Mesa 14

Sexta-feira, 25 de junho de 2021, 8h30

Hangar B, McGuire Air Force Base

Encontros Imediatos do Terceiro Grau, a sério? Finda a entrevista, Victor hesita entre a raiva e o riso. Ignorando o futuro, o escritor quer apontar friamente, numa longa lista, o que se passa naquele hangar. Hangar é uma palavra tão estranha. Parecida com zangar, com azar. Pega no seu caderno, numa caneta, tenta abstrair-se dos gritos, do barulho, tira apontamentos: Esgotamento de um local improvável. Não. Para quê caminhar à sombra de Perec? Porque é que nunca se liberta das influências, das figuras tutelares? Porque é que, quando não teme ser um impostor, não passa de um miúdo em busca do título de cavaleiro?

Pausadamente, escreve Modo avião.

«A data: 11 de março de 2021.

«Há muitas coisas neste hangar, por exemplo: uma centena de tendas ocres, um hospital de campanha, filas de mesas compridas, um campo de basquetebol improvisado, dezenas de pré-fabricados, casas de banho públicas, barreiras metálicas em duas filas, um centro de “informações” sem ninguém para informar, um “espaço ecuménico” assinalado por um letreiro em seis línguas, quatro distribuidores de água, e muitas outras coisas.

«O tempo: demasiado quente, demasiado húmido para a época do ano.

«Esboço de um inventário de coisas estritamente visíveis: primeiro, as letras do alfabeto, de A a E numa das paredes do hangar, um H maiúsculo para “hospital”, as palavras “Air France” (na bolsa dos comissários e das hospedeiras), as marcas da roupa dos passageiros, “US Air Force” no chão, “Danger”, “Alta voltagem” nos painéis elétricos. Slogans nas paredes: “Aim High, Fligh-Flight-Win”, “Mors Ab Alto”, a divisa da US Air Force, “Do something”.»

Victor escreve, sem pressa, automaticamente. Tendo lido muito, traduzido muito e visto demasiadas parvoíces por detrás de frases bonitas, parece-lhe indecente impor ao mundo mais uma asneirada. Quer lá saber que uma prosa fulgurante jorre do «mero deslizar da pluma na página», não se acha «todo-poderoso perante a frase» e nem pensar em «fechar as pálpebras para manter os olhos abertos», ou, naquele lugar sem alma, «se desnudar ao mundo para nele inscrever o seu próprio desnorteio», aliás, desconfia sempre de metáforas. Foi assim que começou a guerra de Troia. Sabe, apesar de tudo, que bastará que uma das suas frases seja mais inteligente do que ele para que esse milagre faça de si escritor.

Victor observa todas aquelas existências dispersas, todas aquelas ansiedades ambulantes na placa de Petri que é o hangar — decididamente, que palavra estranha —, sem saber a qual se agarrar. Entrega-se ao fascínio de outras vidas que não a sua. Gostava de escolher uma, de encontrar as palavras certas para contar determinada criatura e conseguir acreditar que se aproximou o suficiente dela para não a trair. E, depois, avançar para outra. E outra. Três personagens, sete, vinte? Quantos relatos simultâneos um leitor acederia a seguir?

À sua mesa, designada pelo número 14, além de outros passageiros, há o comandante de bordo. Faz-lhe lembrar o pai. Os mesmos olhos verde-acinzentados, o mesmo nariz aquilino, os mesmos golfos profundos nas têmporas, que acabarão por ganhar a batalha contra os cabelos fartos e grisalhos, o tronco vigoroso. Instintivamente, o escritor leva a mão ao bolso, sente o toque liso da peça de lego vermelho. Na carteira, Victor guarda uma fotografia desse pai desaparecido, tirada de um álbum, daquela época em que ainda havia álbuns, em que o excesso de fotografias ainda não tinha matado a fotografia. O pai tem vinte anos, um sorriso sedutor, um olhar firme. Um dia, disse ao filho, rindo: «Eu era jovem nessa época, não sei quando é que tudo começou a derrapar.» Sim, à luz da alvorada, o comandante Markle parece esse pai com o qual Victor tem tão poucas semelhanças.

