HENRY LOUIS GATES JR.
Na condição de professor universitário de literatura e historiador cultural que passou toda uma vida pesquisando histórias perdidas, esquecidas ou não comentadas de afro-americanos, tive a honra de trabalhar como consultor no filme Doze anos de Escravidão, de Steve McQueen, com certeza um dos filmes mais vívidos e autênticos sobre a escravidão levados ao cinema. Em sua mistura de realismo tátil e sensorial com maravilhosas técnicas cinematográficas modernas, este filme é o completo oposto de Django livre, uma narrativa pós-moderna, faroeste espaguete que ocupa o polo oposto daquilo que podemos pensar como a “escala da representação”.
Nenhuma história se conta sozinha; até mesmo histórias “reais” precisam ser recriadas dentro dos limites e das possibilidades formais oferecidas por um meio, e isso acontece tanto em filmes ficcionais quanto em documentários. Ambos os filmes citados oferecem interpretações instigantes da terrível experiência humana da escravidão, mesmo se seus modos de narrar são diametralmente opostos, oferecendo aos expectadores — sobretudo a professores e estudantes — uma rara oportunidade de refletir sobre de que modo a maneira que o artista escolhe para contar uma história — forma, ponto de vista e postura estética que ela ou ele escolhe — afeta nossa compreensão do assunto que é sua matéria-prima.
Cento e sessenta anos antes de Steve McQueen fazer qualquer escolha artística, Solomon Northup, o narrador e protagonista de Doze anos de Escravidão, sentiu uma profunda necessidade de simplesmente contar sua história de forma pública — e de fazer com que as pessoas acreditassem que aquilo que acontecera com ele era verdade. Pense no que deve ter sido para Solomon, naquelas primeiras desorientadoras horas na escuridão profunda, quando, na “masmorra” que era a casa de escravos de Williams, perto da Sétima Avenida de Washington, ele precisou encarar a traição que lhe roubara toda uma vida de liberdade, jogando-o num pesadelo de servidão. “[Eu] me vi sozinho, na mais completa escuridão, preso a correntes”, Northup escreveu, e “nada quebrou o silêncio opressivo, a não ser pelo clangor de minhas correntes, sempre que eu ousava me mexer. Falei em voz alta, mas o som de minha voz me surpreendeu.”
Não apenas Northup passou a ser, de repente, um estranho para si mesmo, num local ainda mais estranho, como, tendo seu dinheiro e seus documentos atestando o status de negro livre sido roubados, e com uma surra espreitando qualquer tentativa de insistir na verdade, ele foi forçado a assumir um novo e aterrorizante papel, o do paradoxal “escravo livre”, sob o falso nome de “Platt Hamilton”, um suposto “fugitivo” da Geórgia. Que tudo isso tenha acontecido na cara do Capitólio dos Estados Unidos — que, algemado, Northup tenha sido levado pela mesma Pennsylvania Avenue onde, apenas cem anos depois, o dr. King seria ouvido dando seu discurso “Eu tenho um sonho”, algumas décadas antes do presidente Barack Obama e sua mulher, Michelle, desfilarem na esperança de realizar esse sonho —, deve ter dado à odisseia imposta a Northup um gosto ainda mais amargo. “Só posso comparar meus sofrimentos,” ele relembra, do primeiro açoite que recebeu, “às agonias flamejantes do inferno!”.
Mas, diferentemente do Inferno de Dante, o ponto avançado ao qual Northup foi forçado a descer não era um espaço metafórico repleto de círculos que abrigavam os condenados, mas os alagadiços, matas e algodoais do Sul. “Nunca soube de nenhum escravo que tenha escapado com vida de Bayou Boeuf”, Northup escreveu. Depois disso, a força motriz de sua vida — e de sua história — poderia ser resumida numa só questão: Seria ele a exceção?
Eis os fatos.
QUEM FOI SOLOMON NORTHUP?
