Encontro do Segundo Grau
Domingo, 27 de junho de 2021
rue La Fayette, Paris
Um beliscão na bochecha e Blake desperta numa cadeira de braços em aço frio, amarrado, amordaçado, nu. Um trabalho de profissional: não está garroteado, mas não consegue mover um dedo sequer. Reconhece o espaço, sóbrio, funcional: está no seu apartamento, na rue La Fayette. Reconhece até as suas amarras, a fita adesiva ultrarresistente que comprou em abril passado. Lembra-se apenas de ter sentido, ao entrar no T1, uma picada intensa na nuca e de ter desmaiado imediatamente.
A assoalhada onde está costumava ser um quarto: conserva uma cama estreita e abre para uma casa de banho com uma grande banheira esmaltada. A banheira poderia ter sido uma opção de design, se o objetivo não fosse, acima de tudo, prático. Não consegue virar a cabeça, mas não precisa de o fazer para perceber que todo o quarto foi coberto de plástico transparente. Blake March — chamemos-lhe assim — sabe bem o que isso pressagia. À sua direita, para rematar a decoração que não ficaria aquém do cenário da série Dexter, uma trintena de instrumentos cirúrgicos, bisturis, lancetas, escalpelos, serras elétricas, tesouras, limas: também os reconhece. Alguns nunca foram usados, como o berbequim craniano que ele testou em ossos até à medula. Não está aterrorizado, mas tal deve-se certamente ao efeito secundário muito relaxador do Midazolam que lhe foi injetado.
Precisa de uns longos segundos para identificar o homem de fato-macaco, por trás da viseira, de pé à sua frente, que o observa a recuperar os sentidos. Os seus olhos franzem-se de estupefação. Estupefação é dizer pouco.
Os dois homens observam-se longamente. Blake June examina o seu prisioneiro. Há três dias que reflete, raciocina, sem encontrar explicação. Mas o absurdo não impede o sentido prático e ele armou a sua ratoeira. Não tinha alternativa. A mosca nunca marca encontro com a aranha.
Blake March debate-se de repente, grunhe, geme, murmura qualquer coisa através da mordaça, mas Blake June não lha solta. Com voz rouca, fala-lhe ao ouvido:
— Não vou fazer discursos. Tu não entendes o que se passa e eu também não. Não tem mal. Eu sou tu e tu és eu. É de mais, não podemos ser dois. Percebes isso, com certeza.
Blake June pega num lápis e num bloco. Instala-se junto do computador aceso.
— Todos os números das minhas contas bancárias foram alterados. Por ti, claro, porque eu o faço de três em três meses. Tu conheces o método para decorar estes códigos… Acena com a cabeça para dizeres que sim.
Blake March obedece. Os seus pensamentos entrechocam e até se pergunta se estará a sonhar, um sonho incrivelmente realista.
— Vou aceder à tua frente às minhas contas bancárias e ditar-te números e letras, tu confirmas com um aceno de cabeça. Ao primeiro erro, arranco-te uma unha, ao segundo, esmago-te a primeira falange. Não sei quem és, mas tens certamente as mesmas recordações que eu. Lembras-te do contrato de Amiens de há dois anos? Acena com a cabeça para dizeres que sim.
March acena com a cabeça. Lembra-se… Uma coisa tipicamente para os albaneses, mas ou o cliente não tinha ligações no meio, ou teve medo desses tipos. A missão era tão bárbara, que ele quase não a aceitou. Joelhos rebentados, cotovelos partidos, dedos cortados, língua e sexo amputados, tímpanos furados e, a melhor parte guardada para o fim, ácido nas pupilas. Para receber a outra metade dos setenta mil euros, o homem não devia morrer.
June continua:
— Tu farias exatamente o mesmo no meu lugar. Até porque estás no meu lugar.
March observa-o, semicerrando os olhos. Blake June esboça um sorriso que não é cruel, é antes embaraçado. Não gostou de Amiens. Tudo o que é de mais é de mais.
— Se não houver nenhum erro, se eu recuperar o acesso a todas as minhas contas, falaremos sobre o futuro, do que poderemos negociar entre nós. Entendes?
March faz que sim com a cabeça e June pensa na frase de Al Capone: obtemos mais coisas com armas e cortesia do que simplesmente com cortesia.
— Então, vamos começar. Primeiro banco. First Caribbean Investment Trust.
March acena com a cabeça. Fecha os olhos, concentra-se e pensa numa meia dúzia de flamingos cor-de-rosa voando na noite por cima dos Alpes.
— Primeiro carácter. Letras? OK. Minúscula? Maiúscula. Inferior a L? Não. Inferior a S? Não. S T U V… V? Perfeito.
