ainda a larga praça do General Osório, depois um quarteirão, a avenida litorânea, a praia e, enfim, a cabeça daquele homem no mar. Mais próximo, Braga via o quotidiano na favela do Cantagalo, vizinha. E, no entanto, numa esquina da praça, saquei do meu missal de peregrinação, Rubem Braga — 200 Crônicas Escolhidas, procurei a crónica que fora escrita meio século antes e reli: «De minha varanda vejo…» até ao parágrafo final: «Não desço para esperá-lo na praia e lhe apertar a mão; mas dou meu silencioso apoio, minha atenção a esse desconhecido, a esse nobre animal, a esse homem, a esse correto irmão.» No jornal, uma mera coluna.

Retirando isso, um poema, como o poeta Carlos Drummond de Andrade fazia uma crónica de uma pedra no meio do caminho que tinha uma pedra no meio do caminho. Mas nem todos os cronistas vão por aí, pelo não-assunto. Ah, mas deixem-me contar-vos ainda outra crónica de Rubem Braga, aquela da Aula de Inglês, também sem sujeito! Não, é melhor não? Está bem, falemos então de outras funções de crónica. Uma crónica, lembra Joaquim Ferreira dos Santos, pode parecer uma página financeira de jornal de negócios, como Machado de Assis quando relata, ainda no século XIX, o seu passeio pela antiga Baixa do Rio de Janeiro. Matutando sobre as variações das taxas de câmbio, na rua da Alfândega, um burburinho anunciou que a taxa baixara a oito. No virar da esquina, nas montras dos cambistas, o cronista levantou os olhos para o nicho de São João, na fachada da igreja da Cruz dos Militares, e reparou em três pombas. Chamou à crónica Os Câmbios e as Pombas, e quem sou eu para recontar Machado de Assis? As crónicas são para o saborear do leitor e servidas pelo próprio chef.

Saltando os tempos. Uma crónica pode ser uma conversa de botequim, como usava Aldir Blanc, desaparecido ainda há pouco, vítima da COVID-19. Ou pode ser abusada na função de procurar namoradas, como fazia Vinicius de Moraes. Pode ser sobre o falecimento da cachorrinha Mila, contada no pranto do seu dono Carlos Heitor Cony. Uma crónica pode ser tudo, porque deve abusar da liberdade. Isto é, pode quase tudo mas com um interdito: não pode nunca é, como lavrou o referido Carlos Heitor Cony, deixar de expor o cronista: «O personagem único da crónica é a primeira pessoa do singular.» O euzinho, um euzão, e tanto melhor se for subtil e fingir perder-se entre o que testemunha.

E aqui chegamos a este livro de crónicas, de uma autora, editora de palavras dos outros, que as escreveu enquanto compaginou no Diário de Notícias, entre outros, com Ruy Castro. Maria do Rosário Pedreira — e Ruy Castro, António Araújo, Rogério Casanova… — foi escolhida por uma direcção efémera do jornal (eu e a Catarina Carvalho) que fez questão em pagar pouco mas não poupar em cronistas que tinham para dizer-se. A Maria do Rosário Pedreira aceitou porque tinha uma fisgada, fui descobrindo: contar a sua causa de revolucionária conservadora, que ela, como numa litania, lembrava, em cada crónica, em todas, na última linha: «Adeus, futuro.»

E, em cada sua crónica, o sempiterno «eu». Nas páginas deste livro são dezenas as suas auto-apresentações. Olá, eu sou a Maria do Rosário, «nunca tracei duas paralelas que não se encontrassem». Olá, «nesse tempo, só começava a cheirar a lápis e cadernos novos lá para Outubro». Olá, como sabe, leitor, «irrita-me um certo fundamentalismo na defesa dos direitos dos animais (já há quem reprove a leitura de Moby Dick, haja paciência)».

E, quando não era a sua menstruação, ela apresentava a da irmã, «quando ela gania de tempos a tempos». Ou então puxava pelas memórias da sua papelaria e outras infantilidades, «a cola Cisne, os guaches Pelikan, o papel Cavalinho e umas borrachas muito ásperas como com o Ford Anglia em miniatura na colecção de Dinky Toys do meu irmão ou o escafandro do Action Man»… E eu, leitor, convocado pela simpatia dela, apanhei-me a responder-lhe educadamente: olá, eu sou o José, e o meu Dinky Toy preferido era um Chevrolet Bel Air, igual ao autêntico do meu pai. E eu, o meu euzinho, iria por aí fora, não fosse isto ser, não uma crónica minha, mas o prefácio das crónicas dela.

Numa crónica de Nelson Rodrigues, ele diz que sai de casa, o tempo é o presente do indicativo como se fosse acompanhado pelo olho do telemóvel que ainda não existia. Diz que entra no botequim habitual, sai, e antes de virar a esquina pára e exclama: «Minto.» E acrescenta que, afinal, «não entrei no boteco». Eu também parei, baixei o livro (talvez fosse a recolha de crónicas O Óbvio Ululante: Primeiras Confissões, não garanto). Estava em êxtase. O Nelson, esse, o Nelson Rodrigues, estava a falar comigo.