Solomon Northup passou os primeiros 33 anos de sua vida como um homem livre no norte do estado de Nova York. Ele nasceu no vilarejo de Schroon (mais tarde rebatizado de Minerva), nas montanhas Adirondack, no dia 10 de julho de 1807 (seu relato diz 1808, mas evidências sugerem a outra data). Quando criança aprendeu a ler e escrever observando seu pai, Mintus, um ex-escravo que acabou por comprar terreno suficiente em Fort Edward para ser qualificado a votar (direito que, em muitos estados, durante os primeiros anos da República, era reservado aos proprietários de terra). A mãe de Solomon, Susannah, era uma “quadrarona” possivelmente nascida livre. A “paixão” de Solomon, ele mesmo disse, era “tocar violino”.
Casado aos 21 anos, Northup e sua mulher, Anne Hampton (filha de um negro livre que também era descendente de brancos e índios), tiveram três filhos: Elizabeth, Margaret e Alonzo. Em 1834, estabeleceram-se em Saratoga Springs, onde Solomon teve vários trabalhos ocasionais, incluindo condução de jangadas, corte de lenha, construção de ferrovias, manutenção e reparos do canal, agricultura e, na época de férias, nos hotéis locais (durante um tempo ele e sua mulher viveram e trabalharam no United States Hotel). Sua “paixão”, o violino, também se tornou uma maneira de ganhar dinheiro, e sua reputação cresceu.
Em março de 1841, Northup foi atraído para longe de sua casa por dois homens brancos que usavam os nomes Merrill Brown e Abram Hamilton e disseram ser membros de um circo baseado em Washington que precisava de músicos para uma turnê. Na cidade de Nova York, Brown e Hamilton convenceram Northup a partir com eles numa jornada ao sul, e, chegando a Washington, no dia 6 de abril de 1841, o trio se hospedou no Gadsby’s Hotel. No dia seguinte os dois homens deixaram Northup tão embriagado (ele sugere ter sido drogado) que, no meio da noite, ele foi carregado de seu quarto por vários homens que insistiam que ele fosse até um médico. Em vez disso, quando Northup recobrou os sentidos, viu-se “acorrentado”, na casa de escravos de Williams, e seu dinheiro e os documentos atestando sua liberdade haviam desaparecido. Tentando explicar seu caso para o célebre comerciante de escravos James H. Birch (também chamado de Burch), Northup foi espancado. Disseram-lhe que era, ne verdade, um escravo fujão da Geórgia. O preço que Birch pagou a Brown e Hamilton por seu achado foi 250 dólares.
Embarcado por Birch no brigue Orleans sob o nome de Plat Hamilton (também grafado Platt), Northup chegou a Nova Orleans em 24 de maio de 1841 e, após uma epidemia de varíola, foi vendido pelo sócio de Birch, Theophilus Freeman, por 900 dólares. Northup estava prestes a passar seus doze anos de escravidão na região de Bayou Boeuf, na Louisiana. Ele teve três donos: o bondoso fazendeiro William Prince Ford (1841-2), o carpinteiro beligerante John Tibaut (também grafado “Tibeats”; 1842-3) e o ex-feitor transformado em cultivador de algodão Edwin Epps (1843-53).
Ford deu a Northup a maior liberdade que teve, permitindo que trabalhasse em seus moinhos. Duas vezes Northup e Tibaut desentenderam-se sobre o trabalho, sendo que da segunda vez Northup chegou tão perto de estrangulá-lo (Tibaut fora atrás dele com um machado) que acabou fugindo para o pântano Great Cocodrie (Pacoudrie). Embora com tendência à bebedeira, Edwin Epps era brutalmente eficiente com o chicote sempre que Northup se atrasava para ir ao campo, quando era imperfeito em seu trabalho (Northup tinha várias habilidades, mas colher algodão não estava entre elas), quando se recusava a açoitar outros escravos como capataz de Epps, ou quando sobressaía com seu talento depois de Epps lhe comprar um violino a fim de aplacar a fúria de sua mulher, Mary Epps.
