A Última Palavra
21 de outubro de 2021, 13h42
Por três vezes o piloto do Super Hornet pediu para repetirem a ordem. Mas ele não passa do último elo de uma cadeia e de que serve a mão, se ela se recusar a obedecer ao cérebro?
A decisão acaba de ser tomada no «Tank», a sala mais sagrada do Pentágono. Trata-se de uma câmara forte, sem janelas, oficialmente «Room 2E924», que parece uma banal sala de conferências de uma empresa, com a sua mesa de carvalho dourado, cadeiras giratórias em couro e decoração intemporal. Num quadro na parede, o Presidente Abraham Lincoln tem uma reunião estratégica da Guerra de Secessão. À sua volta, o general do exército Ulysses Grant, o general de divisão William Tecumseh Sherman e o contra-almirante David Dixon Porter. Todos essas altas patentes na tela foram testemunhas da decisão mais secreta jamais tomada pelos chefes do Estado-Maior dos diferentes ramos das forças armadas, uma decisão longamente debatida sobre a qual o Presidente insistiu em ter a última palavra.
O míssil solta-se da asa do caça, que sobe para noroeste. Imediatamente, o AIM 120 acende o seu foguete e, numa questão de instantes, atinge a velocidade de cruzeiro, deixando atrás de si um rasto cinzento e retilíneo. O sol reflete-se no painel de aço, é a morte cintilante. A mach 4, o alvo está a uns escassos quinze segundos.
Em Paris, de frente para o jardim do Luxemburgo, Victor e Anne tomam um último café na esplanada, antes de irem jantar. Estão no final de outubro, mas o verão perdura ainda, um verão de São Martinho, como se costuma dizer. Anne levanta os olhos para Victor, sorri-lhe. Nunca o escritor se sentiu tão vivo, por vezes até pensa que a morte do outro Victor tornou a sua existência tão etérea quanto preciosa. Na mesa, pousou as duas peças de lego, como dois torrões de açúcar vermelho-vivo. Une-os, desencaixa-os, maquinalmente.
Ilusão das ilusões — disse Qohélet
— ilusão das ilusões: tudo é ilusão.
Victor acaba de escrever a última palavra do pequeno livro que conta a história do avião, a anomalia, a divergência. Como título pensou em Se Uma Noite de Inverno Duzentos e Quarenta e Três Passageiros — e Anne abanou a cabeça —, depois quis fazer disso a primeira frase — e Anne suspirou. Afinal, será um título curto, uma só palavra. Infelizmente, A Anomalia já foi usado. Não tenta explicar nada. Testemunha, com simplicidade. Reteve só onze personagens e desconfia de que, enfim, onze já são demasiadas. A editora suplicou-lhe, Victor, tem dó, é demasiado complicado, vais perder leitores, simplifica, corta, concentra-te no essencial. Mas Victor só faz o que lhe apetece. Atacou o romance com um pastiche à Mickey Spillane, acerca de uma personagem sobre a qual ninguém sabe quase nada. Não, não, não é suficientemente literário para um primeiro capítulo, criticou Clémence, quando é que vais parar de brincar? Mas Victor está mais brincalhão do que nunca.
A seis mil quilómetros dali, no Hospital Mount Sinai, Jody Markle já não tem lágrimas, fecha os olhos. Perde David pela segunda vez. Ele está há quatro dias em coma induzido, porque já nem o nanomedicamento francês é suficiente para lhe aliviar a dor. Paul está de pé, ao lado do irmão, mais magro, macilento, silencioso. Lá fora, um barulho de vidros distrai-o, entreabre o estore, debruça-se, olha para o pátio: no parque de estacionamento, dois homens insultam-se em redor de um farol partido, enquanto no quarto, no monitor, a sinusoidal do eletrocardiograma se torna achatada e fixa, e o bip ténue se transforma numa nota contínua.
