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Evolução e comunicação
A emoção é completamente negra como a razão é grega.
Leopold Senghor
Ao tentar rejeitar a avaliação à qual a realidade negra foi submetida, a Negritude adotou a tradição maniqueísta do pensamento europeu e a infligiu em uma cultura que é mais radicalmente não maniqueísta. Ela não só aceitou a estrutura dialética da confrontação ideológica europeia, mas também pediu emprestados os próprios componentes de seu silogismo racista.
Wole Soyinka. Myth, Literature and the African World [Mito, literatura e o mundo africano].
A maneira como os modos de pensamento mudaram no tempo e no espaço é um tema sobre o qual a maioria entre nós já especulou em algum momento. Pode ter sido para chegar a uma ideia do motivo pelo qual os indianos se comportam como se comportam (ou como nós achamos que eles o fazem), para saber por que a arte africana difere daquela da Europa Ocidental, ou (quando olhamos o quadro em uma perspectiva histórica) o que se encontra por trás dos desenvolvimentos no Oriente Médio Antigo, na Grécia ou na Europa Renascentista, onde novas maneiras de pensar parecem ter substituído as maneiras antigas. E os mesmos tipos de pergunta fizeram surgir muita discussão entre antropólogos, sociólogos, psicólogos, historiadores e filósofos sobre a transição da magia para a ciência, o desenvolvimento da racionalidade, e uma série de tópicos semelhantes. Mas o problema ficou ainda mais complexo em virtude das categorias e do arcabouço que foram usados.
O problema com as categorias é que elas estão enraizadas em uma divisão nós/eles que é tanto binária quanto etnocêntrica, cada um desses elementos sendo limitantes de sua própria maneira. Às vezes ainda estamos empregando as categorias simplistas de nossa taxonomia popular; e no caso em que elas foram abandonadas, nós as substituímos por algum sinônimo polissilábico. Falamos em termos de primitivo e avançado quase como se as próprias mentes humanas diferissem em sua estrutura como máquinas com um desenho mais antigo e um mais moderno. Considera-se que a emergência da ciência, seja ela vista como tendo ocorrido à época do Renascimento na Europa, na Grécia Antiga ou ainda mais cedo, na Babilônia, veio depois de um período pré-científico, em que o pensamento mágico predominava. Os filósofos descrevem esse processo como a emergência da racionalidade da irracionalidade (WILSON, 1970) ou do pensamento lógico-empírico a partir do pensamento mitopoético (CASSIRER, 1944) ou dos procedimentos lógicos de procedimentos pré-lógicos (LÉVY-BRUHL, 1910). Mais recentemente, outros tentaram solucionar as dificuldades produzidas por uma definição puramente negativa da situação (p. ex., racional/irracional) por meio de dicotomias expressadas mais positivamente, o pensamento selvagem e o pensamento domesticado (ou frio e quente) de Lévi-Strauss (1962) e as situações fechadas e abertas de Robin Horton (1967) usando Popper.
O problema com o arcabouço é que ele é em grande parte ou não desenvolvimentista ou simplisticamente desenvolvimentista. Foi não desenvolvimentista porque os antropólogos e sociólogos interessados nessas questões normalmente deixaram de lado as perspectivas evolucionárias ou até históricas, preferindo, por um lado, adotar um tipo de relativismo cultural que acredita que as discussões do desenvolvimento implicam necessariamente um juízo de valor, ou, por outro, dão ênfase exagerada às diferenças ou não as compreendem bem. Essas objeções estão baseadas não só na premissa atraente de que todos os homens são iguais. Elas também se originam da indubitável dificuldade que as especulações sobre as sequências desenvolvimentistas muitas vezes criam para a análise de um conjunto específico de dados. Tais problemas surgem independentemente se os dados se originam de um estudo de campo ou de uma sociedade histórica, do presente ou do passado. Se presumo que, em um determinado momento, todas as sociedades tiveram formas mitológicas do tipo encontrado na América do Sul, então posso bem ser levado a considerar o corpo grego de “contos sagrados” como fragmentos desbotados de alguma glória anterior (KIRK, 1970). Se presumo que as sociedades matrilineares sempre precederam as patrilineares, então posso ser levado a interpretar a parte proeminente desempenhada pelo irmão da mãe como sobrevivente de um período anterior em vez de examinar seu papel em relação ao sistema social existente.
Ao aceitar as críticas funcionalistas e estruturalistas, admitindo a necessidade de provar em vez de presumir a diferença, fica muito fácil deixar de lado as questões desenvolvimentistas como pseudo-históricas, como “evolucionárias” ou como especulativas. No entanto, ao fazê-lo, nós, apesar disso, voltamos para um modo de discurso, um conjunto de categorias, tais como primitivo e avançado, simples e complexo, em desenvolvimento e desenvolvido, tradicional e moderno, pré-capitalista e capitalista etc., que implica mudanças de um tipo mais ou menos unidirecional. Qualquer recurso ao trabalho comparativo necessariamente faz surgir a questão evolucionária1. Mesmo estudos de campo específicos da vida social contemporânea no Terceiro Mundo não podem abandonar a questão da mudança de curto prazo e a de longo prazo. Esses problemas são intrínsecos a uma compreensão de nossa experiência individual e do mundo como um todo, tanto no espaço quanto no tempo.
Realmente, embora os cientistas sociais contemporâneos tenham uma certa desconfiança em relação a um arcabouço desenvolvimentista, grande parte da melhor sociologia empregou exatamente esse ponto de partida. Basta mencionar as obras de Comte, Marx, Spencer, Weber e Durkheim (sem mencionar os candidatos antropológicos mais óbvios, Maine, Morgan, Tylor, Robertson Smith e Frazer), que exibiram interesses comparativos e evolucionários. A obra de Spencer e a de Durkheim mostram um conhecimento extenso de escritos sobre as sociedades não europeias; Weber tem um conhecimento semelhante sobre a Ásia. No entanto, mesmo aqueles que exibiram esses interesses muitas vezes chegaram a eles em virtude de uma preocupação um tanto etnocêntrica (mas apesar disso importante) associada ao surgimento da sociedade industrial moderna; isso teve como centro a questão que Parsons recentemente reiterou. “Por que, então, a ruptura para a modernização não ocorreu em qualquer das civilizações intermediárias avançadas ‘orientais’”? (1966: 4). Uma vez mais essa pergunta implica uma oposição binária entre “nosso” tipo de sociedade e a “deles”; e sua resposta exige uma busca pelo mundo de casos positivos e negativos para confirmar nossas ideias sobre os fatores relevantes. Não há nada de errado com a busca em si, mas precisamos admitir a natureza etnocêntrica de seu ponto de partida e o fato de essa dicotomização do “nós” e “eles” restringir o campo tanto do tópico quanto de sua explicação. Ela nos empurra uma vez mais para o uso de categorias binárias e, embora introduza uma perspectiva desenvolvimentista, tenta procurar um ponto de ruptura único, uma Grande Divisória, embora se esse salto ocorreu na Europa Ocidental no século XVI, na Grécia no século V ou na Mesopotâmia no quarto milênio nunca ficou muito claro.