Em 1852, Epps contratou um carpinteiro canadense chamado Samuel Bass para construir sua casa. Opositor da escravidão, Bass concordou em ajudar Northup postando para ele três cartas endereçadas a contatos em Nova York. Ao receber sua cópia, os lojistas William Perry e Cephas Parker entraram em contato com a esposa de Solomon e com o advogado Henry Bliss Northup, um parente do antigo dono do pai de Solomon. Com apoio bipartidário, incluindo uma petição e seis declarações juramentadas, Henry Northup conseguiu entregar uma petição ao governador de Nova York, Washington Hunt, a fim de que fosse designado o agente que deveria efetuar o resgate. Em 3 de janeiro de 1853, Henry Northup chegou à fazenda de Epps com o xerife da paróquia de Avoyelles, Louisiana. Não foi necessário fazer perguntas. Um advogado local, John Pamplin Waddill, havia apresentado Henry Northup a Bass, que o levou ao escravo “Platt”. A prova consistiu no abraço dos dois.
Viajando sozinhos de volta para casa, Henry e Solomon Northup pararam em Washington, em 17 de janeiro de 1853, para fazer com que o comerciante de escravos James Birch fosse preso sob a acusação de sequestro. Como Solomon não tinha o direito de testemunhar contra um homem branco, Birch foi libertado. Solomon reencontrou a família em Glens Falls, Nova York, em 21 de janeiro de 1853.
Nos três meses seguintes, ele e seu editor, David Wilson, um advogado branco de Whitehall, Nova York, redigiram o livro de memórias de Northup, Doze anos de Escravidão. O livro foi publicado em 15 de julho de 1853 e vendeu 17 mil exemplares nos primeiros quatro meses (quase 30 mil até janeiro de 1855). “Embora jornais brancos abolicionistas já tivessem anteriormente alertado sobre os perigos da escravidão para cidadãos afro-americanos livres e publicado breves relatos de sequestros, a narrativa de Northup foi a primeira a documentar um caso desses em detalhes como os que encontramos em um livro”, Brad S. Born escreveu em The Concise Oxford Companion to African American Literature [Coletânea concisa da Oxford de literatura afro-americana]. Com ênfase na autenticidade, Doze anos de Escravidão proporcionou a seus leitores contemporâneos um relato detalhado da escravidão no Sul, incluindo as táticas violentas de proprietários e feitores usadas para forçar os escravos a trabalhar e os assédios sexuais e as crueldades ciumentas que as mulheres escravas padeciam por parte de seus senhores e das esposas deles.
Desde então, foi “atestado” por “um grande número de especialistas que investigaram processos jurídicos, formulários manuscritos de censo, diários e cartas de brancos, registros locais, jornais e diretórios de localidades”, escreveu a autoridade máxima sobre a veracidade das narrativas de escravos, o falecido historiador de Yale John W. Blassingame, em seu ensaio definitivo de 1975, “Utilizando o testemunho de ex-escravos: abordagens e problemas”, em The Journal of Southern History [Jornal da história sulista].
Em 1854, o livro de Northup levou à prisão de seus sequestradores, Brown e Hamilton. Seus nomes verdadeiros eram, respectivamente, Alexander Merrill e James Russell, ambos de Nova York. Embora Solomon tenha testemunhado no julgamento deles no condado de Saratoga, o caso se arrastou por três anos e acabou sendo engavetado pela promotoria em 1857, o mesmo ano em que a Suprema Corte dos Estados Unidos comunicou sua decisão para o caso Dred Scott contra Sanford, que em parte negava que pessoas negras fossem cidadãs americanas (e, portanto, não podiam ser autores de processos na Suprema Corte).