Na véspera, a farda só lhe serviu para atrair os mais angustiados, para quem o azul da Air France era reconfortante, ou os mais irritados, em busca de um bode expiatório. Mas, hoje, já não é alvo de hostilidades. Vendo-o partilhar da exasperação generalizada, toda a gente acabou por perceber que ele não beneficia de nenhum tratamento privilegiado, nem tem acesso à mais pequena informação confidencial. Para o provar, ou por simples conforto, ele trocou a farda por um fato. Em terra, David Markle já não é o senhor todo-poderoso logo a seguir a Deus, é um simples tipo amável a quem as pessoas se queixam, um general Dumouriez abandonado pelas suas tropas, ainda por cima simpático. De manhã, juntamente com uma dezena de passageiros, e sem qualquer explicação, ele teve de se submeter a uma série de exames médicos.

À mesa 14, está também um negro muito alto, de belos olhos profundos e melancólicos. Os seus cabelos curtos descrevem motivos geométricos dignos da pavimentação do palácio da Alhambra. Pronuncia «Johnny» em vez de journey, «yuwa» em vez de you are, «vishon» em vez de vision: um nigeriano, guitarrista e cantor. Bem pode ter um concerto na noite seguinte, numa sala de Brooklyn, que já percebeu que não lhe serve de nada insistir e, portanto, também ele parou de protestar. Apesar de tudo, recuperou a sua Taylor de doze cordas, que ficara numa das bagageiras da cabina, e toca, compõe uma música de ritmo suave.

I remember your eyes of yesterday

The way you smiled in a dazzling way

A guitarra emite um som rico e cheio, a voz dele é rouca e quente. O nome de artista que escolheu assenta-lhe bem, esguio como é. Sorri para Victor:

— Há muito tempo que não cantava em versão acústica, sem efeitos.

Mantém um acorde com vigor e continua:

But beautiful men in uniform forbid you…

Beautiful men in uniform? — questiona Victor, apontando para os soldados que vigiam as portas.

— Sim. Provavelmente vai ser esse o meu título.

E retoma, quase em voz baixa:

The way to the light way to the light way to the light.

Ao fundo da mesa, um murmúrio:

— «Só o teu nome é que é o meu inimigo.» — E Victor reconhece imediatamente Shakespeare. — «Apesar de tudo, não és um Montecchio , és tu e só tu.»

Julieta Capuleto está ali, é uma rapariga muito jovem, que ensaia as suas falas:

— «E que vem a ser um Montecchio? Não é mão, nem pé, nem braço, nem rosto, nem qualquer outra parte de corpo humano… Oh! Muda de nome! Mas o que é que existe num nome? A flor a que chamamos rosa deixa de ter perfume se lhe dermos outro nome? Romeu, ainda mesmo que não se chamasse Romeu, nem por isso deixaria de ser tão perfeito como é…»4

Intensa até na hesitação, ela sabe que saberá chorar, quando tiver de o fazer.

— A audição é na próxima semana — explica ela a Victor. — Vão deixar-nos sair daqui, quando acabarem de fazer os testes, porque são testes que eles andam a fazer, não são? Não podem deter as pessoas assim, é um país livre, existem leis.

— Sim, existem leis — repete uma jovem de feições finas e pele negra, cabelos puxados para trás com um travessão de prata.

A advogada recolheu cinquenta assinaturas para uma class action assente em meia dúzia de queixas, detenção arbitrária, detenção discricionária, confisco ilegal de bens, recusa de acesso de aconselhamento jurídico durante mais de quarenta e oito horas, etc. Quanto cobrar por cada minuto que passa sem poder falar com o seu gabinete? Como pôr um preço na sua própria dor por não poder ouvir a voz de Aby, por o imaginar louco de preocupação? Avaliar em apenas dois mil dólares por dia e por pessoa as perdas e danos da detenção não é uma benesse para a US Air Force e para o governo?