A nenhum tópico isso se aplica mais que aos estudos do desenvolvimento geral da mente ou do pensamento humano. Aqui temos de encarar o dilema do observador participante. Examinamos a questão não como um investigador examina as camadas geológicas, mas de dentro para fora. Começamos com a convicção de que há diferenças importantes entre nós (definidas de várias formas) e os demais. De outra maneira, como é que eles são subdesenvolvidos (ou estão em desenvolvimento) e nós somos desenvolvidos (ou superdesenvolvidos)? Ou, para inverter a classificação anterior, por que eles são primitivos e nós avançados? Tentamos afirmar a natureza dessas diferenças em termos muito gerais – a passagem de mito à história, de magia à ciência, de status a contrato, de frio a quente, de concreto a abstrato, de coletivo a individual, de rito à racionalidade. Esse movimento inevitavelmente tende a ser expresso não só em termos de processo, mas também em termos de progresso; em outras palavras, ele adquire um elemento de valor, um procedimento que tende a distorcer a maneira pela qual percebemos o tipo de desenvolvimento que ocorreu, especialmente quando ele é considerado nesses termos muito gerais, como, por exemplo, na divisão de Lévy-Bruhl entre mentalidades pré-lógicas e lógicas. O fato de as questões relacionadas com o pensamento humano serem colocadas em tais termos significa que fica difícil obter evidência satisfatória; ou, para examinar a investigação de outro ângulo, podemos fazer com que grande parte da evidência se encaixe nessas categorias amplas. Quanto ao arcabouço, os escritores oscilam desconfortavelmente entre pontos de vista desenvolvimentistas e não desenvolvimentistas. Mas uma vez mais as diferenças normalmente são consideradas dualistas em caráter, levando à premissa de uma “philosophie indigène” global, uma única “témoignage ethnographique” em oposição à nossa.
Uma contribuição recente nessa área é o estudo influente de Lévi-Strauss de La Pensée Sauvage, traduzido em inglês como The Savage Mind [A mente selvagem], o qual segue a trilha interessante aberta pela obra de Durkheim em “classificação primitiva” (1903) e que ilustra todos os dilemas mencionados anteriormente. Precisamos dizer imediatamente que, na análise que Lévi-Strauss faz da mente humana em culturas diferentes, ele enfatiza tanto a diferenciação quanto a semelhança. A segunda linha de pensamento está presente em La Pensée Sauvage, assim como nos três volumes intitulados Mythologiques e é resumida em seu ensaio “The Concept of Primitiveness” [O conceito de primitivismo], no qual ele escreve: “Não vejo qualquer motivo pelo qual a humanidade deveria ter esperado até tempos recentes para produzir mentes do calibre de um Platão ou de um Einstein. Já há mais de duzentos ou trezentos mil anos, provavelmente havia homens com uma capacidade semelhante, que, é claro, não estavam aplicando sua inteligência à solução do mesmo problema que esses pensadores mais recentes; em vez disso, eles estavam mais interessados em parentesco!” (1968: 351). O sentimento não é excepcional (é difícil acreditar que qualquer pessoa possa pensar de maneira diferente pelo menos se diminuirmos os duzentos ou trezentos mil anos para cinquenta mil, com a emergência do homo sapiens): e evitamos a dicotomia radical. Mas aparentemente o fazemos rejeitando toda consideração de fatores específicos, inclusive tradição intelectual, ambiente institucional e modo de comunicação que estão por trás da emergência de um Platão ou de um Einstein. Passamos de uma dicotomia grosseira para uma unidade a-histórica.
O ponto de partida de The Savage Mind, por outro lado, é uma dicotomia de “mente” ou “pensamento” entre selvagem (ou “anterior”) e domesticado. Essa oposição tem muitas das características da divisão anterior “nós/eles” entre primitivo e avançado, embora o autor tente deixar de lado algumas de suas implicações. Ele tenta dar à nova dicotomia uma base histórica mais específica, considerando o conhecimento “selvagem” como característico da idade neolítica e a variedade domesticada como predominante no período moderno.
No começo desse trabalho, o autor chama a atenção, como fizeram muitos outros autores, para a complexidade das classificações, as taxonomias, os grupos de palavras que aparecem nas línguas das sociedades “simples” e ele corretamente critica a visão – que atribui a Malinowski – de que esses sistemas são meramente meios de satisfazer “necessidades”. Malinowski, diz ele, afirmou que o interesse dos “povos primitivos” em plantas e animais totêmicos era inspirado por nada mais que o roncar de seus estômagos (1966: 3). Ele argumenta, em vez disso, que “o universo é um objeto de pensamento pelo menos tanto quanto um meio de satisfazer necessidades” (1966: 3).
Poucas páginas mais tarde, o complemento passa a ser uma alternativa. Ao escrever sobre a “ciência do concreto”, Lévi-Strauss nega que a classificação terapêutica tenha um “efeito prático”: “Ela satisfaz exigências intelectuais em vez de satisfazer necessidades”. E ele continua: “A verdadeira questão não é se o toque do bico de um pica-pau realmente cura a dor de dente. E, ao contrário, se existe um ponto de vista a partir do qual o bico de um pica-pau e o dente de um homem podem ser considerados como ‘caminhando juntos’ (o uso dessa congruidade para objetivos terapêuticos sendo apenas um de seus usos possíveis), e se alguma ordem inicial pode ser introduzida no universo por meio desses agrupamentos. Classificar, ao contrário de não classificar, tem um valor próprio, seja qual for a forma que a classificação possa adotar” (p. 9).