Blake aponta V.
— Segundo carácter. Letra? Não. Número. Sim. Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Seis.
Aceno de cabeça.
— Seis. Sim?
Aceno de cabeça. Blake anota um 6 a seguir ao V.
Um quarto de hora mais tarde, Blake June já recuperou o acesso a todas as suas contas e alterou novamente os códigos, sempre seguindo o mesmo método. Uma frase para cada uma das três contas, fácil de transcrever. Para o First Caribbean Investment Trust era «Vê seis pássaros cor-de-rosa!». Não quer dizer nada, mas escreve-se «V6pcdr!» e basta-lhe lembrar-se de seis flamingos cor-de-rosa. A seguir, para o Latvijas International Bank: «Eles atravessam um céu negro de Veneza a Paris.» Ea1cndVeP. Etc.
Ficou também a saber os novos nomes de utilizador e senhas do seu site na dark net e até o código, também ele alterado, do seu telemóvel. Leu o histórico de mensagens, descobriu na sua agenda que ele — enfim, «Jo» — jantou várias vezes com um tal Timothée sobre o qual nada sabe. Mas June não está curioso ao ponto de tirar a mordaça da boca de March. Não tem medo que este último grite por socorro, porque ambos sabem que aquele quarto é insonorizado, das paredes ao teto. Mas não quer que a mínima dúvida se infiltre em si, não quer hesitar em nada.
Quando March vê June levantar-se, não precisa de explicações. É claro que ele próprio faria a mesma coisa. Fecha os olhos, só quer que seja rápido. June passa por trás dele, sem pressa, e injeta-lhe na nuca uma dose de propofol, que o faz perder os sentidos numa questão de segundos. Nada de sofrimento inútil, Blake não se detesta a esse ponto. Um minuto depois, uma picada de curare faz com que o coração de March pare. A morte e o sono são irmãos gémeos, já dizia Homero.
Blake — agora já não há ambiguidade — corta a fita adesiva e ampara o cadáver antes que caia no chão. Arruma cuidadosamente a roupa — no fim de contas, é o seu tamanho —, coloca o corpo dentro da banheira, com as pernas para cima, a cabeça para baixo, abre o duche e degola-o, deixa-o esvaziar-se de sangue. Passa os dedos por ácido para destruir as impressões digitais. Depois, com cuidado, usando uma serra elétrica ortopédica, corta o corpo com zelo, para não deixar nenhum membro humano claramente identificável, como uma mão ou um pé. Falta-lhe um pouco de experiência. Nas costas, nas suas costas, repara num sinal de que nunca se tinha apercebido, com os bordos irregulares. A vigiar. Ao cortar o sexo, o seu sexo, não consegue, apesar de tudo, conter um arrepio de nojo. Em três horas, enche uma centena de sacos de congelação herméticos. Só falta a cabeça.
Merda. O penso.
Blake já se ia esquecendo. Um coice do pónei? Esperará que Flora lhe volte a falar nisso. Descola o quadrado adesivo da testa de March, a ferida já estava cauterizada. Com um escalpelo, corta ligeiramente a sua própria pele, até que a futura cicatriz seja plausível, desinfeta-a e cola o penso na testa. Depois, mergulha a cabeça de March no banho de ácido que preparou num alguidar: a pele desfaz-se, soltando uma voluta de vapor nítrico.
São dezanove horas. Blake terminará no dia seguinte. Limpa a casa de banho, retira os plásticos transparentes, só ligeiramente respingados, e dobra-os cuidadosamente. Uma precaução supérflua: no fim de contas, se um dia descobrissem aquele sangue em sua casa, é o seu. Empilha os sacos na banheira. O volume é menor do que ele esperava. Oito malas pequenas, quatro viagens.
Com um telemóvel descartável, envia uma mensagem a um destinatário secreto: «Oito troncos, Total Clignancourt.» Resposta imediata: «OK. Quarta, quinze horas.» D menos 2, H menos 2: Francis estará à sua espera no dia seguinte, segunda-feira, às treze horas, com o todo-o-terreno, na bomba de gasolina Total, da Porte de Clignancourt.
Depois, Blake sai, fecha a porta à chave. Sabe que achará Quentin e Mathilde um pouco mais crescidos. Há vida depois da morte, sobretudo da morte dos outros.
*
Segunda-feira, 28 de junho de 2021, 21h55
Palácio do Eliseu, Paris
— Está tudo pronto, Emmanuel. Cinco minutos. Temos os canais de notícias, um Facebook Live e um direto no YouTube. Com um minuto de desfasamento na difusão, caso haja um problema.