Um homem livre resgatado da escravidão, Solomon Northup permaneceu ativo no movimento abolicionista; deu palestras por todo o nordeste americano; montou e atuou em duas peças baseadas em sua própria história (a segunda, em 1855, intitulava-se A Free Slave [Um escravo livre]); e era conhecido por ajudar escravos fugitivos na Underground Railroad.a Até hoje, a data, a localização e as circunstâncias de sua morte permanecem um mistério. A última aparição pública de Northup foi em agosto de 1857, em Streetsville, Ontario, Canadá. O último contato com outra pessoa de que se tem notícia foi uma visita ao reverendo John L. Smith, um pastor metodista e colega da Underground Railroad, em Vermont, algum momento após a Proclamação de Emancipação, provavelmente em 1863.
UMA HISTÓRIA “AMERICANA”
Desde que D. W. Griffith apresentou seu escandaloso embranquecimento — na verdade uma das maiores distorções históricas ocorridas — da história da escravidão e de sua abolição em O nascimento de uma nação, filme mudo de 1915, foram pouquíssimos os filmes que compreenderam, ou sequer tentaram expressar, a verdade sobre a escravidão americana em toda a sua complexidade. Daqueles que tomaram a escravidão como tema, poucos são dignos de reconhecimento. Porém, os testemunhos pessoais bem elaborados dos afro-americanos que passaram períodos como escravos são ao mesmo tempo narrativas instigantes (muitas, como os de Solomon Northup e Frederick Douglass, tornaram-se best-sellers instantâneos) e constituem matéria-prima fundamental ao completo entendimento da história americana, contada do ponto de vista das vítimas de uma das instituições mais odiosas de nosso país.
As histórias que documentam o “pecado original americano” não podem ser suficientemente contadas e recontadas. Steve McQueen, britânico e negro, deve ser celebrado por se voltar a uma de nossas narrativas canônicas de escravos (101 foram publicadas entre 1760 e o término da Guerra Civil) e trazê-la à telona de forma tão vívida, sensível e brilhante.
O que faz de Doze anos de Escravidão, o filme, especialmente digno de atenção é o mesmo que o público da época de Northup apreciou em sua história: o retrato sóbrio da escravidão americana tal como era de fato, misturado com temas universais de identidade, traição, brutalidade e a necessidade de manter a fé a fim de sobreviver a embates com o Mal. Sobretudo, Northup nos relembra a natureza frágil da liberdade em qualquer sociedade e a realidade dura de que, independentemente de quaisquer limites que existissem entre os assim chamados estados livres e os estados escravagistas em 1841, nenhum homem, mulher ou criança negra estava definitivamente a salvo.
Doze anos de Escravidão tem uma trajetória diferente de qualquer outra das narrativas de escravo anterior à Guerra Civil, que normalmente retratam o caminho do protagonista da escravidão à liberdade. Sua linha condutora vai na direção contrária, da liberdade à escravidão, apresentando tanto uma vida individual quanto uma alegoria para a própria escravidão. Desse modo, desafia a história americana padrão (e gratificante) de mobilidade social, de crescimento ao melhor estilo “luck and pluck” e “rags to riches”.b Em vez disso, a trajetória de Northup vai de cima para baixo — descendo de Nova York para Louisiana — e, portanto, representa uma inversão da literatura popular americana, o que, para minha estupefação, faz com que seja ainda mais inquietante o nome do lugar onde Northup foi sequestrado ser Gadsby’s Hotel (eu sei: quando li pela primeira vez, também pensei em Gatsby). Em sua prefiguração da contranarrativa, do isolamento na escuridão que Ralph Ellison mais tarde tornou célebre em seu romance ímpar, Homem invisível (1952), Doze anos de Escravidão nos dá a alma da literatura e da cultura afro-americana, o “som da vida” no “silêncio opressivo”.