O argumento dessa passagem, embora de algumas maneiras sumamente atraente (quando o intelecto é trazido para a cena, o homem não é simplesmente a criatura das necessidades materiais), também é um tanto enganoso. Em primeiro lugar, ele depende de uma compreensão especial das palavras-chave. “Necessidades” aqui devem claramente ser interpretadas como principalmente físicas; se não fosse por isso, por que não incluiriam exigências intelectuais e emocionais, como é o caso na linguagem comum? Não posso ver qualquer justificativa para tratar esses aspectos como alternativas; o tratamento de uma dor de dentes é muitas vezes uma tarefa intelectual em sociedades simples, uma tarefa que envolve um reajuste do relacionamento do homem não apenas com seu ambiente físico, mas também com o universo moral e sobrenatural: realmente o universo é raramente – se o é alguma vez – dividido em um lado pragmático e um não pragmático. Uma divisão assim é outra imposição de observadores ocidentais ao mundo não europeu, frequentemente em desarmonia com os conceitos dos dois mundos, mas especialmente do último.
Se isso é verdade, a “questão verdadeira” (mas “verdadeira” para quem?) não pode ser expressa como uma alternativa do tipo ou/ou. Como vimos antes e como vemos pela afirmação parentética de que “o uso dessa congruidade para objetivos terapêuticos é apenas um de seus usos possíveis”. Lévi-Strauss está ele mesmo em dúvida sobre a colocação de “necessidades” e “classificações” como alternativas. Claramente não o são. Elas se complementam. Apesar disso, Lévi-Strauss insiste em ver a busca por ordem como dominante sobre a busca por segurança.
É difícil perceber como iríamos começar a pesar as duas na balança. Das próprias declarações do autor, é normalmente a busca por segurança que predomina, e pareceria haver grandes perigos em uma negligência das orientações pragmáticas do indivíduo (interpretadas no sentido mais amplo). Isso não é, claramente, negar a “busca pela ordem” intelectual. Mas se isso significa classificação, um sistema assim é por certo inerente ao próprio uso da linguagem e, fossem quais fossem as potencialidades existentes no mundo primata, foi esse novo instrumento de comunicação que estendeu amplamente o processo de conceitualização. Portanto, não pode haver qualquer questão de “não classificar”. E só de classificar de maneiras diferentes2. A oposição sugerida não tem qualquer substância.
Há outra dicotomia – associada – que cria dificuldades. Lévi-Strauss corretamente enfatiza o elemento “científico” na sociedade primitiva – um ponto que Malinowski e outros tinham estabelecido (embora hoje seja surpreendente pensar que isso tenha sido necessário alguma vez). E ele corretamente considera a classificação (ou a ordem) como sendo característica de todos os pensamentos (p. 10) – embora isso talvez signifique apenas que o desenvolvimento de ambos se origina do uso da língua. Mas ao discutir a diferença entre o pensamento do homem nas sociedades primitivas e avançadas (que é, afinal de contas, o tema de sua investigação), ele se depara com aquilo que vê como um paradoxo importante, e um paradoxo que se relaciona com a distinção entre magia e ciência e sua associação com primitivo e avançado respectivamente. “Conhecimento científico”, “ciência moderna”, ele observa, remonta há apenas uns poucos séculos; ela foi, no entanto, precedida pela façanha neolítica. “O homem neolítico, ou o primeiro homem histórico, foi, portanto, o herdeiro de uma longa tradição científica”. Mas do ponto de vista de Lévi-Strauss, a inspiração por trás dessa façanha foi diferente daquela do homem do pós-Renascimento. Sua razão para essa premissa é expressa da seguinte maneira: “Se ele – assim como todos os seus predecessores – tivesse sido inspirado exatamente pelo mesmo espírito que aquele de nosso próprio tempo, seria impossível entender como ele poderia ter parado e como vários milhares de anos de estagnação intervieram entre a revolução neolítica e a ciência moderna como uma planície entre elevações” (p. 15). Ele acha que esse paradoxo tem apenas uma solução: é preciso haver “dois modos distintos de pensamento científico”. Tendo estabelecido um problema histórico (ciência “neolítica” contra ciência “moderna”), Strauss então continua e rejeita as implicações “evolucionárias” de sua posição: “Esses [modos distintos] certamente não são uma função dos vários estágios de desenvolvimento da mente humana e sim de dois níveis estratégicos em que a natureza é acessível à investigação científica: um grosseiramente adaptado ao nível da percepção e da imaginação; o outro longe dele” (p. 15).
Mas, embora ele tente desconsiderar as ideias anteriores, a maneira como descreve essas duas formas de conhecimento exibe um elo bem definido com dicotomias anteriores entre primitivo e avançado, uma dicotomia que se transforma em “selvagem” (savage, sauvage) e domesticado (domestiquée) em sua própria terminologia e que se refere bastante especificamente, como no título do livro, à pensée (pensamento, mente) dos atores envolvidos.
Em vários momentos a dicotomia assume as seguintes formas, explícitas ou implícitas:
Para essa visão dualista do mundo Lévi-Strauss retorna no final de seu livro, mostrando quão intrínseca ela é para seu argumento geral.
“Certamente as propriedades a que a mente selvagem tem acesso não são as mesmas que aquelas que dominaram a atenção dos cientistas. O mundo físico é abordado de extremidades opostas nos dois casos: um é supremamente concreto, o outro supremamente abstrato; um segue a partir do ângulo de qualidades sensíveis e, o outro, do ângulo de propriedades formais.” Em vez de se encontrar, esses dois cursos levam a “duas ciências distintas, embora igualmente positivas; uma que floresceu no período neolítico, cuja teoria da ordem sensível forneceu a base das artes da civilização (agricultura, criação de animais, cerâmica, tecelagem, conservação e preparação de comida etc.) e que continua a satisfazer nossas necessidades básicas por esses meios; e a outra, que se coloca desde o início no nível da inteligibilidade, e da qual é fruto a ciência contemporânea” (p. 269).