Em Lagos, o concerto dos SlimMen termina ao cair da noite tropical. No fim do concerto, para a última música, um convidado-surpresa sobe ao palco, um homem baixinho e louro, de fato rosa de lantejoulas e grandes óculos luminosos dourados, por entre vivas e aplausos. E mais de três mil jovens nigerianos cantam com eles o refrão, cujo segundo sentido todos conhecem:
I want a mist of forgiveness
But I shall beg for nothing less
To cover the blood and tears
I just want some love if you please
Joanna March engordou e o bebé poderá nascer mais cedo do que previsto. É uma menina, vai chamar-se Chana, o nome de uma princesa japonesa esquecida, e «ano» em hebraico. Joanna tem tempo livre para essas distrações, porque o processo da Valdeo não irá a julgamento. Fizeram um acordo com os queixosos e o heptacloro foi retirado do mercado. Ela nunca chegou a ir à reunião do Dolder, onde se discutiu a demanda da imortalidade e, depois, ao jantar, os pontos do planeta onde se poderá fugir aos efeitos do aquecimento global e às vagas migratórias. Prior comprou cem hectares na Nova Zelândia.
Aby gostava de continuar a corresponder-se com Joanna June, num cocktail lamacento de confusão e culpa, mas ela recusou-se a manter a ligação. Mais tarde, talvez. Conheceu uma pessoa no Bureau, um especialista em tráfico de obras de arte. Ele acha que é uma relação séria, ela tem dúvidas, mas quer acreditar nisso.
No manto de gelo do oeste antártico, é o início da primavera e o glaciar Thwaites, esse enorme cubo de gelo com dois quilómetros de espessura e o tamanho da Florida, poderá soltar-se daí a três meses e as águas subirem mais de um metro, mas Sophia, Liam e a mãe deixaram a casa inundável de Howard Beach. Os June instalaram-se em Akron, perto de Cleveland, os March em Louisville. O exército e o FBI cumpriram as promessas e, por seu lado, elas aceitaram nunca voltar a contactar-se. Podem ter um ponto comum, Clark, mas os termos da sua condenação excluem todo e qualquer contacto posterior com a família. E aos poucos, nos dois Liams, a raiva amainou.
Blake faz mal em preocupar-se. No FBI, já ninguém o procura. A partir das duas imagens desfocadas tiradas na alfândega de Kennedy, de um homem que poderia ser o passageiro do lugar 30E, a NSA identificou através de reconhecimento facial 1 049 278 rostos nas redes sociais. Desse milhão, 1553 são de indivíduos que, na semana seguinte, foram captados pela câmara de um dos aeroportos da Costa Leste, mas isso não prova nada; 4482 outros rostos não correspondem a nenhum perfil e só aparecem em fotografias, por vezes em pano de fundo. É verdade que o homem existe em duplicado, mas procura claramente passar despercebido. Além disso, de que é ele culpado, senão de ter arrombado a porta de um hangar e roubado um veículo?
André March pousa uma jarra de cerâmica azul no aparador da cozinha, na sua novíssima casa de Montjoux. No início de agosto, num concerto no templo da aldeia, conheceu uma contrabaixista, que vive na povoação vizinha; ele estava pronto. Uma mulher alta e esguia, muito morena, de olhos azuis profundos, que o faz rir e está constantemente a tentar deixar de fumar. Veste, por vezes, umas jardineiras largas, cujas aberturas deleitam as mãos de André, e ele descobre os prazeres da bicicleta elétrica. Nessa manhã, depois de fazerem amor, ela voltou a adormecer no quarto e, enquanto ele prepara a mesa para o pequeno-almoço, Lucie March telefona-lhe, só pelo prazer de conversar. Está a trabalhar «muitíssimo, demasiado», diz ela, mas está mais serena, aguenta o ritmo que se instalou entre ela e Lucie June em relação à guarda de Louis. Que está bem. «Espantosamente bem.»
O rapaz não está aborrecido por a sua «outra» mãe, Lucie June, estar grávida. O centro de gravidade da vida dessa Lucie mudou tanto em poucos meses, que o inimaginável se tornou possível. Tens a certeza?, perguntou André June, tão feliz quanto preocupado. Sim, certeza absoluta, está grávida. É um novo ponto de equilíbrio, e uma forma de vingança sobre esse destino. Nunca mais telefonou a Raphaël, e nenhum outro amante ocasional o substituiu.