Tanto falava que, ao dar conta ter-se enganado, emendou! Que delicadeza! Depois retomou a crónica e voltou à história que, confesso, não me lembro qual. Mas aquele diálogo (e houve muitos mais) ele fez o favor de o ter comigo. Calçou-me chuteiras imortais. E, reparem, se não me lembro do livro de crónicas em que a li, pois foi livro, calculem se a parceria tivesse sido feita em papel de jornal e em balcão de boteco, quando eu lia o Última Hora!, jornal que nunca li, em que ele diariamente cronicava na década de cinquenta, no Rio. O choque, o fascínio.

Logo na sua primeira crónica no DN, Maria do Rosário Pedreira usou o mesmo saudável truque, engatar o leitor. Ela escreveu sobre um «livro de capa verde que dizia nas costas “Ó Pedro, que é do Livro de Capa Verde que te deu o Avô a guardar?”». Eu acabara de receber o texto, repeti a frase aspada em voz alta, senti o rolar redondo daquelas palavras e abriu-se-me uma qualquer memória. Respondi com a meia-voz do Pedro: «Já o dei ao Jorge a guardar.» Eu estava no meu gabinete, olhei à volta, estava sozinho, repeti a frase, pesei-lhe a sonoridade e só então encontrei a razão daquele diálogo: também tinha lido a Cartilha Maternal, de João de Deus. Leitor, digo eu agora: tão bom! Aconteceu a cronista ter puxado conversa comigo e eu respondi-lhe. Abrir o diálogo, também é para isso que os cronistas servem.

E as crónicas de Maria do Rosário Pedreira foram por aí fora, durante um ano e meio. Por vezes só pretexto para meter um parágrafo que era uma pérola para o fio em que este livro se transformou.

Por exemplo: «Já eu era estudante universitária, e de Letras, quando tive de responder a um apertado inquérito sobre as minhas leituras numa livraria-galeria das Avenidas Novas para conseguir levar para casa a maravilhosa Comunidade, de Luiz Pacheco, ainda numa edição agrafada e em mau papel. Ao que parece, era o último exemplar que existia na loja, e o livreiro decidira que só o venderia a quem o merecesse (ufa!).»

Outro exemplo: «Uma amiga contou-me que, por ser filha única, em pequenina brincava muitas vezes ao espelho para fingir que estava mais alguém com ela — coisa tão triste que nem consigo figurar.» E outro: «Um psicólogo clínico confidenciou-me que os seus jovens pacientes sabem na ponta da língua o significado de todos os emojis; mas, curiosamente, têm dificuldade em identificar, numa série de fotografias, se o sujeito está zangado, alegre, assustado, aborrecido ou boquiaberto de espanto.» Enfim, alertas de uma lúcida amarga que decidiu contar-se subordinada ao título Adeus, Futuro. Ora, o papel de um prefácio pode ser confortar: Maria do Rosário, isto podia estar pior, podia estar com tudo a correr bem.

Maria do Rosário Pedreira, queria lembrar-lhe o que já sabe. O autor com que abri este prefácio, Joaquim Ferreira dos Santos, ilustre coleccionador de crónicas, também escreveu o livro Feliz 1958: O Ano Que Não Devia Terminar. É sobre um ano formidável para os brasileiros. Em 1958, o Brasil foi campeão mundial de futebol pela primeira vez; país subdesenvolvido, construía a nova capital, Brasília, traçada no meio do mato pela modernidade de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa; a partir de um mito grego, o filme Orfeu do Carnaval ganhou a Palma de Ouro em Cannes e o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro; o país ouvia pela primeira vez a batida de João Gilberto que antecipava a Bossa Nova; Jorge Amado publicava Gabriela, Cravo e Canela

E tudo aconteceu em país democrático, com senadores a discutir política nos bancos de jardim do Palácio do Catete, na capital ainda no Rio de Janeiro, e com a estranheza que hoje causariam, não tanto os seus panamás na cabeça e fatos brancos de linho, mas por serem políticos sem guarda-costas. Era esse o ponto a que eu queria chegar: em 1958, os cronistas brasileiros não se deram conta da bênção que era os políticos não precisarem de guarda-costas. Daí que pontuar um ano de crónicas com o amargo Adeus, Futuro pode ser um bom augúrio.

E, se não for, resta-nos ao menos reencontrar o rol de palavras necessárias que este livro leva. «“Fraldisqueira”, “lambisgóia”, “sirigaita”, “pândego”, “rabina”, “mafarrico”, “fedúncia”, “flausina”, “pelém”, “pífio”, “topete”, “empáfia”, “salamaleque”, “frioleira”.» Que só uma destas palavras seja levada ao futuro, eis um belo propósito para a campanha de uma cronista.

JOSÉ FERREIRA FERNANDES