Essa dicotomia segue o pensamento tradicional e tenta explicar as supostas diferenças entre “nós” e “eles” de uma maneira geral. Por um lado, ela adota uma posição relativista e tenta se desviar das implicações “evolucionárias” insistindo que (a) os cursos são “alternativos”, e que (b) eles estão se “cruzando” na metade do século XX. Ao mesmo tempo, ela se refere às supostas mudanças históricas, isto é, à descontinuidade fundamental no conhecimento humano em relação ao que existia no fim do período neolítico e o que existe nos tempos modernos. Essa descontinuidade é tanto temporal (há um platô entre eles) como causal (a inspiração é diferente).
Mas embora o ritmo da inventividade humana tenha sido muitas vezes desigual, ele não parece exibir o padrão bimodal presumido por Lévi-Strauss. Assim como houve muitas invenções importantes bem antes do Neolítico (a fala, as ferramentas, a cocção, as armas), o mesmo ocorreu entre o Neolítico e os períodos modernos (a metalurgia, a escrita, a roda). Em textos recentes sobre a pré-história, a ideia de uma revolução súbita produzida pela domesticação de plantas e animais foi substituída por uma progressão mais gradual de eventos que nos leva de volta ao último período interglacial. O desenvolvimento foi mais gradativo do que se pensava antes, mas, de qualquer forma, a explicação de Lévi-Strauss parece ignorar as imensas realizações da “Revolução Urbana” da Idade do Bronze, os desenvolvimentos do período clássico na Grécia e em Roma, e os avanços na Europa do século XII e na antiga China. Digo “parece ignorar” porque o autor está claramente ciente desses desenvolvimentos na cultura humana e em um volume posterior especificamente se refere à mudança de mito para a filosofia na Grécia como precursora da ciência (1973: 473). Ao contrário, a questão é que, como todos nós, ele é vítima do binarismo etnocêntrico embutido em todas as nossas categorias, desde a divisão das sociedades mundiais em primitivas e avançadas, europeias e não europeias, simples e complexas. Como marco sinalizador, esses termos podem ser permissíveis. Mas construir sobre uma base assim tão reduzida a ideia de duas abordagens distintas ao universo físico parece muito pouco justificável.
Certamente não desejo negar que existem diferenças no “pensamento” ou “mente” do “nós” e do “eles”, nem que os problemas que podem ter preocupado muitos observadores, entre eles Durkheim, Lévy-Bruhl e Lévi-Strauss, não têm importância. Mas a maneira como eles foram abordados parece gerar toda uma série de dúvidas. Talvez eu possa expressar a dificuldade principal que encontro nisso em termos de experiência pessoal. No decorrer de vários anos em que vivi entre povos de “outras culturas” nunca vivenciei os tipos de hiatos em comunicação que deveriam ocorrer se eu e eles estivéssemos abordando o mundo físico de extremidades opostas. O fato de essa experiência não ser peculiar parece evidente quando examinamos as mudanças contemporâneas ocorrendo em países em desenvolvimento em que a mudança do Neolítico para a ciência moderna está encapsulada no espaço da vida de um homem. O menino que foi criado como bricoleur se torna um engenheiro. Ele tem suas dificuldades, mas elas não se encontram no nível de uma oposição geral entre mentes, pensamentos ou abordagens selvagens e domesticadas e, sim, em um nível muito mais particularista.
Ao examinar as mudanças que ocorreram no pensamento humano, então, devemos abandonar as dicotomias etnocêntricas que caracterizaram o pensamento social no período da expansão europeia. Em vez disso, devemos procurar critérios mais específicos para as diferenças. Tampouco devemos negligenciar as circunstâncias materiais do processo de “domesticação” mental, pois essas não são apenas as manifestações do pensamento, da invenção, da criatividade, mas elas também moldam suas formas futuras. Elas não são apenas os produtos da comunicação, mas sim parte de suas características determinantes.
Portanto, mesmo se a mensagem não pode ser justificadamente reduzida ao meio, quaisquer mudanças no sistema de comunicação humana devem ter sérias implicações para o conteúdo. Realmente, nosso ponto de partida deve ser a aquisição da linguagem, que é um atributo unicamente da humanidade, é básico para todas as instituições sociais e para todo o comportamento normativo3.
Muitos escritores consideraram o desenvolvimento dos idiomas como um prerrequisito para o próprio pensamento; o psicólogo russo Vygotsky caracterizou o pensamento como “linguagem interna”. Não precisamos nos envolver nesse argumento, que é parcialmente um problema de definição; não é uma questão de estabelecer uma fronteira, e sim de determinar a extensão da atividade cognitiva que a linguagem permite e encoraja. Vale a pena observar que a evidência arqueológica de cultura humana extensiva como retratada nas pinturas murais do Paleolítico Superior e nas práticas funerárias dos neandertalenses coincide com o surgimento de um homem com um cérebro maior do que pareceria necessário para o tipo de sistemas comunicativos e de armazenamento associados com a fala.
É claro, a existência da linguagem realmente tende a dicotomizar. Ou você a tem, ou não a tem. As línguas humanas parecem exibir poucas diferenças em sua potencialidade para adaptação ao desenvolvimento. Sejam quais forem as diferenças que possam existir na língua de povos “primitivos” “intermediários” e “avançados”, além do vocabulário, esses fatores parecem ter muito pouco efeito quando se trata da inibição ou do encorajamento da mudança social. Ao desenvolver esse ponto, estou propositalmente deixando de lado certas implicações da comparação seminal de Benjamin Lee Whorf daquilo que ele chamou de europeu de padrão médio com o hopi da América do Norte, em que Whorf considera que aspectos da visão de mundo e dos processos cognitivos dessas sociedades estão intimamente relacionados com estruturas gramaticais. Estou também desconsiderando a multidão de análises antropológicas que tendem a tratar o homem como prisioneiro dos conceitos que ele produziu e, com isso, deixam de explicar os aspectos generativos de sua cultura.