Adrian e Meredith estão em Venice, Italy, Europe. Estão bloqueados no hotel por causa da acqua alta, mas esse confinamento momentâneo não é propriamente trágico. O seu quarto soalheiro dá para a Fondamenta del Passamonte, o serviço de quartos é irrepreensível — o diretor do hotel achou que Adrian era um ator americano, mas qual? — e a camisa menos branca e menos imaculada, recordação da Casa Branca, está esparramada no chão, coberta por um vestido preto. Falam em voz baixa, sob uma pirâmide de lençóis, invisíveis, e ouvimos o riso límpido de Meredith.
Em setembro, o Departamento de Defesa pôs fim ao protocolo 42, para se concentrar na operação Hermes. As especulações do grupo de trabalho duraram o verão inteiro, sem que ninguém imaginasse um meio de refutar uma teoria ou de confirmar outra. Os Americanos também nunca tomaram conhecimento da existência daquele outro avião, na China. Não há notícias dos seus passageiros e tripulantes.
Jamy Pudlowski bebe um dry Martini num dos bares de Quantico, após uma última sessão de formação. Validou, dois dias atrás, o último plano de proteção dos passageiros do 006 e obteve a sua transferência para a Costa Oeste, para São Francisco, onde assumirá, na semana seguinte, o cargo de diretora do gabinete regional e dos sete escritórios-satélites. Se lhe perguntassem em que pensa, nesse instante, ela pediria simplesmente mais um dry Martini.
A câmara lateral da asa esquerda do Super Hornet segue a trajetória do AIM 120 e, na sala de comando, na cave da Casa Branca, o Presidente dos Estados Unidos da América observa o ecrã gigante, de sobrolho franzido, cerrando os punhos. Sim, era uma decisão difícil e tomei-a sozinho, porque a minha função é tomar decisões sozinho. Quando o informaram de que um terceiro voo Air France 006 tinha surgido no céu atlântico, com o mesmo comandante Markle aos comandos, assistido pelo mesmo Favereaux, com os mesmos passageiros a bordo, o Presidente ordenou a destruição da aeronave. Não podemos permitir que o mesmo avião aterre vezes sem conta.
Tomemos um último café, diz Victor, queres? Puxa Anne para si, acaricia-lhe os dedos frescos, beija-a delicadamente nos lábios que ela entreabre e o seu hálito cheira a tabaco e mentol. É então que acontece. Primeiro, é um sopro, um redemoinho efémero de folhas mortas no chão. Paira no ar uma nota, muito ténue, um fá de contrabaixo. O ar vibra e o céu torna-se mais claro, mas só um nadinha. Uma senhora bem-arranjada que puxa um carrinho das compras detém-se diante de uma livraria, um homem de gabardina passeia um grande cão preto, uma rapariga de bicicleta passa à frente deles, para, fita o seu smartphone e sorri. É um momento calmo, sereno.
O míssil está a apenas um segundo do avião comercial Air France 006 e o tempo alonga-se, alonga-se antes da explosão.
É difícil descrever o que se passa, não existe propriamente uma palavra na língua para definir aquela vibração lenta do mundo, aquela pulsação infinitesimal que, na Terra inteira, e no mesmo instante, afeta tanto o gato que dormia junto da lareira no chalé do Arkansas, como o ganso cinzento que atravessa o céu por cima de Bordéus, e as cataratas do Zambeze e as neves imaculadas do Anapurna, a ponte do Rialto sobre o Gran Canal de Veneza e a artéria engarrafada do grande bairro de lata de Dharavi e a esponja suja pousada na beira de um lava-louça em Montjoux e o velho pneu furado no pátio de uma oficina em Bombaim e a chávena de café vermelha
pousada na mesa de café de Victor Miesel e o estirador do ateliê de
André Vannier e a mesa de montagem de Lucie Boagert e a rã Betty
hia dentro do seu viveiro na casa nova em Louisvill
cela pisional onde Clark aparece enfado e o b
Joann tou com a ajuda de Aby e mo
leva aos pés no co mboio rum
s e r n a o s e r
d e s a p a r e
c e r a r e i a
i n f i m a
f i m a
f i m
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