O Presidente sorri para a sua diretora de comunicação.
— E em Washington? Não podemos deixar que aquele tipo roube as luzes da ribalta a toda a gente.
— Ele está atrasado em relação a nós, ainda está a ensaiar o discurso.
— Ele ensaia os discursos? Para mim, tem sempre ar de quem está em roda livre. E o Putin? O Xi Jinping?
— Não sei.
— Senhor Presidente? — chama uma voz masculina.
O chefe de Estado vira-se para o subdiretor da contraespionagem, um homem franzino e careca, que ainda está de olhos fixos no telemóvel, perturbado.
— Era o Mélois? Quando é que ele volta dos Estados Unidos?
— Não era ele, senhor Presidente — diz o subdiretor. — O avião ministerial acaba de descolar da base de McGuire. Mas tenho uma informação.
— Seja rápido, Grimal.
— Há dez dias, a manutenção da Airbus reparou numa coisa estranha. Durante a revisão de outro Airbus da China Airlines, no Dubai, os mecânicos encontraram uma peça da asa com o mesmo número de série que a de um avião afetado a uma rota chinesa interna, Pequim-Shenzhen. O que é absolutamente impossível. O fabricante suspeitou, a princípio, de uma cópia pirateada. Mas nessa rota Beijing-Shenzhen, em abril, os nossos satélites detetaram uma anomalia de tráfego: um aparelho desconhecido foi reorientado para a base militar de Huiyang. Segundo os serviços secretos, os Chineses também tiveram um avião, como é que havemos de dizer, duplicado… E desossaram-no de fio e pavio e reciclaram as peças.
— E os passageiros? E a tripulação?
— Não sabemos mais nada.
— Os Americanos não nos avisaram?
— Não há nada que indique que eles estejam a par disso.
Os dois homens calam-se quando a diretora da comunicação se aproxima.
— Emmanuel? Vinte segundos.
O Presidente senta-se, a maquilhagem corrige um brilho na testa.
— Dez…
A diretora de comunicação acaba a contagem decrescente em silêncio. O Presidente fixa a câmara, o teleponto passa o texto.
— Francesas, franceses, caros compatriotas. Falo-vos a esta hora tardia, como faz o Presidente americano neste momento em Washington, a chanceler alemã em Berlim, o Presidente russo em Moscovo e muitos outros chefes de Estado no mundo inteiro.
»Na quinta-feira passada, deu-se um acontecimento excecional. Os rumores que circulam na imprensa e nas redes sociais são, em parte, corretos. Os factos são os seguintes: um avião apareceu no céu, ao largo da Costa Leste dos Estados Unidos, na quinta-feira passada…
O Presidente francês fala, fala, antes de — coisa rara — passar a palavra, ao fim de cinco minutos, ao seu conselheiro científico. Para não acrescentar um toque de excentricidade a uma situação já de si incompreensível, o matemático suavizou o aspeto de cientista louco, trocou a sua perturbadora gravata larga com laço púrpura por uma fina écharpe de seda bege, mas não tirou da lapela do casaco uma aranha de prata. Apresenta as hipóteses, mostra uma animação para tornar o discurso mais claro e, por fim, remete para o site do Eliseu para explicações mais pormenorizadas, com chats organizados em direto.
Em casa de Blake, e sem dúvida em toda a França, o silêncio é absoluto. Flora solta um Que loucura. Que loucura total.
Jo mantém-se mudo, mas Flora não estava à espera de resposta. O Presidente agradece ao conselheiro e retoma a palavra.
— Meus caros compatriotas, em agosto de 1945, depois da explosão de Hiroxima, em que o mundo entrou na era nuclear e no medo da aniquilação, o escritor Albert Camus escreveu: «Eis uma nova angústia que se nos depara e que tem todas as probabilidades de ser definitiva. A humanidade foi certamente brindada com a sua última oportunidade. E isto poderá ser, no fim de contas, o pretexto de uma edição especial. Mas, acima de tudo, deveria ser tema de algumas reflexões e de muito silêncio.» Este belo texto deve ser, para nós, uma fonte de inspiração.
»É por isso, francesas, franceses, que os dias e as semanas que se anunciam devem tornar-se um tempo para refletirmos, mas também um tempo para encontrarmos a paz. Os cientistas quererão interpretar, quererão compreender, quererão explicar, como lhes cabe, mas é em si próprio e somente em si próprio que cada um de nós encontrará respostas.
»Agradeço-vos. Viva a República, viva a França.
— Que loucura — repete Flora. — Já pensaste, Jo, se existisse um duplicado teu?