A dicotomia entre aqueles com a linguagem e aqueles sem ela tem pouco a ver com o tipo de diferenças que nos interessam aqui. No entanto, ela realmente sugere que um exame dos meios de comunicação, um estudo da tecnologia do intelecto, pode lançar uma nova luz sobre os desenvolvimentos na esfera do pensamento humano. Para aqueles que estudam a interação social, os desenvolvimentos na tecnologia do intelecto devem ser sempre cruciais. Depois da linguagem, o avanço seguinte mais importante nessa área se encontra na redução da fala a formas gráficas, no desenvolvimento da escrita. Aqui não podemos ver apenas um único salto, mas uma série de mudanças, muitas delas espalhadas através de um processo de difusão que pode ser reconstruído em seus termos gerais e que culminou na forma relativamente simples da escrita alfabética usada amplamente nos dias atuais, e cuja proposta de adoção na China foi descrita por Lenin como a revolução do Leste. É claro, mudanças nos meios de comunicação não são o único fator significativo; o sistema ou modo de comunicação também inclui o controle dessa tecnologia, esteja ela nas mãos de uma hierarquia religiosa ou política, ou seja, ela é um sistema de escribas ou “demótico”. Apesar disso, as diferenças nos meios de comunicação são importantes o suficiente para justificar uma exploração de suas implicações para os desenvolvimentos no pensamento humano; e, em particular, para considerar se elas podem dar uma explicação melhor para as diferenças observadas do que as dicotomias que rejeitamos anteriormente. O desafio, então, não é meramente criticar o arcabouço existente (isso nunca é muito difícil) e, sim, oferecer uma explicação alternativa que explique mais.
Se acharmos que as mudanças na comunicação são críticas, e se as vemos como sendo múltiplas – e não únicas – em caráter, então a antiga dicotomia entre primitivo (ou “prior”) e avançado desaparece não apenas para o “pensamento”, mas também para a organização social. Pois a introdução da escrita teve uma grande influência na política, na religião e na economia; as instituições do parentesco parecem só ter sido influenciadas de uma maneira secundária, por razões que serão mencionadas mais adiante. Ao dizer isso, não estou tentando propor um sequência de causa e efeito simples e tecnologicamente determinada: há demasiados redemoinhos e correntes nos negócios humanos para justificar uma explicação monocausal de um tipo unilinear. Por outro lado, há um meio-termo entre a escolha de uma única causa e a rejeição total de implicações causais entre a difusibilidade da causalidade estrutural e do encaixe funcional e a seleção de um único fator material como causa predominante ou até mesmo determinante; há toda a área de arcos causais, de mecanismos de retroalimentação, da tentativa de pesar uma pluralidade de causas. Em relação à natureza desses fatores causais, uma linha importante de pensamento na sociologia e na antropologia, especialmente naquela que segue a tradição durkheimiana, teve uma tendência a negligenciar as mudanças tecnológicas que outras disciplinas, tais como a pré-história, acharam tão significativas. Houve duas razões para essa tendência. Uma foi a tentativa de estabelecer a sociologia como uma disciplina distinta, que trata de uma categoria especial de fatos considerados “sociais”; na antropologia social há uma tentativa paralela (que se origina da mesma fonte durkheimiana) de não se envolver com o estudo da “cultura material” e se concentrar exclusivamente no “social”. A segunda razão se encontra em Weber e não em Durkheim; suas qualificações à tese de Marx envolveram uma mudança parcial em ênfase, da produção para a ideologia, da “infraestrutura” para a “superestrutura”, uma tendência que se tornou cada vez mais predominante em parte da teoria social posterior.
A significância dos fatores tecnológicos precisa ser avaliada independentemente dessas considerações ideológicas. Na esfera cognitiva, eles são importantes por duas razões especiais. Estamos lidando com desenvolvimentos na tecnologia de atos comunicativos, um estudo que nos permite estabelecer uma ponte entre vários ramos de conhecimento interessados na ciência da sociedade, em seus produtos culturais e nos instrumentos de produção cultural que ela tem sob seu comando. Segundo, uma ênfase sobre as implicações das mudanças na tecnologia das comunicações pode ser vista como uma tentativa de discutir em termos mais manejáveis um tópico que se tornou cada vez mais obscuro e escolástico.
Em um texto anterior (1963), Watt e eu tentamos descrever algumas das características que, a nosso ver, estão intimamente conectadas com o advento da escrita e, em particular, com a invenção do sistema alfabético que possibilitou a expansão da capacidade de ler e escrever. Sugerimos que lógica, “nossa lógica” no sentido restrito de um instrumento de procedimentos analíticos (e não demos o mesmo valor esmagador a essa descoberta como fizeram Lévy-Bruhl e outros filósofos), parecia ser uma função da escrita, visto que foi a fixação da fala que permitiu que o homem separasse as palavras claramente, manipulasse sua ordem e desenvolvesse formas silogísticas de raciocínio; essas últimas foram consideradas como especificamente letradas e não orais, mesmo fazendo uso de outro elemento isolado puramente gráfico, a letra, como um meio de indicar o relacionamento entre os elementos constituintes. É uma sugestão coerente com a pesquisa de Luria na Ásia Central, na qual ele descobriu que a escolaridade era associada à aceitação das premissas extremamente artificiais em que se baseavam os silogismos lógicos (SCRIBNER & COLE, 1973: 554). Um argumento semelhante se aplica à lei da contradição que Lévy-Bruhl considerou ausente nas sociedades primitivas. De um ponto de vista, sua afirmação era absurda. No entanto, é certamente mais fácil perceber contradições na escrita do que na fala, parcialmente porque podemos formalizar as afirmações de uma maneira silogística e parcialmente porque a escrita detém o fluxo da conversa oral de tal forma que podemos comparar lado a lado declarações que foram feitas em momentos diferentes e em lugares diferentes. Portanto, há algum elemento de justificação por trás da distinção que Lévy-Bruhl faz entre a mentalidade lógica e a mentalidade pré-lógica, assim como por trás de sua discussão da lei da contradição. Mas a análise está totalmente errada. Como ele deixa de considerar a mecânica da comunicação, é levado a fazer deduções errôneas em relação a diferenças mentais e a estilos cognitivos.