Como é a história? Ah, sim. O diabo entra no gabinete de um advogado e diz-lhe: «Bom dia, sou o diabo. Tenho um negócio a propor-lhe.» «Diga, estou a ouvir.» «Vou fazer de si o advogado mais rico do mundo. Em troca, dá-me a sua alma, a alma dos seus pais, a dos seus filhos e a dos seus cinco melhores amigos.» O advogado olha para ele com ar espantado e responde: «Está bem. Qual é o senão?»

A jovem faz uma careta. Não, a sério, ela não é o homem ignóbil dessa anedota. Mas, naquele mundo, é preciso ir-lhes ao bolso, caso contrário eles não percebem. De novo, pede a uma menina uma folha e uma caneta de feltro emprestadas, de novo redige uma carta. A mãe da criança, uma rapariga loura, hesita.

— O meu marido trabalha para o exército, não quero arranjar-lhe sarilhos.

— Pelo contrário, minha senhora. Não me disse que o seu marido era um herói de guerra, que ficou ferido em combate? Isso torna-o intocável e, além disso, assinando este documento de class action, faz com que seja impossível o exército intimidá-lo ou ameaçá-lo. Seria um entrave à justiça. Unidos, somos mais fortes. Não podemos continuar aqui fechados. Tem duas crianças consigo, não tem? Os danos psicológicos serão graves, sobretudo para eles.

— Danos psicológicos? — repete a jovem. Olha para o filho pequeno, que parou de lhe pedir o tablet insistentemente e dormita em cima da mesa, e, depois, para a filha, que rabisca seres sombrios, estranhos, de compridos membros finos e assustadores, risca com traços pretos as personagens do desenho.

À mesa 14, está sobretudo uma rapariga, que Victor viu com olhos de ver. Cerca de trinta anos, morena, magra como uma liana… arrepende-se imediatamente do cliché. Faz-lhe lembrar a mulher com quem se cruzou anos antes, nas jornadas de tradução, a que o trespassou e que ele nunca mais viu. A nostalgia é pérfida. Faz-nos crer que a vida tem sentido. Victor senta-se ao lado dela, atraído como que por um íman, a característica da atração é querer sempre reduzir as distâncias.

Tenta trocar meia dúzia de palavras com ela. Não, ela é como toda a gente, não sabe nada, faz uma cara de lassidão e retoma a leitura do seu livro. Está acompanhada: um homem, um sessentão elegante, que não deve ser pai dela, Victor intuiu-o pela solicitude atenta do indivíduo, e também pelo olhar que lhe lançou quando Victor tentou meter conversa com ela. Um toque de preocupação, animal, que ele não soube esconder. Apresentam-se. É arquiteto. Victor conhece o nome dele, mas não o seu trabalho. Esse universo de betão e vidro enche-o de tédio. Por vezes, numa tradução, surge um termo técnico — aduela, bailéu… — que ele tem de pesquisar, mas esquece-o logo a seguir. Victor observa o homem e, sem o achar feio, vê o velho já a emergir nas mãos de pele fina, na testa enrugada. Terá simplesmente a idade que ela o fizer sentir. Que verá ela nele? Que poderá ele saber sobre o desejo de uma mulher por um homem?

O homem levanta-se, pergunta à rapariga se ela quer um café, já que o exército instalou máquinas. Ela abana a cabeça e ele afasta-se sem pressa. Victor desconfia de que é um gesto elegante, uma maneira de a deixar respirar. Aquele espaço confinado é suficientemente opressivo para que ele não queira sufocá-la com a sua solicitude.

Olha, o livro que ela folheia é de Coetzee. Victor não o leu.

— É bom? — pergunta Victor.

— O quê?

— Esse livro do Coetzee?

— Sim — diz ela —, mas menos do que o Desgraça.

— Concordo — responde Victor —, é o melhor livro dele, não é?

— Uma obra-prima — confirma ela, e vira-se para o outro lado. Victor percebe que está a maçá-la, não insiste, volta a pegar no seu caderno e anota, sem ironia, a palavra «desgraça».

4 Trad. Dr. Domingos Ramos, Porto, Lello, 1924. (NT)