“um homem — todo e qualquer
centímetro dele”
Em muitas histórias clássicas, o protagonista funciona como um guia para nós, como os olhos, orelhas, nariz, mãos e línguas do leitor, aquele através de quem pensamos e sentimos. Em Solomon Northup, diferentemente até mesmo do maior escritor e homem público afro-americano de sua época, o ex-escravo Frederick Douglass, a plateia tem um guia que está tão surpreso, chocado e horrorizado pela escravidão quanto nós poderíamos ter ficado, pois partimos do mesmo ponto: a liberdade. Por vezes a história de Northup parece quase bíblica, estruturada como uma narrativa de queda e ressurreição de um protagonista que, quando sequestrado, tinha 33 anos, assim como Cristo. Porém, diferentemente de um Deus humilde apresentando-se na forma de um homem, Northup era alguém que foi forçado a levar a vida de um escravo, agrilhoado ao inferno da escravidão por mais de uma década.
O que acontece neste livro — e no filme de Steve McQueen — é assustador, instigante e inspirador, porque, como um resenhista de uma das montagens teatrais do próprio Northup para sua narrativa, em Syracuse, Nova York, escreveu no Syracuse Daily Journal, em 31 de janeiro de 1854: “Ele é um homem — todo e qualquer centímetro dele”. Ainda que, por causa da cor da pele, todo e qualquer centímetro da humanidade de Northup estivesse sujeito a ser falsificado, roubado, castrado e negado, e não houvesse praticamente nada que ele pudesse fazer a respeito. Na verdade, Northup rapidamente aprendeu que protestar contra sua escravização representava uma ameaça ainda maior à sua sobrevivência, porque, para aqueles que o negociaram e que se tornaram seus donos, ele valia bastante dinheiro como escravo, o qual simplesmente desapareceria se Northup pudesse confirmar seu status de homem livre.
norte e sul – estado livre
e estado escravagista
Ao mesmo tempo, é importante não confundir as diferenças entre Norte e Sul, estado livre e estado escravagista, antes da Guerra Civil. Conforme Ira Berlin escreve em seu livro Slaves Without Masters [Escravos sem senhores], de 1974, em nenhum momento antes do término da Guerra Civil o número de negros livres em Nova York ultrapassou o número daqueles que viviam no Sul, fato que a maioria de nós hoje acha surpreendente e um tanto contraditório. E, embora houvesse diferenças importantes entre as liberdades que Solomon Northup podia exercer como homem livre em Nova York e a de seus semelhantes livres na Carolina do Sul ou Louisiana, por exemplo, havia uma ampla e persistente discriminação racista no Norte. Em muitos estados, restrições quanto ao voto e regimes segregacionistas antecipavam a era de segregação legalizada Jim Crowc que começaria nos anos 1890 e que tornou a verdadeira liberdade um mito para afro-americanos até o movimento pelos direitos civis dos anos 1950 e 1960.
Também surpreendentemente, Ira Berlin me lembrou, numa troca de e-mails, que, embora lhes fossem negados “direitos políticos e civis”, “negros livres do Sul” eram “muito mais prósperos” (“abertamente praticando ofícios especializados” e muitas vezes “tendo posses”) que seus colegas do Norte, os quais, a despeito de sua “grande tradição cívica e política”, eram, na maioria das vezes, “pobres”.
Ainda assim, por mais que Norte e Sul se afastassem nos anos pré-guerra, tornava-se cada vez mais tentador para caçadores de escravos se aventurar no Norte, para além da Linha Mason-Dixon,d a fim de roubar cidadãos negros livres sob o pretexto de recuperar “escravos fugitivos” (essa prática era autorizada pela Lei do Escravo Fugitivo de 1850). A linha de pensamento da maior parte desses criminosos se resumia no seguinte fato notório: o comércio de escravos era um negócio extremamente lucrativo, sobretudo depois que importá-los do exterior foi proibido pelo Congresso (graças à Constituição) em 1807, ano do nascimento de Northup.