Os mesmos tipos de consideração que se aplicam a outras palavras se aplicam aos números. O desenvolvimento da matemática na Babilônia também dependeu do desenvolvimento anterior de um sistema gráfico, embora não alfabético. O relacionamento entre escrita e matemática é ainda mais verdadeiro, mesmo em um nível elementar. Em 1970 passei um breve período revisitando os lodagaa do norte de Gana, cujo contato principal com a alfabetização começou com a abertura de uma escola primária em Birifu, em 1949. Ao investigar suas operações matemáticas descobri que, embora meninos que não frequentavam a escola fossem especialistas em contar um grande número de cowries (conchas usadas como dinheiro), uma tarefa que eles muitas vezes desempenhavam com mais rapidez e mais precisão do que eu, eles não tinham muita habilidade na multiplicação. A ideia de multiplicação não estava totalmente ausente; eles achavam, sim, que quatro pilhas de cinco cowries cada, eram iguais a vinte cowries. Mas não tinham qualquer tabuada pronta em suas mentes com a qual pudessem calcular operações mais complexas. A razão era simples, pois a “tabuada” é essencialmente uma ajuda escrita à aritmética oral. O contraste era ainda mais verdadeiro no tocante à subtração e à divisão; a primeira pode ser trabalhada oralmente (embora é muito provável que pessoas letradas usassem papel e lápis para as operações mais complexas), a última é basicamente uma técnica letrada. A diferença não é tanto uma diferença de pensamento ou da mente e, sim, da mecânica dos atos comunicativos, não somente aquela entre seres humanos, mas aquelas em que um indivíduo está envolvido quando está “falando consigo mesmo”, computando com números, pensando com palavras.
Há dois outros pontos gerais sobre os quais quero falar em referência aos processos mentais envolvidos. Eu comentei que a maioria dos lodagaa era mais rápida na contagem de grandes quantidades de cowries. Na verdade o meu método os divertiu um pouco, porque eles me viam mexendo as conchas de uma maneira pouco econômica, uma a uma, e mais tarde observei que só colegiais, acostumados às maneiras mais individualizantes da contagem “abstrata”, usavam a mesma técnica. Quando o pagamento de um dote matrimonial chega a 20 mil cowries, a contagem pode ser um procedimento demorado. Os próprios lodagaa admitiam um tipo especial de “contagem de cowries” (libie pla soro) onde mexiam primeiramente um grupo de três, depois de duas, para formar um pilha de cinco. Além de ser uma fração de 20, que era a base para cálculos maiores, cinco representava um número que uma pessoa podia checar com um olhar enquanto estendia a mão outra vez para coletar o próximo grupo de cowries4. A possibilidade de uma checagem dupla desse tipo claramente aumentava a precisão da computação. Quatro montes de cinco eram então agregados para formar uma pilha de vinte; cinco pilhas de vinte para formar uma centena, e assim por diante, até que o dote estivesse contado. Mas meu argumento não tem nada a ver com a velocidade ou precisão da contagem e, sim, com a concretude relativa do procedimento. Quando pedi pela primeira vez que alguém contasse para mim, a resposta foi “contar o quê?” Pois procedimentos diferentes são usados para contar objetos diferentes. Contar vacas é diferente de contar cowries. Temos aqui um exemplo da maior concretude dos procedimentos em sociedades não letradas. Não é ausência de pensamento abstrato, como Lévy-Bruhl acreditava; nem sequer a oposição entre a “ciência do concreto” e a “ciência do abstrato” de que fala Lévi-Strauss. Os lodagaa têm um sistema numérico “abstrato” que se aplica tanto a cowries quanto a vacas. Mas as formas em que eles usam esses conceitos estão engastadas na vida diária. A capacidade de ler e escrever e o processo que se segue a uma educação em sala de aula traz uma mudança na direção de um maior “abstracionismo”, na direção da descontextualização do conhecimento (BRUNER et al., 1966: 62), mas cristalizar esse processo de desenvolvimento em uma dicotomia absoluta não faz justiça aos fatos nem da sociedade “tradicional” nem do mundo em mutação no qual os lodagaa agora se encontram.
O outro ponto geral é o seguinte. Há alguns grupos especialistas de comerciantes, tais como os iorubas do além-mar, cuja capacidade de fazer operações aritméticas relativamente complexas está relacionada com seu papel como distribuidores de bens europeus, dividindo itens pesados em pequenos pacotes. Essas transações exigem uma consideração cuidadosa do lucro e das perdas e os iorubas certamente dão essa atenção ao processo. Até que ponto sua habilidade nessa direção é um retorno da realização da alfabetização é difícil saber; a “tabuada” é essencialmente um artifício gráfico, no entanto, é utilizado como um instrumento de cálculo oral. Entre os iorubas essa capacidade de calcular é normalmente transmitida por linhas “familiares”: está sujeita às limitações da transmissão oral, que tende rapidamente a incorporar ou rejeitar imediatamente um novo elemento no corpo de conhecimento. Já mencionei que a ausência da escrita significa que é difícil isolar um segmento do discurso humano (por exemplo, o discurso matemático) e sujeitá-lo à mesma análise sumamente individual, sumamente intensa, sumamente abstrata, sumamente crítica que podemos dar a uma frase escrita. Mas há também um outro ponto, para o qual forneço uma simples ilustração para mostrar a diferença feita pela escrita. Se um indivíduo ioruba desenvolvesse uma nova forma de cálculo, a chance de essa façanha criativa sobreviver a seu criador iria depender primordialmente de sua “utilidade”. Não dou a esse termo o significado restrito a ele atribuído por Lévi-Strauss em sua rejeição de Malinowski (1966: 3), mas simplesmente tenho a intenção de inferir que é uma questão de agora ou nunca; não há qualquer chance de que sua descoberta venha a ser aclamada em uma data futura; não há nenhum depósito para uma recordação subsequente.
Isso não é uma consideração insignificante; o que acontece aqui é parte intrínseca da tendência das culturas orais à homeostase cultural; aquelas inúmeras mutações da cultura que emergem no processo ordinário da interação verbal são ou adotadas pelo grupo que interage ou são eliminadas no processo de transmissão de uma geração para a seguinte. Se a mutação é adotada, a assinatura individual (é difícil evitar a imagem letrada) tende a ser apagada, enquanto que em culturas escritas o próprio conhecimento de que uma obra irá permanecer no tempo, apesar de pressões comerciais ou políticas, muitas vezes ajuda a estimular o processo criativo e a encorajar o reconhecimento da individualidade.
O desenvolvimento do individualismo é outra das generalidades vagas aplicadas ao desenvolvimento cognitivo da humanidade. Uma vez mais, há algo a ser explicado. Durkheim tentou fazê-lo por meio de outra dicotomia, a mudança de solidariedade mecânica para orgânica; o crescimento da divisão do trabalho significou a crescente diferenciação de papéis; a sociedade avançada foi caracterizada pela heterogeneidade em oposição à homogeneidade e esse estado de coisas se refletiu na consciência coletiva das sociedades descomplicadas, e nos tipos de elo solidário que existia entre pessoas e grupos.
Uma vez mais há algo válido no argumento durkheimiano. Mas é mais provável que o processo que ele descreve produza uma série de subgrupos parcialmente diferenciados e não o tipo de atividade usualmente associada com o desenvolvimento do individualismo no Ocidente. Houve certamente mais de um fator envolvido nesse processo vagamente definido; mas as mudanças na comunicação humana que acompanharam a extensão da capacidade de ler e escrever alfabética na Grécia e a introdução da palavra impressa na Europa renascentista certamente foram fatores importantes. No entanto, no argumento de Durkheim, elas não são sequer consideradas.
Outro tema comum na diferenciação entre sociedades, um tema que é discutido por Lévi-Strauss e também por Cassirer antes dele, tem a ver com o contraste entre mito e história (GOODY & WATT, 1963: 321-326). Há, é claro, um sentido simplório no qual a história está associada ao uso de material documental e, com isso, passa a ser inseparável de culturas letradas; antes desse fato, tudo é pré-história, a pré-história das sociedades dominadas pelo mito. Sem entrar nas muitas ambiguidades envolvidas na definição de mito, há um sentido em que esse conceito muitas vezes envolve um olhar retrógrado àquilo que é ou inverdade ou impossível de verificar. E, no sentido mais literal, a distinção entre mythos e historia surge em um momento em que a escrita alfabética encorajava a humanidade a colocar uma explicação do universo ou do panteão ao lado de outra e, com isso, perceber as contradições que existem entre elas. Há assim dois sentidos nos quais a caracterização da “mente selvagem” como “pré-histórica” ou atemporal se relaciona com a distinção entre sociedades letradas e pré-letradas.
Embora o foco deste livro seja especificamente sobre fatores cognitivos, vale a pena indicar duas outras discussões sociológicas que ganhariam com uma consideração das consequências das mudanças que ocorreram em sistemas de atos comunicativos, embora essas se relacionem a instituições sociais. A palavra escrita não substitui a fala, assim também como a fala não substitui o gesto. Mas ela acrescenta uma dimensão importante à grande parte da ação social. Isso é especialmente verdadeiro em relação ao domínio político-legal, pois o crescimento da burocracia claramente depende, em um grau considerável, da capacidade de controlar relacionamentos de “grupo secundário” por meio das comunicações escritas. Aliás, é interessante observar que os termos nos quais Cooley originalmente definiu o grupo primário estão muito próximos daqueles usados para sociedades pré-letradas. “Por grupo primário, quero dizer aqueles caracterizados por associação íntima face a face e cooperação. O resultado da associação íntima, psicologicamente, é uma certa fusão de individualidades em um todo comum, de tal forma que o próprio self de uma pessoa, pelo menos para muitos objetivos, é a vida comum e o objetivo do grupo” (1909: 23). Um grupo face a face não tem grande necessidade de escrever. Tomemos o exemplo do grupo doméstico, o grupo primário prototípico, que nos traz de volta às razões por que a escrita tem pouca influência direta no parentesco, já que a comunicação entre parentes é na maior parte das vezes oral e, com frequência, não verbal.
Outras instituições sociais são afetadas mais diretamente. Mencionei o problema da comunicação nos grandes estados. Esse não é o momento para nos envolvermos em uma extensa discussão sobre as conexões entre os meios de comunicação e o sistema político. Max Weber observou que uma das características das organizações burocráticas era a conduta de negócios oficiais com base em documentos escritos (WEBER, 1947: 330-332; BENDIX, 1960: 419). Mas é preciso enfatizar que algumas das outras características da burocracia que ele menciona estão também intimamente relacionadas com esse fato. A despersonalização do método de recrutamento para funções oficiais envolve o uso de testes “objetivos”, isto é, de exames escritos, que são meios de avaliar a capacidade do candidato de lidar com o material básico da comunicação administrativa, cartas, memorandos, arquivos e relatórios. Como Bendix observa em seu valioso comentário sobre Weber, nos primeiros sistemas de administração “os negócios oficiais são transacionados em encontros pessoais e por comunicação oral, não com base em documentos impessoais” (1960: 420). Em outras palavras, a escrita influencia não só o método de recrutamento e as habilidades ocupacionais, mas também a natureza do próprio papel burocrático. A relação com ambos, governante e governado, passa a ser mais impessoal, envolvendo um apelo maior a “regras” abstratas listadas em um código escrito e levando a uma clara separação entre os deveres oficiais e os interesses pessoais. Não desejo sugerir que essa separação esteja totalmente ausente em sociedades não letradas; e nem endossaria a observação de que a tradição não escrita “endossa a arbitrariedade inescrupulosa do governante” (BENDIX, 1960: 419). Mas é claro que a adoção de meios escritos de comunicação foi intrínseca ao desenvolvimento de sistemas de governo mais amplos e abrangentes, mais despersonalizados e mais abstratos; ao mesmo tempo, a mudança da relação oral significou atribuir menos importância às situações face a face, seja na forma da entrevista ou do público, do serviço pessoal ou dos festivais nacionais em que a renovação dos laços de obediência era, com frequência, tão significativa quanto os ritos religiosos.
Tentei tomar certas características que Lévi-Strauss e outros consideraram como marcos da distinção entre primitivo e avançado, entre pensamento selvagem e domesticado, e sugerir que muitos dos aspectos válidos dessas dicotomias um tanto vagas podem ser relacionados às mudanças no meio de comunicação, especialmente à introdução de várias formas de escrita. A vantagem dessa abordagem se encontra no fato de ela não descrever simplesmente as diferenças, mas sim relacioná-las a um terceiro conjunto de fatos, e assim fornecer algum tipo de explicação, algum tipo de mecanismo, para as mudanças que presumivelmente ocorrem.