A maior parte desses sequestros compreensivelmente ocorria ao longo da Linha Mason-Dixon, e não onde Northup morava, em Saratoga Springs, no norte do estado de Nova York. Mas quanto mais ao sul ele ia com Brown e Hamilton, mais arriscada ficava a aventura — riscos sobre os quais Northup fora avisado antes de seu sequestro, conforme ele mais tarde admitiu. Em função da natureza secreta desse tipo de crime, não há estimativas oficiais do número de negros livres que foram sequestrados e escravizados nos Estados Unidos (abolicionistas estimam milhares por ano, ao passo que Harriet Beecher Stowe, autora de A cabana do pai Tomás, a quem Northup dedicou seu livro, estimou em “centenas [...] todo o tempo”), mas não era incomum, e continuou até a Guerra Civil, conforme Paul Finkelman e Richard Newman afirmam na Encyclopedia of African American History, 1619-1895: From the Colonial Period to the Age of Frederick Douglass [Enciclopédia da História afro-americana, 1619-1895: Do Período Colonial à era de Frederick Douglass].
SIGNIFICAÇÃO – E SEU SIGNIFICADO
O que faz da adaptação de Steve McQueen e do roteirista John Ridley de Doze anos de Escravidão tão poderosa é que ela chega mais perto que qualquer outra representação da verdadeira intenção do livro original de Northup e das turnês de leitura que ele fez pelo estado de Nova York e pela Nova Inglaterra nos anos que se seguiram. Ao ler Northup hoje, imediatamente se percebe quão determinado ele estava em provar a veracidade da sua história (para isso, até mesmo inclui detalhes sobre o funcionamento de engenhos de açúcar). Se tal abordagem se adequasse às convenções teatrais da época, Northup talvez tivesse se aposentado como um homem rico. Como não era esse o caso, as tentativas que ele fez de traduzir sua história ao palco foram bem menos que estelares, ainda que tivessem Northup no papel principal.
Desse jeito, Chiwetel Ejiofor, fazendo o papel de Solomon Northup no filme de Steve McQueen, pode cumprir — e cumpre — a função de forma mais adequada. Em vez de um melodrama, nós, a plateia, somos deixados com as assombrosas imagens do sofrimento eterno implícito na servidão perpétua, hereditária, que o diretor de fotografia Sean Bobbitt captura de forma certeira. E há as atuações intimistas e surpreendentemente vívidas e realistas dos personagens centrais do filme: a interpretação incrivelmente complexa de Michael Fassbender do proprietário de escravos conflituoso e sádico Edwin Epps; a recriação de Lupita Nyong’o’ da escrava Patsey; o inocente e multidimensional objeto de desejo, culpa, ódio a si mesmo e sadismo de Epps; o John Tibeats de Paul Dano, o invejoso e inseguro carpinteiro que anseia por manter seu status; o heroico canadense Samuel Bass, de Brad Pitt, que intervém enfim para contatar os amigos de Solomon lá no Norte; e o grande Chiwetel Ejiofor, uma revelação na tela cuja personificação de Solomon arrebatou os críticos.
Alguns perguntarão: tudo é factual na versão cinematográfica de Doze anos de Escravidão? Minha resposta é sim e não, pois o próprio Solomon Northup mudou alguns fatos, inclusive as datas de seu nascimento e casamento, a grafia de alguns nomes e, numa antiga versão teatral, até mesmo tornou Samuel Bass mais um ianque do que um canadense. Isso sugere uma verdade mais profunda sobre a cultura afro-americana, sobre a qual escrevi durante toda a minha carreira: que a significância ou a significação negra, por sua própria natureza, é um ato de repetição e revisão, de evocação e improvisação, de forma que para mim a questão muito mais relevante a ser exigida de qualquer adaptação de Doze anos de Escravidão não é se é estritamente factual, mas se é verdadeira.
A isso digo que sim, sem dúvida, e, ao assistir ao filme, cada um de nós deve testar seu comprometimento com a liberdade, assim como as plateias da época de Northup foram testadas (embora com muito mais a perder). À medida que o filme se desenrola, somos nós a desejar primeiro que ele sobreviva e, em seguida, que recupere sua liberdade. Somos nós que tememos por sua vida. Somos nós que ficamos confinados, como ele ficou. Em nossas esperanças, somos nós que emulamos os peticionários e os signatários das declarações que testemunharam em prol de seu status como homem livre, incluindo sua esposa, Anne. E, ao seguir sua história até o fim, somos nós que ficamos sentados à sombra, determinados a reclamar o que fora perdido, na medida em que isso é possível, tendo sido roubados doze anos de nossas vidas.
COMPLETAMENTE ARREBATADO
Alguém questionou a autenticidade do livro de Northup quando de sua publicação? Bem ao contrário. Na verdade, o mais “representativo” dos homens negros do século XIX, Frederick Douglass, escreveu: “Achamos que será difícil qualquer pessoa que pegue o livro num ânimo cândido e imparcial depô-lo até que o tenha terminado” (Frederick Douglass’ Paper, 29 de julho de 1863). Sobre a história de Northup nos palcos, o Frederick Douglass’ Paper também teve o seguinte a dizer, nove anos mais tarde: “Sua narrativa é cheia de interesse romântico e aventuras dolorosas, e dá uma visão clara sobre o lado prático e as belezas da Escravidão americana […]. É um deleite ouvi-lo relatar algumas aventuras arriscadas com tanto sans [sic] froid que a plateia fica totalmente arrebatada e a ‘casa vem abaixo’”.
Digo-lhes uma coisa: Quando as luzes foram acesas no cinema em que vi Doze anos de Escravidão pela primeira vez, eu, assim como Frederick Douglass, me senti “totalmente arrebatado” e cheio de admiração pelo resultado espetacularmente cinematográfico da colaboração entre o diretor do filme, Steve McQueen, britânico e negro, e seu roteirista, John Ridley, afro-americano.
O último fato surpreendente que vou partilhar sem entregar o filme: seria possível sentar num cinema escuro e assistir a Doze anos de Escravidão de Steve McQueen, com seus 133 minutos de duração, quase 50 mil vezes no tempo que Solomon passou como escravo. A diferença entre o tempo que nós passamos no escuro e o dele: você é livre para ir embora a qualquer momento.
SUGESTÕES DE LEITURA
A melhor biografia, atualmente (e fonte indispensável para mim durante a redação deste ensaio), é Solomon Northup: The Complete Story of the Author of Twelve Years a Slave [Solomon Northup: A história completa do autor de Doze anos de Escravidão], por David A. Fiske, Clifford W. Brown Jr. e Rachel Seligman. Gostaria de agradecer aos autores por dividir comigo uma cópia de seu manuscrito antecipadamente e por trabalhar com tanto afinco para estabelecer de forma correta tantos dados quanto possível. Os fatos, números, citações, nomes e datas que vocês encontraram são inestimáveis — os descendentes vivos que vocês conectaram com a história de suas famílias, preciosos.
a Rede de túneis subterrâneos e clandestinos existente nos Estados Unidos no século XIX que era usada por escravos a fim de fugir para os estados do Norte ou para o Canadá. (N. T.)
b Referências a obras de literatura popular abundantes no século XIX em que os protagonistas se alçavam da miséria à riqueza. (N. T.)
c Assim são chamadas as leis que vigoraram em estados sulistas de meados do século XIX a 1964 que garantiam a segregação racial na prática, prevendo, por exemplo, bancos de ônibus especiais para negros. (N. T.)
d Linha demarcatória estabelecida ainda na época colonial que separou os estados do Norte e do Sul, tornando-se sinônimo das diferenças culturais e políticas entre as duas áreas. (N. T.)