Um reconhecimento desse fator também modifica nossa visão da natureza dessas diferenças. A caracterização tradicional é essencialmente estática, no sentido de que ela não dá qualquer razão para a mudança, nenhuma ideia de como ou por que a domesticação ocorreu; ela presume que a mente primitiva tem certo caráter específico, que a mente avançada tem outro, e que foi em virtude da genialidade dos gregos ou dos europeus ocidentais que o homem moderno surgiu. Mas o homem moderno está surgindo a cada dia na África contemporânea, sem, eu sugeriria, a transformação total de processos do “pensamento” ou de atributos da “mente” que as teorias existentes implicam. O conteúdo da comunicação é claramente de significância primordial. Mas é também essencial, para a teoria social e para a análise histórica, para a política atual e o planejamento futuro, lembrar-se das limitações e oportunidades oferecidas pelas várias tecnologias do intelecto.
Nos capítulos que se seguem, tento analisar de uma forma mais específica a relação entre meios de comunicação e modos de “pensamento”. Nessa tentativa, quero manter um equilíbrio entre a recusa a admitir diferenças nos processos cognitivos ou nos desenvolvimentos culturais, por um lado, e o dualismo ou a distinção extremos no outro. As formas de pensar das sociedades humanas se parecem em muitos aspectos; a atividade intelectual individual é uma característica da vida social dos lodagaa do norte de Gana, como o é das culturas ocidentais. Na verdade, o próximo capítulo tem como objetivo apresentar exatamente esse ponto, o qual algumas versões da visão dualista tendem a ignorar. Por outro lado, a forma extrema de relativismo implícita em grande parte dos escritos contemporâneos negligencia o fato de as atividades cognitivas dos indivíduos diferirem de uma sociedade para outra de várias maneiras. Algumas das diferenças gerais que caracterizaram as abordagens binárias podem ser atribuídas às novas potencialidades para a cognição humana que foram criadas pelas mudanças nos meios de comunicação. Cientistas sociais prontamente admitem esse ponto em relação à própria linguagem, mas tendem a ignorar a influência de eventos subsequentes no desenvolvimento da interação humana.
A influência geral da escrita no desenvolvimento do conhecimento é discutida no terceiro capítulo, onde tento examinar alguns traços considerados como característicos de sociedades “simples” e “complexas” desse ponto de vista, dando uma atenção particular à análise da importante comparação e do contraste entre a ciência ocidental e o pensamento tradicional africano que foi feita por Horton.
Os quatro capítulos seguintes passam do geral para o particular, tentando especificar mais exatamente algumas maneiras pelas quais o uso da escrita parece ter influenciado as estruturas cognitivas. Aqui estou mais interessado nos usos não verbais da língua na escrita que nos usos obviamente semelhantes à fala, como exemplificado no uso de tabelas, listas, fórmulas e receitas para a organização e o desenvolvimento do conhecimento humano. A explicação focaliza essas “figuras da palavra escrita” e não as “figuras de linguagem”. Ao tentar avaliar a importância desses instrumentos de manipulação cognitiva, de processos intelectuais, examino (com um olhar bastante amador) alguns dos primeiros produtos dos sistemas de escrita, baseando-me nos sistemas de escritas mais antigos de todos, aqueles do Oriente Médio, que foram tão centrais para os grandes avanços no conhecimento humano. E, ao mesmo tempo, examino a introdução mais recente da escrita em sociedades que até aqui eram orais, um processo que pode ser observado na África Ocidental nos dias atuais. Naquela região foi feita uma tentativa de avaliar não só o impacto externo tanto da escrita arábica quando da europeia sobre sociedades não letradas, um tema que já discuti em ensaios anteriores (GOODY, 1968a, 1972b), mas também o processo real pelo qual os indivíduos e as sociedades adquirem a escrita e se tornam letrados.
Embora o impacto de sistemas estrangeiros possa nos dizer muita coisa, essa situação é necessariamente influenciada pelo conteúdo da tradição da qual o sistema de escrita é parte, o islã em um dos casos, o cristianismo (ou a cultura ocidental moderna) no outro. Durante a primeira metade do século XIX, alguns membros de uma sociedade da África Ocidental realmente inventaram sua escrita, estimulados por um conhecimento das vantagens que a escrita deu aos europeus e aos árabes (e possivelmente aos cherokees). Essa descoberta muito bem documentada foi feita pelos Vai da fronteira entre a Libéria e a Serra Leoa, que nos dão uma oportunidade limitada de ver as maneiras pelas quais o advento da escrita pode influenciar uma sociedade na ausência de organização educacional formal e sem a importação de uma cultura letrada já pronta. Essa situação específica está sendo investigada atualmente – e intensivamente – por Michael Cole, Sylvia Scribner e um número de seus colaboradores. Tive a sorte de ser convidado para participar brevemente do projeto e, portanto, tive a oportunidade de “testar” minhas sugestões relacionadas às implicações da capacidade de ler e escrever (e especificamente o papel das listas) ao examinar o conteúdo de um corpo dos documentos dos Vai. Os resultados desse breve encontro foram publicados em Africa (1977), em colaboração com Cole e Scribner, sob o título “Writing and formal operations: A case study among the Vai” [A escrita e as operações formais: um estudo de caso entre os Vai]. É um complemento essencial para este presente relato e pode até ser considerado uma indicação de que, nos termos da distinção usada por Scribner e Cole (1973), embora capacidades cognitivas possam permanecer as mesmas, o acesso a técnicas diferentes pode produzir resultados extraordinários. Aliás, eu mesmo iria mais à frente e consideraria que a aquisição desses meios de comunicação efetivamente transforma a natureza dos processos cognitivos de uma maneira que leva à dissolução parcial das barreiras construídas pelos psicólogos e linguistas entre capacidades e desempenho.
Domesticação como experiência individual.
1. Ao realizar uma comparação dos sistemas sociais, Talcott Parsons confrontou-se diretamente com o problema de lidar com “a evolução social” (1966: v).
2. “Ocorre universalmente que [...] o uso da língua pela criança é categórico” (BRUNER, 1966: 32).
3. Por língua aqui quero dizer uma constelação específica de atributos de sistemas aurais de comunicação (cf. HOCKETT, 1960).
4. O tipo de avaliação visual de itens de seis e abaixo foi chamado de “subitização” e foi relacionado aos limites estruturais do cérebro humano (KAUFMAN et al., 1949, cf. tb. MILLER, 1956).